Aproximamo-nos das eleições legislativas com muitas interrogações. Espera-nos um período de campanha eleitoral duro, extremado, e não é certo que se consiga debater a substância das matérias, sobretudo se o comentariado político continuar a tratar os debates, como o fez nas últimas legislativas, como se de combates de MMA se tratasse.
Num momento em que ainda se afinam os programas eleitorais e pouco se sabe, parece-me útil focarmo-nos em ideias que ultrapassem um pouco a espuma dos dias e se foquem no futuro. Concentro-me aqui numa dessas ideias que, ficámos a saber pelo Congresso do LIVRE, o partido propõe no seu programa, a de herança social, contextualizando-a em debates anteriores.
Futuro do Estado Social
É conhecido o apego dos portugueses ao Estado social. Como refere Filipe Carreira da Silva em O Futuro do Estado Social (p. 28), “para muitos portugueses, a democracia ou é social ou não é democracia”, o que significa, sobretudo, a associação do regime democrático pós-25 de Abril às conquistas em matéria de direitos sociais, sobretudo o SNS e a escola pública.
Perante este legado, e face à realidade da sua erosão e à ameaça da sua destruição, a esquerda tem muitas vezes tendido a ter uma postura defensiva e conservadora. Essa postura é, até certo ponto, compreensível. A era dourada do estado-providência já lá vai, e perante projetos bastante radicais que levariam ao seu desmantelamento, como era o de quem queria ir ‘para lá da troika’, a reação instintiva é de salvaguarda.
Mas com os desafios que enfrentamos hoje, especialmente os mais vulneráveis e as novas gerações, sabemos que isso é insuficiente. Dos baixos salários à crise na habitação, passando pela precariedade, parece certo que precisamos de mais Estado social e não menos. E sendo certo que a defesa do Estado social é transversal aos partidos de esquerda, o LIVRE tem sido dos mais insistentes na necessidade de inovar e de o reinventar. É nesse contexto que devem ser entendidas as suas propostas de um projeto-piloto de Rendimento Básico Incondicional (RBI) ou a herança social.
Ainda o RBI
Nas legislativas passadas, o caso do RBI foi sintomático da ligeireza e demagogia que muitas vezes invade os debates televisivos entre os líderes partidários. O tema foi muitas vezes introduzido como se aquilo que estivesse em causa fosse já uma implementação total à escala da população portuguesa e, sobretudo, com a direita populista a agitar o bicho papão da subsidiodependência e das alegadas falhas morais de “quem não quer trabalhar”, bem como do suposto irrealismo das propostas.
Mas, na verdade, aquilo que estava em causa nas propostas de LIVRE, VOLT e PAN mais não era que estudo: sondagens à população, projetos-piloto ou implementação faseada.
No congresso do LIVRE já se ficou a saber, pela boca de Jorge Pinto, que a proposta de projeto-piloto se mantém, e é de esperar que o PAN alinhe pelo mesmo diapasão, tendo em conta as suas posições recentes sobre esta matéria.
No entanto, a novidade no debate sobre o alargamento e reinvenção do Estado social parece agora ser a de herança social. Prestemos-lhe atenção.
A herança social
A justificação que subjaz à possibilidade de uma herança social não é muito diferente à da defesa de um rendimento básico, embora divirjam em termos de implementação, montantes e consequências.
Em ambas a ideia é associar, de forma não-paternalista, a universalidade de um rendimento ou dotação à maximização da liberdade. E a justificação é também ela semelhante. As suas primeiras formulações datam do século XVIII, e nomeadamente da visão de Thomas Paine da criação de um fundo que compensasse todos os cidadãos pelos frutos da exploração da terra, uma vez que, à partida, a terra era comum. Assim, aquilo que se viria depois a chamar uma “dotação básica” seria a compensação pela perda da “herança natural” pressuposta num sistema agrícola de propriedade privada.
Esta ideia de compensação dos cidadãos pelo uso e benefícios daquilo que é comum fez o seu caminho e, na verdade, não deve ser causa de estranheza. É um dos princípios que subjazem, por exemplo, à existência de taxas turísticas. Contudo, a noção de dotação básica pretende ser mais ambiciosa.
Na sua forma moderna, o debate foi reaberto com o livro de Bruce Ackerman e Anne Alstott, The Stakeholder Society, publicado em 1999 e que advogava que os EUA deveriam atribuir a todos os seus cidadãos um montante de 80 mil dólares, resgatável aos 21 anos. Para quem quiser aprofundar o tema, em português pode-se consultar, de Bruce Ackerman, o texto “Em defesa de uma herança social de cidadania”, publicado no livro Ideias e políticas para o nosso tempo, editado por João Cardoso Rosas.
Tratar-se-ia, portanto, de uma forma de dividendo social, tal como existem outras – o caso do Alasca é muitas vezes referido, com o pagamento anual de um dividendo por parte do Alaska Permanent Fund como compensação pela exploração petrolífera – mas com o objetivo de potenciar a igualdade de oportunidades dos jovens adultos. Tem como pedra de toque a ideia de participação e responsabilidade em comum.
Como possível política pública, uma herança social é, portanto, direcionada (ainda que universal para um determinado grupo etário), tanto como o são as políticas de incentivo à natalidade, desde os abonos de família ao formato dos cheques-bebé.
Perguntar-se-á: tal modelo seria possível em Portugal? E se sim, seria desejável? Em princípio, e por comparação com o RBI, é uma hipótese mais vulnerável à objeção relativa ao potencial mau destino que se possa dar a uma quantia avultada recebida só uma vez; por outro lado, não só seria provavelmente menos onerosa que um RBI como poderia ser um passo na direção de uma igualdade real de oportunidades num momento fulcral da vida.
Na proposta do LIVRE, de acordo com Rui Tavares, o possível modelo de herança social deveria ser desenhado pelas entidades públicas em Portugal, nomeadamente pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, e aberto às contribuições da academia e da sociedade civil. Parece apontar-se para a constituição de um fundo e uma razoável flexibilidade no momento de resgate do montante (dos 18 aos 35 anos) e até alguma condicionalidade (adaptando-se a herança às condições financeiras das famílias).
Teremos de esperar pela versão final da proposta para saber mais detalhes mas, fundamentalmente, aquilo para que se apela, mais uma vez, é sobretudo para o estudo e desenho de políticas públicas com base na evidência, admitindo-se várias hipóteses para o seu formato e financiamento: uma conta poupança para todos os cidadãos nascidos em Portugal, recurso a certificados de aforro ou um imposto sobre grandes heranças.
É claro que, no limite, todas as propostas deste género necessitariam ou de nova receita fiscal ou de uma redistribuição muito mais robusta dos recursos existentes; não precisam que vos diga que estes são tópicos sensíveis e que exigem coragem política, mas trazê-los para o centro do debate é, por si só, de louvar.