"A felicidade é adormecer toda nua num quarto de hotel nas Astúrias"

9 meses atrás 92

Há muitas teorias sobre a felicidade, sobre o quão efémera ou acerca do quão fantasiosa ela é; há até quem considere tudo isso um exagero romântico, uma figura de estilo lendária que o mundo usa, agitando-a diante dos nossos olhos para que continuemos em frente, a persegui-la, sem nunca desistir. Há quem diga que a felicidade não existe. Pois bem, posso garantir que ela existe. A felicidade é adormecer toda nua num quarto de hotel nas Astúrias, com o teu amor, no pico da paixão, também todo nu, abraçado a ti - e, na manhã seguinte, acordar a sentir o seu corpo tenso a roçar-se no teu e, ainda meio ensonada, senti-lo a entrar em ti. É isso a felicidade.

Nada disto é ilusão ou a minha fantasia. Tive o privilégio de viver dias assim durante uma das mais loucas, divertidas e apaixonantes viagens da minha vida. Ia dizer que foi inesquecível, mas isso seria pouco - há tanta coisa inesquecível, às vezes até pequenas coisas, detalhes, gestos, miniaturas da existência que guardamos na memória e que, volta não volta, se acendem na memória e vão ficando, ficando (agora que penso nisso, percebo que do Miguel guardei muito pouco das feições, do cheiro, da voz, quase não me lembro de nada - contudo, lembro-me perfeitamente dele ao levantar-se da cama e, antes de tudo, ainda nu, dar corda a um velho relógio com que andava sempre). 

Essa aventura não foi inesquecível: essa aventura terá sido o ponto máximo da minha vida. Sim, depois aconteceram coisas muito mais importantes: terminei o curso, conheci outras pessoas, casei-me com uma dessas pessoas (e sou feliz - nestes casos, quando digo "feliz", refiro-me ao modo convencional e conformado como as pessoas veem a felicidade: tudo é estável, certo, de certo modo agradável, com os altos e baixos de uma vida comum a que nada falta, dos bens materiais aos laços familiares; todavia, essa felicidade convencional e comummente aceite não é da mesma estirpe que esta outra), tive dois filhos e uma filha e espero que a vida continue assim, sempre em frente, entre o slow motion e a velocidade de cruzeiro, até que venham os netos, depois a reforma e eventualmente as complicações geriátricas a que todos - todos os que têm a sorte de lá chegar, entenda-se - estamos fadados. Agora, essa aventura foi, acredito, aquilo para que nascemos. Se a existência é uma dádiva, estas experiências em que somos libertadas e extasiadas, amadas e enlouquecidas são bónus, os extras da vida, um certificado divino a dizer que tudo valeu a pena, desde a conceção biológica aos esforços familiares para que chegássemos vivas - e com bom aproveitamento escolar - à vida adulta.

Conheci o Miguel quando fiz Erasmus em Salamanca. O Miguel é espanhol. Ou era. Não sei, perdi-lhe o rasto, perdemos contacto - e está tudo bem, porque acredito que a nossa função na vida um do outro se esgotou ali e todos os pequenos e dolorosos prolongamentos do relacionamento que tínhamos foram apenas fruto da inocência e da ingenuidade de ambos, pois há coisas que são somente o que são e tudo o que se lhes acrescentar é desperdício, perda de tempo e disparate. Foi o caso. 

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O Miguel era galego - falo no pretérito para não correr riscos: à época dos factos relatados, era assim que ele era; agora, tanto me faz e nem é relevante para o caso. Nasceu em Ferrol, foi pequeno para a Corunha, onde cresceu. Aos 16 anos, o espírito aventureiro que felizmente ainda conservava quando o conheci fê-lo pegar na mochila e pôr-se a andar. Deixou a casa dos pais, vagueou pelo Norte de Espanha, foi até ao País Basco francês, voltou ao país-natal, passou umas temporadas em Barcelona, onde achou que ia viver para sempre - tudo isto foi ele que me contou -, até que se meteu com a miúda errada com o namorado errado e teve de fugir da cidade. Depois de mais umas quantas peripécias sem importância, apanhou mais uma boleia e saiu em Salamanca. E foi nessa cidade que se fixou. Teve vários trabalhos, até encontrar aquele que, por alguma razão que eu nunca consegui ou conseguirei decifrar, o prendeu: ser talhante. Porque é que alguém tem orgulho e prazer em trabalhar na Carnicería Castilla? Também eu lhe fiz várias vezes essa pergunta. E o Miguel olhava para mim e ria-se sempre, como se guardasse um segredo, e abanava a cabeça e dizia "me gusta, simplesmente" e encolhia os ombros.

O Miguel era mais velho do que eu 13 anos. Eu cheguei a Salamanca com vinte, ele estava a caminho dos 34. Não nos conhecemos na carnicería, se é isso que vos inquieta. Conhecemo-nos num fim de tarde nos arredores da Catedral Velha: eu olhava atentamente aquelas paredes quase milenares e os seus detalhes, perscrutando-as intensamente, quando um homem se abeirou de mim e me perguntou se estava à procura do astronauta. Eu ri-me e disse-lhe que sim. E ele, amável, mostrou-me onde estava. Conversámos, tomámos um copo de vinho, explicou-me as características elementares dos Rioja e o que os diferenciava dos Ribera, explicou-me o que significava "crianza" num vinho e foi-me contando algumas histórias da sua vida. 

Era um galã e eu soube-o desde o primeiro momento. Mas que mal tem uma mulher deixar-se encantar por um homem encantador, mesmo que se trate de um jogador, um player? Eu estava ali para experimentar coisas e conhecer pessoas, ter mundo, e o Miguel era o atalho mais eficiente, bonito, culto e charmoso - mesmo trabalhando na Carnicería Castilla - que havia para chegar a tudo isso. O termo-nos apaixonado, mas apaixonado a sério, sem hesitações, concessões ou hesitações, foi um extra de felicidade que nos aconteceu. E eu acredito que pode acontecer sempre que duas pessoas se sintonizam e se deixam ir, aceitando que a vida é feita destas ilusões e que essas, quando concretizadas, podem ser aquilo a que chamamos felicidade.

* Se conhecer uma história real envie-a para [email protected]. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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