Alberto Velho Nogueira. Montanhas de papel

1 mes atrás 32

Nas milhares de páginas dos ensaios de Velho Nogueira haverá certamente momentos interessantes, mas o que encontramos demasiadas vezes, para além de momentos absolutamente extemporâneos de análise, é a aplicação do jargão para-filosófico e a mistura de tudo com tudo num experimentalismo inócuo

Há aquela famosa boutade que nos diz que um bom crítico nunca dará um bom romancista e que, por sua vez, um bom romancista nunca poderá ser um bom crítico. Alberto Velho Nogueira, um escritor e crítico que permanece marginal dentro do já de si pequeno meio literário português consegue a proeza de ser um crítico interessante apenas por aspectos exteriores ao que escreve e um romancista que, no máximo, teria alguma possibilidade de ser interessante no início do século XX.

Quem passe os olhos por aquelas narrativas (não são romances, mas uma outra coisa qualquer) que foi publicando ao longo dos anos não consegue passar da primeira página – não por causa da dificuldade, mas porque percebe demasiado bem o experimentalismo oco, estéril e a cheirar a mofo que emana daquela destruição que imprime à língua portuguesa (e a qualquer língua, verdade seja dita). Lê-se uma página, percebe-se o que o autor está ali a fazer, e vamos à nossa vida, porque objectos como aqueles fomos encontrando ao longo de todo o século XX, nas diversas vanguardas, e a repescagem de gestos antigos só faz sentido se conseguirem criar algum tipo de clivagem no campo em que se inserem e na condição de eles próprios criarem uma clivagem no interior deles mesmos. O que acontece, de facto, é que aquela prosa de Alberto Velho Nogueira é demasiado legível e estamos sempre a ouvir, atrás de todas as frases, de todas as invenções ou de todas as destruições, a mesma frase de Proust: “O escritor escreve numa espécie de língua estrangeira”. Alberto Velho Nogueira leu demasiado bem tudo quanto Gilles Deleuze escreveu sobre essa famosa frase de Proust – e quando alguém se limita a traduzir, em prosa, um conjunto de ideias ensaísticas, por mais interessantes que elas sejam, estamos mal e o resultado só pode ser aquele.

No entanto, há uma possibilidade de toda aquela prosa se tornar nossa contemporânea: é olhá-la através de uma pretensa estranheza. Afinal, não é comum encontrarmos objectos como estes, mesmo que a história nos dê, à saciedade, gestos radicais – ou ainda mais radicais (é talvez isto, a juntar ao caracter excessivo da prosa e da ensaística, que faz com que críticos sérios como António Guerreiro sintam algum fascínio por Alberto Velho Nogueira). Mas a diferença e o incomum não chegam para criar verdadeiros diferendos, por mais que a retórica – também ela estafada – da marginalidade surja de cada vez que se fala de Alberto Velho Nogueira (veja-se, a este propósito, o artigo de António Cândido Franco para o Jornal de Letras). Aliás, o gosto pronunciado do nosso tempo pelo diferente, pelo estranho, pelo incomum, é semanalmente verificado nas páginas do Ípsilon (mostrando, assim, a estreita ligação entre a estranheza e a moda), da mesma forma que noutros lugares encontramos a retórica da marginalidade e todo o moralismo pequeno-burguês que a acompanha (o lugar da fala exterior é puro, incontaminado: fórmula do moralista pequeno-burguês). E a ironia aqui presente é facilmente notada: a cultura do espectáculo que tem vindo a tomar conta dos assuntos literários – não apenas os famosos festivais, mas as tournées em que se tornaram as apresentações dos livros, os podcasts onde os escritores falam interminavelmente, as participações em antologias, toda a parafernália de eventos que transformam o livro em objecto obsoleto e quase prescindível – é aqui interior ao próprio objecto. É a própria prosa, com os seus neologismos, com a mistura de tudo com tudo, com o seu experimentalismo, que se transforma num espectáculo cheio de estilo (provando, aliás, que o autor leu demasiado, mas com pouca atenção, o que escreveu Gilles Deleuze sobre Proust), mesmo que recuse – ou sobretudo quando recusa – subsumir-se às regras do mercado editorial. São narrativas demasiado contemporâneas – mas muito pouco intempestivas.

O mesmo excesso e a mesma estranheza pontuam os ensaios. São seis volumes, cada um com mais ou menos setecentas páginas, cheias de um jargão para-filosófico e de conceitos que vão sendo inventados e modulados ao longo dos diversos volumes. O interesse de todo esse empreendimento exorbitante é, no entanto, exterior aos mesmos. A ideia de estender o gesto crítico a nomes mais ou menos consensuais do universo literário – Gonçalo M. Tavares, Agustina, Lobo-Antunes, etc., – é, sem dúvida, interessante, apesar de também aqui a retórica que subjaz a tudo isto ser algo estafada e fazer apelo a um universo que, de facto, já não existe. A política do nome consagrado, do nome canónico, dependia de protocolos e de instituições de legitimação (a universidade e a crítica literária, por exemplo) que pura e simplesmente já viram o seu ocaso há muito tempo – veja-se, por exemplo, o descrédito absoluto dos prémios literários, que já só convencem os publicitários das editoras e já só servem para enfeitar badanas. Depois, devido ao incessante jargão para-filosófico, há aqueles momentos idealistas ao longo dos ensaios: por exemplo, o termo “social”, que aparece constantemente e a propósito de todos os autores, e que, na realidade, é uma espécie de deus absconditus de toda esta ensaística, não se sabendo o que realmente significa (são puras relações de força? De produção? São relações económicas, políticas, de género, tudo isto ao mesmo tempo? Será o todo da sociedade, seja lá o que isso for?). Ou, então, a excessiva valorização da tradição oral: há o problema histórico de se saber se efectivamente as literaturas nacionais nasceram da tradição oral, mas o importante não é tanto isso, é perceber a emergência da literatura a partir de uma outra relação ao texto (é porque essa relação mudou que Homero não funciona da mesma forma agora comparativamente à Grécia antiga, e é exactamente essa mudança que explica que Homero seja hoje, para nós, um nome canónico da tradição literária). Percebe-se que o autor vem da área da música – onde os problemas da fixação, isto é, tecnológicos, são bastante agudos –, mas não parece de todo linear que os termos e os problemas possam ser transpostos para o campo literário da forma fácil e demasiado rápido com que o autor o faz. Aliás, há uma espécie de nostalgia relativa à tradição oral que o Alberto Velho Nogueira nunca assume (a fixação viria acabar com um certo fulgor, uma certa imanência das mesmas ao corpo social), tal como nunca diz que toda esta retórica sobre a tradição oral chega de um conhecido sociólogo francês que escreveu abundantemente sobre sociedades onde a escrita não se desenvolveu (tentando contrariar um certo determinismo histórico para os quais estas seriam inferiores e meros patamares para aquelas onde a escrita surgiu) e do que Gilles Deleuze e Felix Guattari comentaram em Mil Planaltos sobre esse mesmo sociólogo.

“Daí que tenha escolhido, a partir da palavra francesa savant (…), a palavra savantização, que significa mais evidentemente a noção de que houve uma passagem da tradição oral e da transmissão oral para a sua fixação pela escrita, pela partitura (outra forma de fixar e de escrever), pela pintura (uma outra fixação), pela gravação, etc., e que se estabeleceu, desde o início dessa passagem ao escrito, dessa fixação, um trabalho de explicação fenomenal das expressões em questão, de modo a fornecer, desde o início, um sentido justificativo da obra e de trata-la segundo uma evolução própria à forma de expressão considerada”

Traduzamos para português: a tradição oral liberta-se das condições sociais originárias (usemos, também, jargão filosófico: a tradição oral é a desterritorialização das condições sociais); mas, num segundo momento, territorializa-se quando é fixada, ganhando uma série de condicionantes económicas, sociais, políticas, etc.. No entanto, ao mesmo tempo em que é fixada (nas diversas literaturas nacionais, por exemplo), adquire componentes que a desterritorializam (pode ser traduzida para outra língua, por exemplo, é integrada dentro de uma tradição, dialoga com outros textos, etc.). A tudo isto terá de se acrescentar o mercado que, para quem conheça Deleuze e Guattari, é a mais poderosa força de desterritorialização e de descodificação do nosso tempo. É, aliás, o que diz Alberto Velho Nogueira, quando defende que, para os públicos actuais, ouvir música de outras latitudes e tradições significa que a “força de deslocalização foi notória, que a força de eliminação dos factores locais foi tremenda, que os mercados as fazem ouvir sem conhecimentos prévios necessários à apreciação destas formas de expressão que representam o local, os locais.”.

Haverá, certamente, no meio de milhares de páginas que compõem os seis tomos de ensaios, um ou outro juízo acertado ou uma ou outra análise interessante – o número de palavras e as regras de combinação são finitas, como diria Jorge Luís Borges num conhecido conto –, mas o que demasiadas vezes encontramos são análises intermináveis que misturam tudo com tudo. Em Ensaios 4, por exemplo, as poucas páginas dedicadas a Manuel António Pina desaparecem para dar lugar a uma análise sobre Maurice Blanchot (sem se perceber o que é que um tem a ver com o outro), e, apenas outro exemplo, as páginas dedicadas a Gonçalo M. Tavares estão cheias de James Joyce, Kafka, T.S. Eliot, Döblin e, inclusive, cinema mudo. Toda esta mistura tem o seu lado humorístico se nos lembrarmos que um dos vícios entranhados numa certa academia portuguesa é, exactamente, misturar alegremente tudo com tudo (cinema, poesia, romance, séries televisivas, música, etc.), saltar de um objecto a outro como se não houvesse diferenças abismais entre ambos.

Depois, há os ensaios concretos e aquilo que diz sobre os autores. E, uma vez mais, haverá certamente momentos interessantes, mas o que encontramos demasiadas vezes, para além de momentos absolutamente extemporâneos de análise, é a aplicação do jargão para-filosófico. Apenas dois exemplos: sobre Rui Nunes dá a entender que se trata de um escritor autobiográfico, passando depois a uma deriva imensa sobre a crítica literária. Passa por cima de toda a complexidade que existe, na obra de Rui Nunes, relativamente à memória, relativamente à própria possibilidade da autobiografia, passa por cima de todos os problemas, por exemplo, que Jacques Derrida pensou usando a grafia auto-bios-tanatografia (ou pior: auto-bios-hetero-tanatografia), parece ignorar que Barro, o livro que analisa, diz exactamente o contrário do “lembro-me” que enxameia toda um conjunto de livros contemporâneos (“A certeza bíblica do lembrar-se” é uma daquelas frases cujo sentido se ausentou), e acaba tornando Rui Nunes numa espécie de escritor sentimental que não escapa “à domesticidade íntima que se conta aos mais íntimos”. Que Rui Nunes possa dar lugar a uma apropriação autobiográfica (o meu Rui Nunes, por exemplo) não faz de Rui Nunes um escritor autobiográfico.

O outro exemplo é Gonçalo M. Tavares. Todo e qualquer escritor é passível de crítica e há, em alguns lugares da obra deste, uma espécie de recurso ao que se poderia chamar de “imagens míticas” – gritar de prazer ou de alegria, matar, etc., etc. (Pasolini tem páginas certeiras sobre isto) –, sendo que estas imagens de onde o tempo parece ter-se retirado – há qualquer coisa de intemporal nelas, de invariante – são, efectivamente, passíveis de um olhar mais atento, parecendo ser imunes à história e à historizicação. Uma das críticas possíveis seria essa, por exemplo, e, verdade seja dita, Alberto Velho Nogueira intui algo desse género, apesar de a crítica parecer implicar que Gonçalo M. Tavares se transforme numa espécie de sociólogo, preocupado com a origem do medo e do terror contemporâneos (Alberto Velho Nogueira também não sabe, uma vez que se limita ao argumento estafado das redes sociais, que se transformaram nas culpadas de tudo e mais alguma coisa). Mas, depois do discurso do costume contra o mercado (“a procura de autonomia em relação aos poderes e aos mercados, sejam eles quais forem”), acusa Gonçalo M. Tavares de ter uma escrita moralista e, claro está, de não escrever como Alberto Velho Nogueira. Porque, no limite, o juízo de Alberto Velho Nogueira é simples: Gonçalo M. Tavares tem uma “prosa sem agressões internas; refiro-me aos actos de linguagem, não aos assuntos; refiro-me aos actos de linguagem elaborados de maneira a tranquilizar o espírito puerilizado dos leitores”. Traduzindo para português: Gonçalo M. Tavares não tem uma prosa como a de Alberto Velho Nogueira (ninguém tem, poderia acrescentar o autor).

“Não faço citações, não são precisas; modificam e deformam o texto e o contexto do autor. As citações são uma manobra para justificar uma opinião, um método crítico que procura o apoio do leitor, de modo a que o público saiba que o crítico não falsifica, tem razão em dizer o que diz, mesmo quando não percebe o que cita. O que escrevo sobre Rui Nunes não é uma impressão ou uma subjectividade apropriadora aos textos. É uma análise consciente, sem recursos à sensibilidade subjectiva nem a preconceitos literários. Muito menos a normas de comercialização ou de valorização das literaturas, seja pelo lado dos comércios e mercados, seja pelo lado dos cânones.”

 O mais irónico nesta citação é a passagem ao limite de certos vícios que vamos encontrando em diversos locais – principalmente num certo academismo de tal forma enamorado pela teoria e pelo jargão filosófico que atropela todo e qualquer texto. De facto, o discurso sobre o mercado é válido para Rui Nunes, como é válido para Gonçalo M. Tavares, Lobo Antunes, Maria Velho da Costa, Fiama, Herberto, etc., etc. Mas é válido apenas na medida em que não se lê o que efectivamente está escrito – é uma outra forma de dispensar a citação: de que serve citar se aquilo que é dito poderia ser escrito sobre qualquer autor, vivo ou morto? É o problema do jargão filosófico ou para-filosófico: alguém suficientemente versado em Heidegger, por exemplo, pode escrever sobre a problemática existencial em Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, ou um outro qualquer, fazendo com que todos eles se pareçam uns aos outros. O truque de Alberto Velho Nogueira, como vimos, é dar uma nova roupagem a ideias que chegam de outro sítio, fabricando uma ideia de novidade, um gesto típico, aliás, do nosso tempo e da nossa geografia: da mesma forma que, como dizia Mark Fisher, a música pop actual lembra sempre qualquer coisa (é vagamente anacrónica), a prosa de Alberto Velho Nogueira lembra sempre outras coisas – mais interessantes, menos devedora de um narcisismo que passa todo para a escrita. E todos os autores sobre os quais escreve Alberto Velho Nogueira aparentam-se, não porque sejam iguais, mas porque Alberto Velho Nogueira já sabe o que vai escrever antes mesmo de ler: assim, verdade seja dita, não é preciso citar nada. Mas, na realidade, o mesmo vale para ele: quem leia dois ensaios dele acaba por saber o que ele irá dizer nas próximas quinhentas páginas.

Há muitos anos atrás, o lançamento de uma das narrativas de Alberto Velho Nogueira consistiu no autor a ler a sua prosa enquanto um aspirador ligado dificultava e audição e marcava o ritmo das frases. É este espectáculo de pirotécnica que encontramos tanto na crítica como nas narrativas – não muito distante, aliás, do lógica espectacular que o mercado produz incessantemente à volta desse objecto já absoleto, quase anacrónico e dispensável, que é o livro. 

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