A crise de Gaza II

6 meses atrás 47

Será que o Estado de Israel perdeu a humanidade? O excesso, a desproporção e a brutalidade da resposta ao ataque – criminoso do Hamas são inquestionáveis. As evidências são escabrosas, tantos são os mortos e tanta é a destruição de infraestruturas destinadas à vida social dos palestinianos. O Tribunal Internacional de Justiça já decretou medidas provisórias com vista a moderar a ação militar em curso, o que Israel contesta e ignora.

Neste quadro, importa reafirmar uma ideia fundamental: o monopólio do uso da força é confiado aos Estados democráticos a troco da garantia de que a mesma só é usada nos termos previstos na lei, se for estritamente necessária para proteger bens e interesses valiosos sob lesão ou ameaça de lesão e se for usada de forma proporcional. Ora, sucedem-se os ataques militares a alvos civis, a deslocação forçada de pessoas, a privação de bens essenciais e a supressão de equipamentos sociais, de saúde e de habitação, medidas que atingem a generalidade da população. Porém, apesar da extrema gravidade da ação do Hamas, não se pode aceitar que a resposta de Israel, alegadamente ao abrigo dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, implique e justifique tamanhos desmandos sobre a população civil. Note-se que se ignoram a extensão e a eficácia dos danos causados ao Hamas, mas sabe-se que o ódio e o ressentimento contra Israel aumentam a cada dia que passa.

Assim, é legítimo afirmar que os fins de ação em curso, a saber, a libertação dos reféns, a eliminação do Hamas e a garantia de segurança de Israel, não estão a ser atingidos. E se tais objetivos não estão a ser atingidos, as medidas aplicadas não têm qualquer utilidade, salvo sob a perspetiva, inadmissível, da satisfação do desejo de vingança e de punição. Devendo significar-se, em todo o caso, que a morte de cerca de 30.000 pessoas (na sua esmagadora maioria, civis) não poderia ser aceite como necessária ou proporcional mesmo que isso, em tese, pudesse assegurar a realização dos anteditos fins.

Imaginava-se que, volvidos tantos meses desde o ignominioso 7 de outubro de 2023, isto já tivesse sido percebido. Debalde, pois o Governo de Israel não arrepia caminho. É o que sucede quando um aparelho de Estado é capturado por radicais. As medidas aplicadas – para além de inúteis e desumanas são contraproducentes e lesivas dos interesses de Israel. E tamanho é o dano que pode vir a ser causado a Israel que o Papa Francisco se viu colocado na necessidade de lançar um justo apelo contra o antissemitismo. Pois, agora, mais do que nunca, teremos de desenvolver um esforço para distinguir os israelitas e o povo judaico dos líderes do seu Governo de hoje.

Líderes que convivem com métodos medievais de reação a atos praticados por civis no contexto da sua interação com militares. Um meio de comunicação social divulgou um exemplo disto mesmo. O caso de um homem que arremessou uma pedra a um veículo militar. Em resposta, o exército israelita partiu a perna do homem e expôs a sua agonia num vídeo. A normalização da violência extrema é uma consequência do discurso político radical de tais dirigentes fanáticos. Acumulam-se as declarações de quebra absoluta de empatia face aos palestinianos. E essas declarações contribuem para modelar a conduta dos militares no terreno. Por isso, também são noticiados atos de celebração e glorificação de supostos feitos militares sobre alvos civis. Ora, o ponto é que qualquer Estado democrático, mesmo quando é agredido, tem o dever de controlar os termos da sua resposta. O que, manifestamente, não está a acontecer.

E é confrangedor o estado de abandono dos palestinianos. Ninguém, verdadeiramente, os ajuda. Estão inteiramente à mercê da opressão e manipulação do Hamas e da sanha destruidora da máquina de guerra israelita. António Guterres e os serviços da ONU, não obstante o seu empenho, são impotentes perante os bloqueios e a passividade da comunidade internacional. Neste cenário, só a mobilização em larga escala da opinião pública internacional poderá inverter o atual estado de coisas. A ladainha de muitos líderes ocidentais de que Israel tem o direito de se defender é ultrajante perante os factos em curso, pois a legítima defesa foi há muito excedida. Urge, por isso, como aconteceu em muitas outras situações, que as pessoas saiam à rua e exijam a tomada de medidas concretas que imponham um cessar-fogo imediato e, bem assim, a imediata libertação dos reféns.

Repete-se que não se pode olvidar a extrema gravidade da ação do Hamas. Mas são muitos aqueles que, tendo sempre defendido o direito à existência do Estado de Israel e pugnado pela prevalência, na memória histórica universal, da recordação do sofrimento infligido ao povo judaico ao longo dos tempos, hoje se sentem atónitos e frustrados com a atuação do governo israelita.

E neste cenário dramático, importa especialmente impedir que a indignação, contra a violação dos direitos humanos, perca força com a passagem do tempo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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