A Torre das Amoreiras. Um encontro corrosivo numa noite de réveillon

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Um encontro entre um casal gay, uma vizinha em ácidos, uma lésbica, um árabe e uma gaivota, num apartamento no bairro das Amoreiras, a 31 de Dezembro de 1976. É esta a proposta de Bernardo Beja no espetáculo A Torre das Amoreiras que estreia no dia 19 de junho na Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo.

Uma dança macabra e desesperada que trata a enorme dificuldade de viver”, descreve o encenador Bernardo Beja. Baseado em La Tour de La Défense do dramaturgo argentino Copi (1939-1987), a verdade é que é dança, jogo, festa e guerra. Comédia e tragédia. Das ruínas que caracterizam a sala de espetáculos da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, emerge um cenário branco composto por um sofá, uma mesa imponente, uma bancada, um frigorífico, uma banheira, um enorme escadote, um telefone pendurado por um fio e enormes nuvens brancas que parecem derreter pelas paredes de pedra do espaço. “A ideia de criar um ambiente estéril provém de toda a cacofonia que gira em torno de cada uma das seis figuras cujos episódios são particularmente extravagantes (…) O corpo povoa, completa e amplia o sentimento de frieza, solidão e vazio que habitam”, adianta o encenador. E conseguiu, já que este cenário nos coloca no meio de um hospício de sentires e contrasta com as cores arruinadas e confusas dos cinco elementos principais: Jean, Luc, Daphnée, Micheline, Ahmed. Um casal gay, uma lésbica, uma burguesa em ácidos e um árabe que se encontram num apartamento no bairro das Amoreiras, a 31 de dezembro de 1976, noite de réveillon. Um encontro que, em vários momentos, mais parece um desencontro, onde as personagens se veem, interagem e quase se fundem, ao mesmo tempo que se distanciam e parecem viver cada uma na sua bolha. Superficiais e ao mesmo tempo profundas numa dança caótica onde mergulhamos no desconhecido que cada uma delas nos dá. Além destas, existe Katia (filha de Daphnée), John (o seu marido americano) e uma gaivota.

“Somos essencialmente um grupo de amigos e colegas do conservatório de teatro. Todos temos e vamos tendo outros trabalhos, mas sempre que surge a oportunidade juntamo-nos para criarmos algo em conjunto”, conta Bernardo Beja. Segundo o encenador, inicialmente, o texto que estava previsto trabalhar era Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, fruto de um concurso de apoio às artes da Fundação Calouste Gulbenkian. “Com as verdadeiras tragédias a acontecer, as pequenas que assolam a vida pessoal e as grandes que assolam o mundo, propus uma incursão por outros géneros de literatura dramática. Nos 50 anos do 25 de Abril precisávamos de algo mais engajado”, explica. O grupo acabou então por escolher o texto de Copi e fazer um “exercício de liberdade de pensar e agir”, descreve. “Que melhor maneira de celebrar o 25 de Abril do que exercendo a nossa liberdade?”, interroga. Esta é a sua “singela homenagem aos capitães de Abril”. “Seria impensável fazermos o que fazemos aqui sem termos tido o 25 de Abril”, lembra.

O texto aborda as questões da sexualidade, homossexualidade, drogas, abandono, poder e dinheiro, diferença entre pobres e ricos… Um vazio repleto de ruído. Porquê? “Tenho uma inclinação particular para figuras marginais e temas subversivos. E, portanto, acho que estas figuras devem ser olhadas de frente. Inspirado por Copi, foi o que tentei fazer”, continua, acrescentando que “obviamente, a história não é secundária”. “No entanto, Copi dá-nos a ver estas figuras marginais e subversivas com muita paródia e sem moralidade. E isso é o mais aliciante deste texto: as resoluções teatrais que ele convoca por parte de quem o põe em cena”, explica o encenador. Recorde-se que La Torre della Défense é uma comédia escrita em francês pelo dramaturgo argentino Raúl Damonte Botana, mais conhecido por Copi, em 1978. No texto original o enredo passa-se em Paris, num apartamento muito moderno num arranha-céu no bairro de La Défense na capital francesa. No que toca à adaptação do texto, durante as primeiras semanas de ensaios, toda a equipa participou. O espetáculo é interpretado por Ana Catarina Santos, Fábio Batista, Flávia Lopes, Francisco Pereira de Almeida, Gonçalo Botelho e Rita Rocha. “Alterámos personagens, inserimos personagens, alterámos grande parte do texto, fundimos outros textos, alterámos o espaço da ação, etc. O mais importante era mantermo-nos fiéis ao humor de Copi: tentámos acima de tudo preservar o humor cáustico e corrosivo da sua escrita”, revela Bernardo Beja. O processo criativo teve lugar ao longo dos últimos quatro meses. Foi um processo “dialogante”, que viveu da cumplicidade dos envolvidos. “Alterna-se entre ter-se ideias, contribuir para as ideias dos outros, e fazer-se escolhas. E eventualmente sedimenta-se o trabalho”, adianta. O cenário é da autoria da Daniela Cardante, responsável pela conceção plástica do espetáculo. A equipa já vinha da peça anterior. A Torre das Amoreiras foi adaptada para servi-la.

Para o encenador a peça é “inclassificável”. “A melhor definição que encontrei foi entre o ‘vaudeville e o drama psicológica’. Apesar de o texto não dar lugar a psicologismos, brinca com essa convenção”, partilha. “Aquilo que nos parece inicialmente ser uma comédia ligeira adensa sem aviso-prévio no decorrer da peça”, acrescenta ainda.

Depois de uma cobra que serve de jantar – morta e arranjada por Ahmed –, uma ratazana como aperitivo, alguns duches – depois de nove meses sem intimidade Jean e Luc fazem amor na banheira –, inúmeros desmaios e surtos da vizinha em ácidos, surge o animal mais importante do enredo: a gaivota, que marca a entrada no primeiro dia de 1977, anunciando a resolução da peça. Mas a ideia de que esta nos pode trazer uma lufada de ar fresco pode ser bastante enganadora. A peça ganha força e fica cada vez mais tensa. A pergunta que se coloca a dada altura é: “Onde está Katia?”. E o seu fim não poderia ser mais trágico.

Na peça, Bernardo Beja destaca o prólogo, que no fundo “é uma prolepse da cena em que o espetáculo muda radicalmente de tom; a meia-noite da passagem de ano”. “Num momento histórico fraturante para Portugal, esta adaptação propõe-se a repensar o papel das minorias 50 anos depois do 25 de Abril. Depois dos movimentos sociais dos anos 70 e 80, absorvidas determinadas minorias na hegemonia, vemos novamente uma esterilização das camadas sociais”, defende o encenador. “A sociedade está a perder a capacidade de se questionar, de se rir de si própria, de se transformar. E volta a impor no outro o medo. Mais uma vez. Um dos principais aspetos deste espetáculo é a forma de ultrapassar todos os limites; de levar os personagens, e mesmo a máquina teatral, aos seus limites”, remata. O espetáculo estreia no dia 19 de junho, na Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo. Está em cena até dia 30 todas as quartas e sábados às 21h30 e domingos às 17h. Entrada livre mediante donativo (sujeito à lotação da sala).

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