10 Clássico em perigo de extinção, mas há quem lembre Aimar: «Precisamos de magos da bola»

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«Não gosto de ouvir dizer que não há jogadores criativos, sobretudo depois de fazerem 800 treinos automatizados. Se há algum miúdo com 15 anos que finta os adversários, dizemos-lhe para não o fazer, porque perdeu a bola duas ou três vezes. Sim, vão perder a bola duas ou três vezes, ou cinco ou dez…». Autor destas fortes palavras? Um tal de Pablo Aimar, ex-jogador do Benfica, que encantou os relvados portugueses com a sua subtileza técnica e inteligência.

«Com estas defesas em bloco, só um criativo consegue passar. Um criativo é alguém que finta, que inventa algo diferente quando todos os outros fazem o mesmo. Futebol não é xadrez. A torre não anda sempre da mesma maneira», referiu ainda o antigo internacional argentino, num debate virtual realizado pela Be Magistral, em 2021.

A verdade é que esta robotização do futebolista moderno tem levado ao desaparecimento - ou, pelo menos, à transformação - de uma das posições que mais fascinava os espectadores do desporto-rei: o '10' Clássico. Zinédine Zidane, Diego Armando Maradona, Johan Cruyff, Juan Román Riquelme. Alguns craques que perfumaram a modalidade com um aroma distinto. Uma fragrância leve que provinha da zona mais adiantada do miolo e que contagiava os restantes companheiros.

No entanto, nesta nova Era, este tipo de jogadores têm sido descartados ou orientados para outras secções do campo. O zerozero esteve à conversa com o técnico António Barbosa e com Bernardo Mesquita, jogador do Tirsense, de forma a tentar compreender os motivos por detrás desta revolução posicional.

A vontade que se transformou em realidade

Mesquita cresceu a assumir a batuta no meio-campo. Era numa zona frontal onde se localizava o seu lugar ao sol. No entanto, na transição dos sub-18 para os sub-19, o aparecimento de uma arma adicional no seu repertório levou a uma mudança circunstancial: «Eu sempre fui muito rápido com a bola nos pés, em condução, mas entretanto comecei a ganhar velocidade de ponta.» 

@Tirsense

Esta nova habilidade desbloqueada, bem como a vontade de experimentar um território distinto dentro das quatro linhas, gerou a mudança para o corredor. Para além disso, a sua complexidade física não estava talhada para as batalhas no centro do terreno.

«Eu, como sempre fui muito franzino, senti que ao jogar a extremo iria conseguir fugir um pouco mais do contacto. Comecei a defrontar apenas o lateral e, desta forma, libertei-me de sistemas com dois trincos e dos próprios centrais», destacou, mostrando uma superlativa consciência tática.

Desta forma, a ambientação acabou por ser bastante suave, com o camisola 17 a explorar movimentos interiores ou galopadas junto à linha lateral para criar outro tipo de desequilíbrios. No entanto, segundo o próprio, o maior desafio passou pela adaptação ao processo defensivo, que varia face ao esquema tático.

«Os treinadores podem querer um avançado que acompanhe o lateral o tempo todo ou um jogador que fique mais lá na frente. No Padroense, nós jogávamos em 4-3-3, onde inevitavelmente tinha que acompanhar o lateral, senão o teu companheiro de corredor ficava com o encargo de defender dois jogadores de forma praticamente direta», afirmou.

«Por outro lado, num 3-4-3, apesar de ter algumas tarefas, o meu acompanhamento é diferente, porque na minha equipa tenho o lateral e o central descaído para o meu lado a ficarem mais preocupados com esse adversário em particular», acrescentou.

Para grandes males (resultadistas), grandes remédios

António Barbosa, com um registo preenchido no futebol nacional, valoriza «um meio-campo bastante dinâmico», com os médios a terem a capacidade de desempenhar diversas funções no centro do terreno. O comprometimento defensivo também é preponderante na sua filosofia.

Todavia, o treinador acredita que o respetivo comportamento não depende de características biológicas: «Mais do que as questões físicas, valorizo a capacidade competitiva em momentos da perda de bola. Mesmo um '10' virtuoso tem que ter o compromisso de parar uma transição ou fazer uma falta. Tem que correr. Exijo sempre muito esforço e dedicação.»

@Catarina Morais / Kapta +

O técnico de 41 anos, apesar da atribuição de algumas tarefas sem bola, acredita que o bem-estar coletivo depende da liberdade ofensiva. Para que tal aconteça, o conhecimento das valências do respetivo plantel é fundamental.

«O foco é criar ideias que assentem bem nas características dos nossos jogadores, dando espaço ao virtuosismo, ao talento e à capacidade técnica. É preciso uma grande vontade de competir e de querer sempre ganhar para sermos coletivamente melhores», realçou.

Com esta ideologia implementada, onde a criatividade tem um papel bem patente, a mudança de posicionamento do '10' raramente ocorre de forma definitiva. Porém, o técnico oriundo de Braga não descarta esta opção, colocando-a em prática ocasionalmente, sobretudo quando o resultado da partida não é do seu agrado.

@CD Trofense

«Às vezes, há a necessidade de defender com jogadores com outras características, deslocando o médio ofensivo para a linha, de forma a fazer diagonais mais curtas. Assim, o jogador mais técnico fica mais livre para receber orientado, queimar espaço na receção e para conduzir no último terço, servindo posteriormente os companheiros», salientou.

As suas funções estão, assim, bem definidas, a priori: «Este jogador deve fazer movimentos interiores para ser um elemento de ligação ou para libertar colegas frente a equipas que fazem uma marcação muito cerrada no miolo. A minha ideologia passa então por encontrar espaços que se adequem à identidade dos meus atletas.»

O mister apontou mesmo um exemplo específico: «No ano passado, frente ao Amora, no playoff de subida, o Rúben Alves caiu no corredor esquerdo. Queríamos que ele fizesse diagonais curtas, não para conduzir, mas para criar situações de dois-para-um. O objetivo passava por servir na profundidade, já que havia muitos espaços nas costas. Com isto, conseguimos ganhar um penálti e criar duas oportunidades de perigo iminente.»

O extremo invertido e o efeito Bernardo

De acordo com António Barbosa, «pela densidade de ações que têm no jogo, os meio-campistas são jogadores extremamente inteligentes». Desta forma, a capacidade de adaptação a uma posição diferente costuma ser bastante tranquila.

O médio do Tirsense apontou quatro golos na época transata, tendo sido uma das principais referências da turma de Santo Tirso no arranque da campanha. Contudo, o sistema pensado pelo técnico Álvaro Madureira estava talhado para fazer brilhar outros intervenientes.

«Jogávamos com extremos a atuar muito por dentro, algo que ia muito de encontro com as minhas características. No entanto, senti que perdi um pouco da minha capacidade no um-para-um como extremo tradicional, porque recebo, na maioria das vezes, a bola de costas para a baliza. Ou seja, por um lado, o extremo invertido faz jus aquilo que eu tenho de melhor, mas por outro, retira um pouco de protagonismo, porque são os alas que aparecem em zonas mais adiantadas», confessou.

Bernardo é destro. Questionado sobre o lado em que prefere jogar, o médio foi perentório: «Nunca me consegui adaptar ao lado direito. Uma das fintas que eu sempre usei muito foi a bicicleta (stepover), fazer uma pedalada e sair para fora, de modo a ser mais imprevisível. Desta forma, o corredor esquerdo adequa-se muito mais..»

Tal como a grande maioria dos médios ofensivos que mudam de habitat natural, o atleta de 21 anos mostra preferência em atuar no lado oposto ao do seu pé preferencial. Jamal Musiala e Bernardo Silva compactuam com esta visão, fruto de um estilo de jogo mais cerebral.

Sobre o internacional português, o antigo treinador do Länk Vilaverdense garantiu que o atleta do Manchester City possui todos os condimentos para fazer furor na linha, sendo um verdadeiro exemplo desta nova versão futebolística adotada nos principais campeonatos do futebol mundial.

@Getty /

«O Bernardo, quando joga pelo corredor, é um extremo puro. A sua capacidade de pressão, aliando à vontade em recuperar bolas e de fechar espaços, é verdadeiramente impressionante. É fantástico ver a sua evolução nestes requisitos. Sinto que estamos a caminhar para o futebol espetáculo, uma sucessão da MLS, porque realmente estes novos jogadores conseguem fazer coisas que mais ninguém faz», destacou entusiasmado.

Mudança não é sinónimo de linha: a opção Falso '9'

Já passaram alguns anos desde o período onde Mesquita jogava regularmente atrás do ponta-de-lança. No entanto, a joia dos jesuítas voltou a ter uma oportunidade no respetivo papel diante do Pevidém, na temporada passada. Segundo o próprio, a experiência resumiu-se a um misto de emoções.

«Por um lado, gostei quando tive a bola, porque nós praticávamos um futebol atrativo. Consegui facilmente arranjar espaço nas costas dos trincos. Contudo, os relvados do Campeonato de Portugal ficam logo amassados por causa da chuva. Não dá para jogar pelo chão. Quando o mau tempo chegou, já me perdi completamente. Os meus primeiros 20 minutos foram bem diferentes do resto do encontro», relatou.

Não foi a última vez que o jovem jogador voltou a ter uma chance num posto mais frontal. No meio da época, a equipa testou temporariamente o 3-5-2, sendo Mesquita escolhido para ser um dos homens mais adiantados.

@Tirsense

Contudo, as suas movimentações eram distintas às do seu companheiro de ataque, uma vez que tinha uma maior liberdade, descaindo com frequência para um território mais recuado. Este experimento não correu da melhor maneira. O ex-padruca sentiu-se perdido taticamente: «Tanto pediam-me rotura, como para aparecer mais por dentro. Dava-me muito ao contacto dos centrais, o que me complicava muito a vida.»

«O Falso '9' é a nova posição '10', porque as características são praticamente iguais. Simplesmente é necessário ter a capacidade de realizar movimentos disruptivos em profundidade». acrescentou.

Já o técnico luso enumerou os requisitos para desempenhar esta função com sucesso: «Este tipo de ‘9's’ costumam ser pouco desenvolvidos nos duelos aéreos, mas são inteligentes e cultos taticamente. Percebem como têm que atrair os defesas adversários para arranjar espaço ou têm a habilidade de aproveitar as zonas menos congestionadas para criarem desequilíbrios.»

Porém, precisam de Robin’s para serem Batman’s: «Necessitam de ser acompanhados por jogadores de ligação, quer seja um '8', um '10' ou um ala que jogue com o pé contrário. Assim, trazem mais-valias para formações que optam por um estilo mais apoiado e sofisticado.»

«São os recortes de brilhantismo que fazem toda a diferença»

Num futebol cada vez mais fechado, Mesquita não tem dúvidas que os artistas têm tudo para continuar a pintar telas, independentemente do posicionamento: «A modalidade depende cada vez mais de momentos de magia. É das poucas formas de desbloquear um jogo. São os recortes de brilhantismo dos intervenientes que fazem toda a diferença.»

Sobre as declarações de Aimar mencionadas anteriormente, António Barbosa vai mais longe nas criticas ao atual modelo de formação: «Se nós castrarmos os nossos jogadores com dois toques no treino, depois não podemos pedir que os miúdos sejam criativos. Eles foram estimulados durante horas a receber e passar, num ato contínuo

«Depois também existem aqueles treinadores que dizem que o jovem que dribla toda a gente é um problema, porque não passou a bola a ninguém. Se ele não precisar de tocar para o colega, tem de ter a confiança para resolver certos problemas circunstanciais sozinho. Claro que também teremos que estimular as ideias coletivas, mas são ações que aprenderão seguramente com o tempo e com a prática», rematou.

2 de novembro de 2008. António Barbosa teve o prazer de assistir a um momento genial, que ficou para sempre guardado na sua memória. Uma obra-prima desenhada ao ar livre, sob a intensa luminosidade de múltiplos holofotes.

«Eu tive o prazer de estar no estádio do Vitória SC, quando o Aimar fez aquela assistência para o Suazo, de letra. Nunca nos esquecemos destes comportamentos, mesmo passando uma vida inteira. Precisamos e sempre precisaremos de magos da bola», exclamou.

O ‘10’. Pode ter encontrado o seu espaço noutro ponto de abrigo, mas certamente está longe de estar morto: «Podemos ter jogadores que fazem 100 passes certos, mas o mero espectador não valoriza tanto isso. Valoriza aquela finta mágica ou aquele remate colocado, que acaba por ficar na nossa cabeça anos a fio.»

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