A creche e a abolição do homem

1 mes atrás 55

Chamemos-lhes dogma na medida em que o debate é invariavelmente capturado por um conjunto de crenças dominantes que silenciam outras propostas de resposta às necessidades da sociedade. Visto que o espaço de debate passa a ser um terreno seco, a opinião pública deixa-se levar por algumas das seguintes crenças sem contraditório. Em primeiro lugar, acredita-se que a criança receberá sempre melhores estímulos sociais e cognitivos na creche e, consequentemente, os pais que adiam a integração dos filhos nesse ambiente, serão vistos socialmente como desleixados.

Em segundo lugar, impera a ideia de que o Estado é sempre melhor tutor do que a família, nomeadamente na transmissão de valores morais, pelo que caberá aos técnicos especializados moldar e vigiar o desenvolvimento das crianças, dar afectos e ocupar o espaço das primeiras memórias.

Em terceiro lugar, afirma-se categoricamente que a universalização do acesso às creches é uma das políticas mais eficazes de apoio à família e de estímulo à natalidade. Esta afirmação não só carece de provas dadas quanto à prometida eficiência no estímulo à natalidade, como ainda ignora os efeitos emocionais, físicos e cognitivos de tal educação nas crianças, já que a sua principal finalidade é o recrutamento eficaz de novas peças na engrenagem do mercado de trabalho, bem como o rápido regresso da mulher ao posto de trabalho (reprimindo também a plena fruição da experiência maternal).

Olhando com realismo para as circunstâncias do presente, é evidente que grande parte das famílias enfrenta duras pressões laborais que implicam decisões difíceis, acabando por ver nas creches a sua única tábua de salvação. Mas recorrer a este serviço por necessidade é muito diferente de apresentar a integração das crianças nesse ambiente como algo ideal e até obrigatório.

Posto isto, desafiar as crenças dominantes atrás referidas não significa negar a utilidade das creches, mas sim evitar a romantização e alertar para alguns equívocos que dali podem decorrer. Nomeadamente, o equívoco de que o acesso à creche é um direito social que tem de ser garantido pelo Estado. Não sendo considerada legalmente uma etapa obrigatória do sistema de ensino (louve-se o bom senso na preservação da soberania familiar, por enquanto), apoiar o acesso à creche insere-se nas opções de políticas públicas que podem variar conforme a disponibilidade de recursos financeiros e conforme as opções governativas na área da assistência social e do apoio ao trabalho e à família.

As opções políticas nunca são neutras e carregam consigo crenças sobre aquilo que é melhor para a sociedade. É por isso que podemos debater se achamos bom e saudável que a norma da nossa sociedade seja afastar os filhos da família em tenra idade, delegando-os aos cuidados pouco personalizados de um técnico que divide as suas atenções por dezenas de outras crianças durante todo o horário laboral dos adultos.

Cortar repentinamente a ligação entre pais e filhos é uma política ao serviço do bem-estar de quem? Se o governo se preocupa em apoiar as famílias, não seria mais razoável aliviar generosamente a carga fiscal, especialmente (e justamente) em função do número de filhos? Podem ainda ser equacionados incentivos ao trabalho a tempo parcial e o alargamento de licenças de parentalidade que permitam a maior disponibilidade dos pais para educarem os filhos.

Os recursos não são ilimitados, como tal, é essencial pensar na sua aplicação mais eficiente, mas sobretudo mais favorável à preservação dos vínculos familiares e ao bom desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças. É compreensível que as políticas mais populares no imediato sejam aquelas que lançam soluções rápidas e gratuitas, porém, tais políticas acabam por gerar consequências não antecipadas e que podem ferir irreversivelmente os corpos sociais.

A família é o primeiro espaço de socialização, de formação de identidade e de absorção de hábitos de conduta, por isso, é fundamental olhar com desconfiança para qualquer intenção do Estado de se arrogar a cuidar da consciência moral e dos primeiros hábitos dos nossos filhos. Sob a capa da defesa da igualdade social, da emancipação individual ou do politicamente correcto, escondem-se as intenções de formatar os novos membros da sociedade, enfraquecer a autoridade da família, combater as vocações femininas e masculinas, quebrar o ciclo de transmissão de valores entre gerações e moldar contribuintes amestrados e consumidores desenraizados.

O tempo é o recurso mais caro que temos e o Estado sabe disso, forçando-nos a abdicar dos nossos bens e valores mais preciosos. Saibamos, ao menos, reconhecer que existem experiências humanas impossíveis de recuperar se obedecermos apenas aos ditames de uma lógica carreirista que transforma o momento mais sensível e precioso das crianças num turbilhão de estímulos e ansiedade, à mercê de cuidadores anónimos e de experiências de infância padronizadas em “centros de incubação e condicionamento”, ao jeito da distopia de Huxley.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

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