A lei que ameaça o desporto nacional: «Corremos o risco de não ter jogadores para a primeira jornada»

2 meses atrás 45

É o verão mais atribulado de que há memória em Portugal no que ao mercado diz respeito. Não porque está a ser marcado por mais ou menos movimentações, por nomes mais ou menos sonantes. Isso continua semelhante a muitos outros anos. É o verão mais atribulado porque há um novo desafio aos clubes: a lei. Confuso? Nós explicamos, caro leitor.

Para além do trabalho habitual em alturas de mercado, das reuniões infindáveis e dos muitos jantares à mesa de trabalho porque todos os segundos contam para fechar aquele alvo, os dirigentes têm um novo «inimigo» pela frente. Depois de fechada a batalha negocial, muitas vezes morosa e desgastante, começa a batalha que marca os dias que correm: inscrever os atletas, hoje em dia uma tarefa mais complicada do que o habitual por culpa das alterações na legislação portuguesa.

A lei: o que mudou?

Entre a janela de inverno e a atual janela de verão, nada mudou no futebol em si, mas uma alteração importante aconteceu em Portugal. A 10 de março, Luís Montenegro - cuja ficha no nosso portal pode consultar aqui - venceu as Legislativas e tornou-se no novo Primeiro-Ministro. Com um novo Governo, várias alterações estão em curso, sendo que uma delas incide na área da migração e é aqui que o desporto - porque há mais afetados para lá do futebol - sofre.

O ponto de partida é simples: afinal, o que mudou? «A Lei n.º 23/2007, a lei base que regula a entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional foi alterada pelo Decreto Lei, n.º 37-A/2024 de 3 de junho que extinguiu o processo de manifestação de interesse, processo este que permitia a regularização de estrangeiros em território nacional, por meio do exercício de uma atividade profissional subordinada ou independente, sem visto válido para o efeito», explicou ao zerozero o advogado Mateus Ferreira, da Almeida & Associados Law Firm, especializado em Direito Migratório.

qTendo em conta que o prazo para a emissão do visto é de 90 dias úteis, este prazo é completamente inexequível para os clubes e jogadores, pois não coincide com o mercado de transferências que tem a duração de dois meses

Mateus Ferreira, advogado

Ora, a extinção do processo de manifestação de interesse torna-se o cerne da questão porque é aqui que tudo se complica para os clubes. «Este processo de manifestação de interesse era vantajoso para os clubes e atletas, pois apesar de ser um processo moroso, apenas a submissão da manifestação de interesse permitia o registo dos atletas nas respetivas federações e ligas profissionais», acrescentou.

Sem este processo que permitia rapidamente a inscrição dos atletas, o procedimento é agora diferente e bem mais problemático por questões de prazos. «Com o novo Decreto-Lei, os clubes não terão simplesmente de preencher um formulário e submeter um conjunto simples de documentos, o processo requererá maiores conhecimentos – tornando-se mais extenso, burocrático, complexo e previsivelmente mais moroso», revelou Mateus Ferreira.

O advogado explicou ainda o procedimento atual e onde está o constrangimento: «O regime em vigor continua, ainda assim, a oferecer alternativas e soluções, nomeadamente através do pedido de Visto de Trabalho (Visto D1), visto para procura de trabalho, Autorização de Residência CPLP, Visto E5 - o chamado Visto de Estada Temporária para desporto amador não aplicável para desporto profissional), todavia, o prazo médio do pedido dos vistos citados é de três meses, podendo atingir quatro meses. Tendo em conta que o prazo para a emissão do visto é de 90 dias úteis, este prazo é completamente inexequível para os clubes e jogadores, pois não coincide com o mercado de transferências que tem a duração de dois meses

qA solução passará por criar um visto especial para profissionais no desporto, independentemente do desporto praticado

Mateus Ferreira, advogado

A conclusão é, portanto, fácil: os clubes podem contratar um jogador, mas correm o risco de não conseguir inscrever o mesmo em tempo útil e terem ainda despesas - porque o contrato em si está assinado e é válido - com um atleta que, para todos os efeitos, não pode ser rentabilizado.

«Poderemos vir a ser confrontados, eventualmente, com jogadores com contratos válidos, contudo, clubes ou sociedades desportivas incapazes de terem a situação migratória dos atletas regularizada para que consigam atempadamente proceder ao seu registo. A solução passará por criar um visto especial para profissionais no desporto, independentemente do desporto praticado, ou pela criação de métodos especiais de aceleração dos processos vigentes», concluiu Mateus Ferreira.

Esperança na solução para evitar «tragédia para todos»

A discussão em torno do tema tem-se acentuado ao longo das últimas semanas. A Liga Portugal deixou críticas à nova legislação, mas também o Santa Clara e o Estrela da Amadora são exemplos de clubes que já tomaram uma posição publicamente. Os açorianos, em comunicado, falaram em «consequências nefastas» para o futebol português e o presidente da SAD dos tricolores da Amadora, Paulo Lopo, já confirmou ter cinco jogadores contratados e a receber salário, mas que ainda não puderam viajar para Portugal.

Esta é a nova realidade para toda a gente, mas o sentimento é de esperança numa resolução rápida. Caso contrário, o impacto na nova temporada adivinha-se gigantesco.

«Acreditamos que isto se vai resolver, porque a verdade é que se não se resolver vai ser uma tragédia para todos. Nós até somos capazes de ser dos clubes mais penalizados, porque temos muitos jogadores fora do Espaço Schengen [espaço composto por 29 países europeus onde é possível movermo-nos livremente]. Aquilo que me passam as pessoas do clube que tratam desses processos é que estão otimistas em relação à resolução de um caso excecional para os clubes resolverem esse problema», contou ao nosso portal o diretor-técnico da SAD do Rio Ave, João Amaral.

@Kapta+

«Sinceramente, não quero acreditar que no dia da primeira jornada as coisas não estejam resolvidas», continuou o dirigente. João Amaral garantiu ainda que apesar destes constrangimentos, o clube vilacondense está a operar exatamente da mesma forma no mercado: «Não estamos a limitar-nos nas decisões de contratações devido a este problema. Isto tem que ser resolvido. Obviamente que os nossos jogadores que estão nessa situação ainda não foram inscritos, mas acreditamos que durante esta semana ou na próxima semana isto vá ficar resolvido para poderem ser inscritos. É a nossa crença e é o que nos é passado também pelas entidades da Liga, que estão a tentar chegar a um acordo com o Governo para um regime de exceção.»

O cenário é de esperança, mas a falta de uma solução pode trazer consequências graves e que podem desvirtuar a competição desde o primeiro dia: «Temos jogadores de Israel, que chegam agora de Inglaterra e o próprio Brandon Aguilera, que vem da Costa Rica. Temos vários jogadores fora do Espaço [Schengen] que vão ter essa dificuldade se não for resolvido. Podemos correr o risco, se isto não for resolvido rapidamente, de não termos jogadores suficientes para ir a jogo na primeira jornada. Podemos ir a jogar, se calhar, mas com os sub-23. Era simplesmente uma imagem muito negativa para a liga portuguesa.»

João Amaral garantiu que foi feita a promessa de que tudo se vai resolver, sob pena de «a tendência ser para [o nível competitivo] piorar». «Como nós, estão todos os clubes. E quando entram aqui os grandes... A pressão que tem havido é muito grande e há várias reuniões com o Governo para resolver a questão. Foi dada uma promessa que a questão se ia resolver», disse. Resta esperar.

Não é só futebol...

Pelo espaço mediático que ocupa, o futebol tem sido o foco principal quando surge a problemática. Não nos esqueçamos, no entanto, que o desporto português é composto por várias outras modalidades que, como o futebol, recebem centenas, senão milhares de jogadores estrangeiros todos os anos. Também elas, do basquetebol ao hóquei em patins, têm um problema por resolver.

A conversa com João Amaral, de resto, levou-nos a tocar mesmo nesse ponto e a ideia que fica é que a solução pode demorar mais algum tempo: «Isso [modalidades] vai ser um problema ainda maior. Nós não temos, mas há modalidades como o basquetebol que têm sempre imensos jogadores fora do Espaço Schengen e não sei como vão resolver. O Governo prometeu que ia resolver num espaço de 48 a 72 horas este problema, mas para o futebol. Agora para o desporto em si não sei se vão conseguir resolver tudo.»

De forma a percebermos o impacto que a nova legislação pode ter nas modalidades de pavilhão, nada melhor do que recorrermos à vasta base de dados do zerozero. Para este exercício, vamos utilizar os plantéis das equipas de primeiras divisões nas várias modalidades e ter como referência a temporada 2023/24.

Atente na tabela abaixo, porque nela apresentamos o total de jogadores em cada uma das primeiras divisões na última época e quantos deles foram contratados no último verão a clubes estrangeiros. Hoje, esses mesmos atletas estariam sujeitos à nova legislação.

Modalidade Jogadores na I Divisão em 2023/24 Jogadores contratados no estrangeiro em 2023/24 Percentagem
Futsal 238 24 10,08%
Hóquei em Patins 188 1 0,53%
Andebol 291 23 7,90%
Basquetebol 243 67 27,57%
Voleibol 241 24 9,95%

É fácil perceber quais podem ser as modalidades mais afetadas por esta nova legislação. Mas acredite, caro leitor, que estamos a raspar muito pela superfície. O filtro teve em conta apenas competições masculinas e apenas as primeiras divisões. O impacto real prevê-se que seja consideravelmente maior e o cenário, se nada mudar, adivinha-se dantesco para o desporto português.

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