20 anos sem Fehér, as cartas de amor: «A tua morte foi uma ironia do céu»

8 meses atrás 59

«Desculpem, ainda não consigo falar sobre o Miki. A morte dele é o maior trauma da minha vida. Espero que me possam compreender.»

As palavras de Tomo Sokota, a 20 anos de distância do falecimento de Fehér, são a primeira carta de amor ao húngaro. Um testemunho curto, interrompido pelo soluçar incontrolável, a prova maior - como se ela fosse necessária - da grandeza humana do avançado desaparecido em campo a 25 de janeiro de 2004. 

qA minha mulher tem uma tia que é enfermeira e ligámos para ela no caminho do hospital para minha casa. Eu estava com o meu sogro e a minha esposa. Tentámos saber mais através dessa tia e foi ela que nos disse que o Miki tinha falecido

Ricardo Rocha

Duas décadas de uma tragédia televisionada. Em direto, como se a peça tivesse sido encenada por profetas sádicos ou deuses da capitulação. Um luto eterno para o mundo do futebol, em geral, e os colegas de Miklós Fehér em particular.

O que sentiram esses homens naquela noite? Como geriram a perda e como a guardam, tantos anos depois? 

O zerozero procurou dar essas respostas, humanizar  profissionais demasiadas vezes robotizados, como se não tivessem uma alma e um corpo à semelhança dos restantes mortais. É duro remexer em emoções atiradas para um canto, uma ferramenta de auto-defesa baseada no senso comum e na fragilidade das emoções. 

«Estou a chorar, mas são boas recordações. Tenho o maior dos prazeres em falar do meu amigo Miki. Parece que estas tragédias só acontecem às pessoas boas.»

Ricardo Rocha é um dos guardiões dos trovões dessa noite de inverno. Amigo próximo de Fehér, à semelhança de Sokota. Colega em Braga e na Luz, um homem agradecido por esta homenagem e as respetivas memórias. 

Um dos capitães desse Benfica 03/04 era Petit. Homem consolidado naquele meio-campo, vivia nesses dias outro luto, pela perda de um familiar. Sem medo de desabafar, o agora treinador expia os próprios demónios. Quem não os tem?

«Dias antes da partida do Miki, o meu sogro tinha morrido. Por isso só fiz dois ou três treinos nessa semana, fui jogar em condições diminuídas. Depois aconteceu isso com o Fehér, foi duríssimo. Passei a ter um luto em casa e outro no trabalho.» 

O Último Sorriso de Miki, angelical, inocente, Bom. A história, tristemente célebre, terá já sido contada dezenas, centenas de vezes. Por isso, numa homenagem ao rapaz de Tatabánya - localidade próxima de Gyor, onde foi a sepultar -, o zerozero incidiu a narrativa sobre a dureza das recordações dos sobreviventes. 

Onde estavam ao receber a sentença definitiva do adeus? E o que gostavam de dizer a Miki, tanto tempo depois? Sim, desafiámos os antigos colegas a colocarem palavras em jeito de cartas de saudade, missivas de amor. 

@Getty / -

«Pensei que o Miki estivesse a perder tempo»

Antes das declarações na primeira pessoa, a viagem às tormentas da fatídica noite de Guimarães. Impressões de dor, uma vulnerabilidade raras vezes associada a estes homens que tantos preferem transformar em super-heróis avessos à imperfeição.   

«Estava a chover muito, o jogo estava muito difícil e nós fizemos o tal golo já perto do fim. Depois houve um lançamento lateral, eu estava de frente para o Miki e vi-o a cair», relata Ricardo Rocha, extremamente emocionado. 

«A minha primeira reação foi calma, pensei sinceramente que ele estivesse a tentar ganhar alguns segundos, algum tempo. Pensei que estivesse a simular uma lesão. Mas depois vi o Sokota e o Tiago em pânico, só aí tive noção da gravidade.»

Miki Fehér
5 títulos oficiais

Da revolta germina a dúvida, os porquês. «O Miki nunca demonstrou qualquer problema. Nada, zero. Fisicamente era um portento, estava em excelentes condições. Fazíamos os exames de início de época, éramos muito controlados, nunca demos por nada. Nas semanas anteriores nunca evidenciou qualquer limitação, raramente se lesionava, não esteve doente. É inacreditável», desabafa o antigo defesa. 

No trajeto entre o hospital de Guimarães e a sua casa, Ricardo recebeu a notícia que ninguém desejava. 

«No final fomos para o hospital, todos juntos», suspira Ricardo Rocha. «Sei que os capitães entraram para uma zona mais interior e ficámos a aguardar. Ficámos a rezar cá fora, mas não nos deram grandes informações. Apenas nos passaram a indicação de que o prognóstico não era bom. A equipa depois seguiu para Lisboa e eu pedi para ficar no Norte.»

Um contacto familiar antecipou o grito de incompreensão. «A minha mulher tem uma tia que é enfermeira e ligámos para ela no caminho do hospital para minha casa. Eu estava com o meu sogro e a minha esposa. Tentámos saber mais através dessa tia e foi ela que nos disse que o Miki tinha falecido. Foi duríssimo.»

A perspetiva de Petit parte também de uma «visita angustiante» ao Hospital da Senhora da Oliveira, onde o óbito haveria de ser declarado.   

«Nessa noite fiquei a dormir no Porto. Ainda entrei no hospital com o Nuno Gomes e o Simão, éramos os três capitães. O presidente Vieira e o treinador Camacho estavam connosco. Falámos com uma equipa médica e disseram-nos que estavam a fazer todos os possíveis para salvá-lo. Sei que o fizeram. No estádio, na ambulância, depois na urgência», discorre o antigo médio das águias, do Boavista e da Seleção Nacional.  

«Eu tinha sido substituído aos 88 minutos, estava ainda no banco quando o vi a cair. Ao longe não percebemos o que estava a acontecer, mas a reação dos jogadores deixou-nos de mãos na cabeça. Vimos toda a gente a correr para lá, o Tiago ajoelhado e a chorar, percebemos que era muito sério», acrescenta, enquanto revive a imagem do amigo caído. 

«As duas equipas médicas entraram, a ambulância entrou, mas lembro-me que não puseram usar o desfibrilhador. Estava a chover muito e tinham medo de um eventual choque, estava tudo molhado. Não sei se podia ter sido diferente sem chuva...»

@Getty / MIGUEL RIOPA

«O Camacho veio ter connosco e disse: 'O Miki acabou de falecer'»

No autocarro da equipa, para LIsboa, seguiu Argel. Miki Fehér era um dos seus protegidos, fruto da época vivida por ambos no FC Porto. 

 «Ficámos muito tempo no balneário, a comoção foi enorme. Mesmo entre os jogadores do Vitória. O Nuno Assis, o Fangueiro, o Romeu, que tinha sido nosso colega no FC Porto. Mas aí nós ainda não sabíamos que o Miki tinha falecido. O Bruno Alves, o Cléber... Ficámos duas horas em agonia no balneário, chegava informação de vários lados, mas alguns diziam que ele estava a melhorar, outros diziam que não. E decidimos ir para o hospital», conta Argel, a partir do Brasil.

«Acabámos por entrar no autocarro, para Lisboa, e já parecia um velório», prossegue, já de voz embargada. A saudade não cessa, o guerreiro Argel dá lugar a um homem fragilizado pela morte de um amigo.

«Não se ouvia um pio, uma voz. Um silêncio assustador, todos a pensarmos no Miki e a rezar por ele. Estávamos a andar talvez há 30 minutos, quando o mister Camacho subiu ao piso de cima, onde estavam os jogadores: 'Olhem, quero dizer-vos que o Miki acabou de falecer'. Ele próprio chorou muito, disse que nunca tinha passado por uma coisa dessas, foi um verdadeiro comandante. Teve a coragem de ser ele a dar-nos a notícia.»

Ricardo, Petit e Argel aceitaram o convite do zerozero. Homenagear a memória do amigo através das palavras. Nos capítulos seguintes estão testemunhos fortes, tal como forte foi a confissão de Fernando Aguiar, feita ao nosso portal anteriormente. Vale a pena recordá-la AQUI

PETIT: «Nunca tiveste um problema com ninguém, Miki»

© Global Imagens / Jorge Amaral

27 JOGOS AO LADO DE MIKI FEHÉR NAS ÉPOCAS 2002/2003 E 2003/2004

«Pois é, Miki. Andavas sempre com um sorriso de orelha a orelha. Não eras dos que mais falavas, eras mais observador. Mas alinhavas nas nossas brincadeiras quando tinhas de alinhar. Eras um rapaz muito bom no nosso grupo, dedicado, focado na profissão, trabalhador. Nunca tiveste nenhum problema com ninguém, mesmo não sendo tu um titular absoluto. 

Tinha muita qualidade, amigo. Eras um avançado robusto, fisicamente forte, sempre a trabalhar bem, independentemente se jogavas ou se não jogavas. Eras intenso, jogavas bem na área, atacavas bem os cruzamentos. Seguravas bem a bola, finalizavas bem, eras goleador. E adoravas trabalhar. 

Não falávamos muito em questões de saúde, mas depois do teu adeus entrámos todos em pânico. Se te podia acontecer a ti, podia acontecer a nós. Mesmo com a bateria de exames que todos fazíamos. Foi difícil ultrapassar esses primeiros momentos, esses primeiros dias de treinos depois do que se passou contigo.

Aqueles minutos pareceram-me horas. Nunca os esquecerei. Angústia, sofrimento, o nosso amigo ali no chão. Nunca pensámos passar algum dia por uma coisa dessas. 

No dia a seguir à tua partida, fomos para Lisboa. O Benfica organizou-te uma homenagem bonita e o velório. E fomos todos à Hungria, em comitiva, assistir ao teu funeral. Nós nem falávamos uns com os outros, o que podíamos dizer?   

O primeiro jogo sem ti foi uma brutalidade. Acho que ganhámos 2-0 à Académica e no primeiro golo atirámo-nos todos para o chão, a chorar, abraçados. Apontámos para o céu, para ti. 

Criámos um cacifo para ti em todos os estádios. Uma espécie de memorial. Deu-nos uma força especial, a esta distância não duvido. O Benfica não ganhava nada há dez anos e conseguimos derrotar o FC Porto na final da Taça de Portugal. Mesmo em 2005, no título nacional, pensámos muito em ti.

Conhecemos os teus pais e a tua irmã. Sei que tinham um cafezinho na Hungria e trabalharam muito para te dar uma boa vida. Pessoas extraordinárias, que estavam ali a gerir a perda de um filho, mas sempre a sorrir. 

Naquela altura não havia a sensibilidade de esconder a morte na televisão. Foi uma morte em direto. E a televisão mostrou tudo, agora não é assim. Os jogadores rodeiam quem está no chão, a realização aponta para outro lado, nessa noite mostraram tudo. 

Foi um choque, um trauma. 20 anos depois, há coisas que fiz e das quais não me lembro. Não me lembro de ir para o balneário, de estar a tomar banho, não me lembro de nada. Apagou-se, julgo que pela intensidade do choque trauma. Só me lembro das cenas no relvado e de estar no hospital. Fui para casa, depois para Lisboa e tudo se apagou. A minha mente só tinha lugar para ti.

Foste uma pessoa boa, um amigo, que partilhou muito comigo. Viagens, estágios, brincadeiras, e depois já não estavas ali. Foi um vazio, uma pancada violenta. Até sempre, querido Miki.» 
 

RICARDO ROCHA: «Nas noites a seguir deixei de dormir»

© Getty / LUIS VIEIRA

49 JOGOS COM MIKI FEHÉR, ENTRE SC BRAGA (2000/2001) E BENFICA (2002/2003 E 2003/2004)

«Olá Miki, mereces todas as homenagens. Parece que foi ontem, está tudo ainda muito vivo. Conheci-te em Braga, porque estiveste lá emprestado pelo FC Porto. Eu, o Tiago e tu criámos uma relação especial, já no Benfica. Andávamos muitas vezes juntos.

Eras espetacular, uma excelente pessoa, muito simpático, disponível e humilde. Em Braga fizeste muitos golos, ganhaste estatuto, as coisas correram-te bem. Tinhas um porte físico vistoso, davas nas vistas. E tinhas um sorriso maravilhoso, eras um rapaz impecável. No Benfica foi mais difícil. A pressão foi diferente, não estavas a jogar muito e fechaste-te um bocadinho. 

A tua morte foi uma ironia do céu, foi insuportável. Antes de caíres, tinhas feito o passe para o nosso golo, o golo do Fernando Aguiar. Aliás, nessa fase estavas a aparecer, já a ter mais minutos e aconteceu-te aquilo. Ainda por cima a sorrir, aquele sorriso só teu. Coisas do destino, da vida, inexplicáveis.

Toda a gente te adorava. Estavas bem com todos, nunca criaste absolutamente problemas com ninguém. Não te metias com ninguém, fazias o teu trabalhinho e desarmava-nos com o teu sorriso. O futebol é muito feito de confiança, os avançados talvez sejam o melhor exemplo, mas tu nunca deixaste de sorrir. Mesmo quando os golos deixaram de aparecer.
 
Eu, o Tiago e o Sokota falávamos muito contigo, mas tinhas mais colegas que eram mesmo teus amigos. O Sokota foi o primeiro a chegar a ti quando o teu coração parou. Ele era outro rapaz maravilhoso. Lembro-me também do Tiago e do Bruno Alves, que jogava no Vitória, te ajudarem. 

Gostava de falar mais vezes com os meus ex-colegas sobre ti. Infelizmente, acho que até o evitamos. Guardamos muito essa dor para nós. Principalmente os que estavam em Guimarães nessa noite. Os nossos sentimentos são quase um segredo e esta conversa é uma das poucas exceções. 

Nos dias a seguir deixei de dormir. Andava com palpitações, com medo. Fui ao Estádio Universitário fazer provas de esforço, houve uma preocupação tremenda porque passámos a pensar que isso também nos podia acontecer a nós. 

Gostava de mandar um abraço aos teus pais, que conhecemos bem, na pior das circunstâncias. Pareceram-me pessoas extraordinárias. Até sempre, meu loirinho.» 

ARGEL: «PARECE QUE ALGUÉM TE APAGOU A LUZ»

© Getty / MIGUEL RIOPA

37 JOGOS EM CAMPO COM FEHÉR, ENTRE FC PORTO (1999/2000) E BENFICA (2002/2003 E 2003/2004)

«Foste um grande amigo, Miki. Jogámos juntos no FC Porto e isso deixou-nos bastante próximos também no Benfica. Nós, o Drulovic e o Zahovic falávamos dos tempos nas Antas, era normal. Eras impecável e um avançado fantástico. Eras muito querido por todos, criavas harmonia no balneário.
 
A tua morte foi uma tragédia sem fim, não havia nenhum indício de que isso podia suceder. Eu conhecia-te há anos e nunca tiveste uma tontura, um desmaio, algum sintoma que indicasse um problema. Eras grande, forte, cabeceavas bem, rematavas bem, jogavas na seleção da Hungria. Não me lembro de teres alguma lesão, algum problema muscular. Nós fazíamos exames até ao fio do cabelo, como é que o teu problema nunca foi identificado? É impressionante.

Todos os exames possíveis e imaginários eram feitos no Benfica. Eram três/quatro dias a analisar o corpo da cabeça aos pés. 

Saíamos com as nossas mulheres para jantar, falávamos também muito na sauna, são momentos que me deixam saudades. Não percebo como foi possível acontecer aquilo. Parece que alguém te apagou a luz, a eletricidade, e tu caíste. Rezo todos os dias por ti. Tinhas um futuro brilhante, não consigo aceitar o teu adeus.
 
Não quero deixar esquecer o teu nome, porque foste um homem corretíssimo. Sempre foste um tipo de bem com a vida, nunca foste rezingão ou chato. Tinhas uma liberdade grande comigo e com a malta que tinha jogado no FC Porto, mas também com o Sokota. Lembro-me disso.
 
Falavas um português perfeito. Vou lembrar-te sempre e é um prazer estar aqui a falar de ti. Por muito que isto me doa. Na altura, acho que o Benfica te fez homenagens muito bonitas, só não conseguiu devolver-te a vida. O presidente Vieira, o treinador Camacho, ambos sofreram muito por ti.
 
Joguei 18 anos, sou treinador há 16 e esse foi o dia mais negro da minha carreira. A maior derrota da minha vida. Num jogo duro, difícil, entraste e participaste na jogada do golo. Fomos para o aquecimento e começou a chuva, sempre, sempre. E nunca mais parou.

A viagem de Guimarães para Lisboa foi terrível. Chegámos à Luz e o primeiro carro que vimos foi o teu, um BMW azul. Sei que gostavas muito de carros. 

Portugal parou para te ver. Tinhas jogado no Porto e no Benfica, nos grandes de Portugal. Eras famoso, também tinhas feito uma grande época no Braga. O velório passou em direto, o funeral também. Eras um rapaz feliz e eu tinha uma carinho gigante por ti. 

Todos fizeram o que podiam ter feito por ti na noite maldita. E o Benfica foi fantástico a organizar as tuas exéquias. O presidente Vieira foi ao Porto buscar os teus pais e depois fretou um charter para levarmos o teu corpo para a tua cidade na Hungria.
 
Saudade. Ficou a saudade. Terias sido um dos grandes avançados do futebol europeu, tinhas só 24 anos. Eu acreditava muito em ti, motivava-te sempre, sentia que podias ser o avançado titular do Benfica. 

Mereces todas as homenagens. Nunca imaginámos perder o nosso companheiro. Ganhámos a Taça de Portugal, contra um FC Porto campeão da Europa, e esse dia no Jamor também foi fortíssimo. O jogo foi bonito, duas grandes equipas, dois grandes treinadores e acabámos por ganhar. Homenageámos muito o teu nome e o Benfica já não ganhava nada há dez anos. Foi um dia fantástico. 

Hoje brindo a ti, meu querido Miki.»

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