A guerra como instrumento regulador das Relações Internacionais

1 semana atrás 51

Imaginemos a guerra como uma espada. Este instrumento corta através da carne anatómica dos seres humanos, metaforicamente atravessando e rompendo a coexistência internacional.

A guerra dilacera os tecidos sociais e políticos das nações, deixando cicatrizes profundas e dolorosas. Esta metáfora ressalta a importância da natureza da guerra actualmente, inerente às mudanças nas relações internacionais. A guerra moderna transcende as fronteiras físicas e ideológicas, penetrando nas esferas digitais e psicológicas, moldando a percepção pública e redefinindo os limites do que é considerado aceitável em termos de conflito armado.

Assistimos a uma intensificação e expansão da guerra a nível global, em vários lugares estratégicos que requerem análise para compreender como a instrumentalização da violência está a ser utilizada para redefinir esferas de influência e poder.

Como observadores atentos, somos desafiados a decifrar as intrincadas peças deste tabuleiro geopolítico, onde cada conflito não representa apenas o resultado do nacionalismo, mas sim uma luta de imperialismos camuflados de várias potências que procuram afirmar-se e moldar o sistema hegemónico outrora dominado pelos Estados Unidos, em direcção a um ambiente multipolar ou multiplexo ainda incerto, mas com as suas próprias características imperialistas.

Historicamente, as guerras deixam marcas no tempo e no espaço, que provocam profundas modificações na ordem psicológica da humanidade, gerando sempre alterações na estrutura política de um Estado. Mbembe defende que “o estado de guerra na África contemporânea deveria ser concebido como uma experiência cultural geral que configura identidades, tal como o fazem a família, a escola e outras instituições sociais”.

Por isso, os cientistas sociais têm procurado enquadrar a guerra dentro de uma acção humana calculada e politicamente pensada e decidida pelos actores políticos. Podendo, por conseguinte, ser encarada como uma guerra justa, justificada, por razões humanitárias e dentro dos pressupostos, legais e ilegal.

Um reflexo da fluidez e evolução das relações internacionais

As guerras continuam a ser um mecanismo político tão útil como absurdo e, por isso, raramente as guerras são defendidas abertamente por um Estado. Ademais, existe um empreendimento humano moderno alicerçado no direito internacional, sobretudo na protecção dos direitos humanos.

Esta orientação na política externa visa, essencialmente, a materialização do idealismo kantiano de “paz perpétua” no quadro do sistema internacional. Porém, nenhum Estado deixou de contemplar na sua ordem jurídica interna a possibilidade de declarar o “estado guerra” como uma possibilidade real.

A instauração de um “estado de guerra” total ou parcial provoca sempre um estado de indistinção humana, no qual viver e morrer são situações contingenciais. O estado de guerra jurídico não tem força normativa de conter os excessos e evitar a morte dos inocentes e da destruição de um território. É mesmo o zénite da soberania estadual como a expressão da sua potência, gerando, por isso, a possibilidade de alteração na ordem internacional.

A guerra demonstra que os regimes democráticos e não democráticos continuam a encontrar na guerra um mecanismo eficiente e eficaz para manter a sua influência em certas regiões do mundo.

As democracias evitam, somente, os danos directos aos seus cidadãos, utilizando, para efeito, várias formas de interferências, através do apoio político-diplomático, patrocínio ou financiando grupos militares para extracção de recursos, ou mesmo intervenção militar directa, actualmente drones e meios de grande eficácia militar.

No entanto, as democracias preservam a consciência moral dos seus cidadãos e o idealismo pacifista através da realização da guerra fora das suas fronteiras e, assim, podem continuar um Estado que defende os seus interesses sem calcular os meios.

No cenário contemporâneo, as guerras assumem uma nova complexidade, impulsionadas pela fusão de estratégias convencionais com tácticas não convencionais, sendo denominadas de guerras híbridas. Estas guerras podem ser vistas como um reflexo da natureza fluida e em constante evolução das relações internacionais, desafiando as concepções tradicionais de guerra e poder, e, por sua vez, exigindo respostas adaptáveis e multifacetadas por parte dos actores estatais e não estatais.

Para além disso, a possibilidade de conflitos espaciais acrescenta uma nova dimensão às dinâmicas do poder global. O espaço sideral, anteriormente considerado um ambiente neutro e fora dos limites das disputas terrestres, agora é um potencial campo de batalha estratégico.

O Tratado do Espaço Exterior de 1967 foi um marco importante na tentativa de prevenir a proliferação de armas nucleares no espaço. Contudo, apesar dos esforços internacionais para manter o espaço livre de armas nucleares, o desenvolvimento e o teste de tecnologias anti-satélite (ASAT) por várias potências demonstram que a militarização do espaço continua sendo uma preocupação premente.

O potencial uso de armas nucleares no espaço, seja como parte de um ataque directo contra alvos terrestres ou como parte de uma estratégia de dissuasão, não é visto como um último recurso desesperado, mas sim como uma opção estratégica cirúrgica.

Apesar das análises que refutam a possibilidade de uma guerra nuclear, a realidade é que a ideia de uma intervenção nuclear limitada, destinada a alcançar objectivos específicos sem desencadear uma catástrofe global é uma possibilidade cada vez mais plausível. Este cenário extremamente volátil revela a delicada situação em que nos encontramos.

No contexto atua, podemos ver a guerra como um catalisador de mudanças, moldando e, simultaneamente, regulando o sistema internacional.

Na tradição do pensamento político, desde os escritos de pensadores como Maquiavel e Hobbes, até teorias contemporâneas de relações internacionais, a guerra é frequentemente considerada não apenas como um evento isolado, mas como um fenómeno que transcende o âmbito militar, influenciando a ordem social, política e cultural. Os conflitos regionais que surgem podem alterar alianças, rearranjar fronteiras e redefinir esferas de influência. A ascensão e a queda de impérios ao longo da história frequentemente foram acompanhadas por guerras que reconfiguraram o mapa geopolítico.

Narrativa discursiva vs. diplomacia de conciliação

A geopolítica global começa a ser modificada no campo da retórica e da análise académica e, sobretudo, jornalística, que reconstroem uma realidade política imaginária e sem mensurar o verdadeiro impacto da guerra com a actual capacidade militar instalada nas superpotências. Por isso, qualquer guerra antes de deflagrar instala-se na narrativa discursiva como inevitável para conter uma ameaça, retirando, por conseguinte, espaço a um discurso de paz e de diplomacia de conciliação de interesses, por vezes, antagónicos.

A guerra impõe-se como solução única e de um pragmatismo maquiavélico, sem consultar a vontade do povo na qualidade de hipotético “soberano”. No entanto, são as pessoas do povo que serão reduzidas a “uma unidade estatística sobre o impacto directo de um conflito armado, que alimenta as bases de dados dos centros de estudo dedicados aos conflitos armados e à paz”. Com a agravante que “as unidades estatísticas não têm direito a um rosto e a um funeral que marca o fim da sua passagem na terra, encerrando, por conseguinte, um ciclo de vida”.

Neste sentido, o desrespeito flagrante pela vida humana em detrimento da protecção dos interesses nacionais é uma resposta inadequada à crescente complexidade dos desafios de segurança global. Ignorar o valor da vida humana em favor de objectivos geopolíticos de curto prazo é uma resposta simplista, que subestima a intricada teia de factores que moldam a segurança contemporânea.

Tal como o mundo está em transição, a área das relações internacionais e da ciência política também se encontra em transição, necessitando questionar os elementos que se lhe apresentam e procurando navegar na incerteza, não com análises pautadas pela certeza, mas compreendendo a efemeridade do momento, em que o equilíbrio e o extremismo mudam de um dia para outro.

O papel do cientista político não é alimentar a narrativa discursiva da guerra instaurada, mas sim desafiá-la e buscar alternativas mais humanas e sustentáveis para lidar com as tensões internacionais e as ameaças à segurança. Neste sentido, é fundamental que o cientista político não se limite apenas a compreender e explicar os conflitos, mas também trabalhe activamente para transformar as dinâmicas que os perpetuam, promovendo um mundo mais pacífico e seguro para todos.

Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia.

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