A Agatha Christie segredou-me

8 meses atrás 82

Comecei aos treze anos a ler os livros desta autora policial durante aqueles oito dias de cama quando estava com gripe, que se curava com repouso e remédios adequados. Depois do febrão passar, a convalescença era óptima. Não se ia ao liceu e podia-se ler. Com aquela idade já podia ler policiais e como a minha mãe era fã da Agatha Christie tinha muitos à mão. Não podia ainda andar pela casa, mas davam-me os livros. Começava e não podia pô-los de lado.

O primeiro que li foi “O homem de fato castanho”, relatado quase sempre na primeira pessoa pelo Sir Eustace Pedler. Entrei na história, percebi a psicologia das personagens e quase no princípio descobri o criminoso. Sim, só podia ser… E era.

Muito cedo habituei-me então ao raciocínio da autora. Mais tarde percebi que a Mrs. Christie, nome pelo qual ficou conhecida durante toda a sua vida literária mesmo quando se casou pela segunda vez com Max Mallowan, foi influenciada pela leitura de muitas obras de Sir Arthur Conan Doyle durante uma doença que teve e a manteve em casa muito tempo quando era jovem. Um dos primeiros livros da autora foi “The Big Four”, 1927 (lembremos o “The Sign of Four” de Conan Doyle); a dupla Poirot/Hastings e a dupla Sherlock Holmes e Dr. Watson; escritórios com janelas e portas fechadas, sem possibilidade de saída, em ambos os autores, mas onde acontecem crimes… Não, não aponto sintomas de plágio algum. Influência, sim.

É claro que existem escolas de pensamento e escolas literárias. Em Conan Doyle encontro uma tecnicidade perfeita na execução do crime e uma mente perfeita na sua resolução; nos detectives de Agatha Christie, Poirot, Miss Marple, Tommy & Tuppence, Superintendent Battle encontro uma inteligência e intuição agudas, mas sobretudo uma disposição psicológica para compreender as pessoas, que leva a descobrir o crime no móbil e, logo, o seu agente ou vice-versa.

Como veem, há, apesar de uma influência de estilo literário de Conan Doyle em Agatha Christie, uma abismo no processo de actuar, o que é relevante, no fundo, neste tipo de romance. Dos fogs londrinos e paisagens do campo quase selvagens, passámos a uma Londres com chuva e algum nevoeiro e a uma província com vilas bem tratadas que albergam pessoas respeitáveis, mas que muitas vezes traçam objectivos mortais.

Agatha Christie criou o “cosy crime”, o “crime em família”, onde a psicologia das personagens é tudo. Se alguém deixa as chaves de casa não no sítio habitual é porque passou-se alguma coisa ou quem sabe se a pessoa não é esse alguém? Uma pessoa disfarçada que não conhece os pequenos gestos do outro?

Autores e autoras policiais começaram a proliferar em Londres no princípio do século XX. Ainda há quem os prefira à nossa heroína. Nunca consegui perceber porquê. As suas histórias são construídas de uma maneira estranha, ao ponto de, numa delas, de uma destas autoras, cujo nome me dispenso de citar, o crime passa-se antes de jantar numa grande casa de família, quando o gong soa para que esta se junte ao fundo das escadas e então o quadro eléctrico vai-se abaixo. Um clássico.

A Agatha Christie podia ter usado este truque, o que nunca podia ter usado é o que se passou a seguir, que se sabe no fim. Quando as luzes voltaram, havia um cadáver. O detective descobre que foi uma pessoa do sexo feminino que fez com que as luzes fossem apagadas uns 30 segundos e ela que estava no cimo das escadas (alibi – o homem a ser assassinado estava cá em baixo) desceu a deslizar pelo corrimão!!! Nunca, mas nunca, a Agatha Christie pensaria neste absurdo.

Pessoas de boas famílias podem matar, mas não pensariam no ridículo, senão ordinário, numa adulta, a deslizar assim. Só as histórias da Agatha Christie têm nexo em tudo. Sabem, tudo parece possível em cada situação. E também nunca fala de classes embora estejam lá.

A Agatha Christie segredou-me: “Explicar a classe social de algumas das personagens na narração, para quê? Vê-se logo! A maneira como falam, o status que ocupam e, se alguma vez subiram na vida e se isso é evidentemente importante para a trama do livro, então esse, por exemplo Sir… e Lady…, na narrativa basta dizer – apesar do seu imenso dinheiro, conservam alguns modos e palavras de tempos idos mas são uns queridos.”– Aquela insistência em dar de bandeja a classe é deslocada e é menorizar o leitor.

A Agatha Christie segredou-me que não explicar o desnecessário é tornar a obra literária e, neste caso, policial e psicológica, num filme aos nossos olhos da imaginação. Fez-me perceber que tudo fica à nossa frente enquanto devoramos as páginas. As suas obras, quer policiais quer românticas, estas escritas sob o pseudónimo de Mary Westmacott, passam à nossa frente deste modo com uma elegância rara.

Mulher com uma educação clássica profunda, usou-a nas suas obras, juntamente com o que aprendeu com o segundo marido, Max Mallowan, arqueólogo, mesmo in loco nas escavações no Iraque e na Síria. Sem dar opiniões políticas, excepto na referência a ditaduras imaginárias, graças às suas viagens, à sua cultura e inteligência, deixa-nos um cepticismo em relação ao dualismo democracia ocidental e às culturas que conheceu bem na época, no Médio Oriente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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