Alvaro Covões. “O 25 de Novembro ainda não se fez na cultura”

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O empresário admite que apesar de não vivermos em ditadura, essa existe na cultura ao quererem impor “a ditadura do gosto e linhas vermelhas”, em que os privados são vistos como inimigos.

Qual a importância dos festivais, nomeadamente o NOS Alive?

Temos feito vários estudos com várias universidades e há duas conclusões: a primeira, que foi assustadora, do meu ponto de vista, é que, em 2022, 8% dos portugueses que vieram ao NOS Alive vieram pela primeira vez à região de Lisboa. Como é possível, num país deste tamanho, haver jovens de idade adulta que nunca tinham vindo a Lisboa, Cascais ou Oeiras? Para os estrangeiros é normal, viajamos porque queremos conhecer uma cidade ou um país ou por causa do conteúdo e os conteúdos têm cada vez tem mais importância. A Comissão Europeia tem estudos que revelam que 40% do turismo europeu é cultural. A segunda é que os turistas estrangeiros vêm primeiro para o festival e depois vão conhecer o país, em que a estadia média é de cinco dias ou mais, quando a estadia média é 2,3%, representa mais do dobro.

O festival funciona como uma âncora…

Este tipo de conteúdos são importantes para trazer pessoas que ficam cá, porque o grande objetivo e desafio dos profissionais do setor do turismo tem sido aumentar a estadia média e qualificada, ou seja, trazer turistas que gastem mais e fiquem cá mais tempo. Se um evento como o NOS Alive consegue que os turistas que venham, e são milhares – normalmente são 20 mil –, fiquem cinco dias ou mais então estamos a dar um contributo importante para a economia. Por exemplo, os australianos, e isto foi uma pesquisa pessoal, vêm porque são surfistas, vão para Lagos e depois vêm para Lisboa e os neozelandeses também.

Daí a sua importância…

O meu primeiro festival foi em 1995, é o meu métier. E não só, tudo o que seja espetáculos, exposições. Fizemos uma exposição de Joana Vasconcelos, na Ajuda, e foi das experiências mais interessantes porque juntámos públicos completamente diferentes, pessoas que não gostam de arte contemporânea, mas que foram por causa do património e o contrário, pessoas que gostam de arte contemporânea e que não são habitués de património histórico. Tenho uma veia política, no sentido que acredito muito no papel da sociedade civil para desenvolver o país e Portugal precisa de uma sociedade civil muito forte, porque a sociedade política sozinha não chega lá, não consegue. Precisamos de uma sociedade civil muito forte e de empresas de preferência de capital português. Por outro lado, temos dos hábitos culturais mais baixos da Europa e é um processo que temos vindo a cair. Não deixa de ser curioso, da mesma forma que quando analisamos a evolução do poder de compra dos portugueses, a criação de riqueza em Portugal, em que todos os anos estamos todos a descer degraus comparando com os nossos parceiros da Europa 27, o mesmo acontece com os hábitos culturais. Um povo que tem hábitos culturais fortes é um povo que produz mais, cria mais riqueza e, por conseguinte, vive muito melhor e é muito mais feliz. Temos de trazer as pessoas de volta para a cultura, criar-lhes hábitos culturais e isso não passa necessariamente pela música, é ler livros, é ler jornais. É um trabalho que todos temos de fazer, trabalho nesta área e é um tema que tenho levantado há muitos anos e o estudo que foi publicado pela Gulbenkian há dois anos sobre os hábitos culturais portugueses não representa nenhuma novidade porque sempre fiz parte do grupo de trabalho dos representantes dos promotores que junto dos governos sempre defendeu a redução do IVA dos espetáculos. Primeiro, com o Governo de Pedro Passos Coelho, depois com o de António Costa. Na altura, da troika foi aprovado na generalidade o IVA dos espetáculos culturais passar de 6 para 23% e fomos uma das quatro cedências do Governo? E porquê? Porque levámos números e que números levámos? Hábitos culturais. Já na época, a Comissão Europeia que publica anualmente estudos sobre os hábitos culturais dos europeus quando pergunta aos europeus quantos livros leu nos últimos 12 meses, Portugal era o último e quantas vezes foi ao teatro nos últimos meses? Portugal era o último. Quantas vezes foi a um festival ou a um concerto de música? Penúltimo. Esses números associados depois aos do Instituto Nacional de Estatística que diz que foram vendidos oito milhões e pouco de bilhetes para espetáculos ao vivo em 2022 – estou com curiosidade para ver os 2023, mas normalmente sai em outubro – contra, por exemplo, 12, 5 milhões no cinema. E a pergunta que se faz é: os portugueses gostam mais de cinema do que de teatro, de música, de ballet, de dança ou de ópera?

É por ser mais barato?

Não. Há dois temas, um deles é hábitos e o outro é oferta. Temos muito poucos equipamentos culturais. Só na região de Lisboa é uma tragédia. O Cineteatro Odeon ficou destruído e está licenciado para ser um restaurante e apartamentos de luxo. O Olímpia que La Féria tinha comprado, porque acreditou que um privado conseguiria com esforço próprio adquirir um edifício, fazer obras e depois vender bilhetes a 15 euros acabou por ter de vender o espaço e está licenciado para um hotel. O cinema Paris está destruído e está licenciado para um condomínio de luxo, o Caleidoscópio, a Câmara de Lisboa, que está há uns anos para qualificar o jardim do Campo Grande, transformou aquilo num ginásio ou num McDonald’s. A própria Câmara de Lisboa quando fez o projeto da Feira Popular esqueceu-se de um teatro que se chamava Vasco Santana. Já para não falar do Condes que ainda assim tem, pelo menos, música, o Hard Rock Café e escritórios. O Eden é um aparthotel, o Império é uma igreja evangélica, o cinema Star é uma loja da Zara, acho que é uma Zara Home, o Londres é uma loja do chinês e o teatro Ginásio é um centro comercial. Isto é uma tragédia. Na covid, a ministra da Cultura falava muito na intermitência dos profissionais da cultura, nós, setor privado, discordávamos dela num aspeto, o problema não eram os contratos de trabalho, o problema é que não há locais de trabalho, é preciso mais. Por exemplo, a DGArtes financia uma série de associações culturais e projetos de teatro, mas depois não têm onde apresentar o seu trabalho. Na brincadeira, às vezes, digo que a DGArte é tipo o fundo do Catar que apoia a produção durante seis meses de uma peça de teatro que depois só tem três dias para estar em cena. Portanto, deitamos dinheiro fora. Por outro lado, acho que cometemos um erro muito grande, no 25 de Abril nacionalizámos a cultura de certa forma, por isso digo que o 25 de Novembro ainda não se fez na cultura, parece que ainda vivemos num processo revolucionário em curso, em que o privado é inimigo de tudo.

Mas ficou entretanto com a exploração do Campo Pequeno…

O Campo Pequeno é da Casa Pia, mas a exploração, desde a sua construção até hoje, foi sempre uma concessão privada. O tema é que as empresas faliram porque o negócio dedicava-se exclusivamente ao espetáculo de touradas e nunca deu certo. A empresa anterior que fez as obras requalificou o espaço para o transformar num multiúsos e também não correu bem, daí estar na massa falida, mas permitiu ter outros espetáculos. E é esse o meu projeto.

Deixará de ter touradas?

Não, somos obrigados a fazê-las por contrato, faz parte do contrato de concessão, mas o nosso objetivo é dar utilização ao espaço porque as salas de espetáculos que são vocacionadas para touradas são como os estádios de futebol parecem que só funcionam uma vez por mês e isso é um desperdício. As salas de espetáculo têm de trabalhar todos os dias, de preferência e é muito importante que isso aconteça para dar trabalho, tanto a empresas como aos profissionais da cultura. A minha família está ligada ao Coliseu desde o século XX e sempre fui educado para trabalharmos todos os dias todo o ano e nos dias mais importantes temos de dar o exemplo. É o caso do Natal, do fim de ano e do domingo de Páscoa, porque naturalmente são os dias em que a maioria da população está disponível e precisa de aceder ao entretenimento ou à cultura. Não passa pela cabeça fazer espetáculos à segunda-feira, às 11h da manhã só se for para as escolas, porque a maioria das pessoas está a trabalhar, logo temos de fazer os espetáculos à noite ou ao fim de semana. O problema é que vemos teatros públicos que até querem reduzir os horários para poupar, daí dizer que o 25 de Novembro não chegou à cultura. Temos cidades, por exemplo, como Évora, que só tem um teatro, o Garcia de Resende e o programador e a câmara não aceitam stand-up comedy. Não faz sentido quando é um teatro que é de nós todos.

Por considerarem que não se encaixa no perfil de público que querem atrair?

Porque, na realidade, o Estado não tem uma veia comercial, não devia gerir algo que é comercial, mas comercial no sentido de que é preciso haver receitas para haver equilíbrio. E quando se trata de atrair públicos, o Estado não tem competência para isso, não consegue e falha, por isso é que os números são os que são. A partir do 25 de Abril, o Estado acabou por se apropriar das salas de espetáculos. Hoje em dia, 95% das salas de espetáculos em Portugal devem ser públicas, daí dizer que o 25 de Novembro não chegou à cultura. Por exemplo, fez agora 50 anos que no dia 29 de março de 74 houve um espetáculo de canções portuguesas, todos os artistas eram “anti-regime”, tinham a maior parte das suas músicas censuradas, mas deram um espetáculo, cantaram as canções censuradas, em que nessas partes cantavam ‘lá, lá, lá’ e foi onde o Zeca Afonso cantou pela primeira vez em Portugal, o Grândola, Vila Morena, um mês antes do 25 de Abril. Isso só foi possível porque foi numa sala privada.

No Coliseu de Lisboa…

Foi, se não existisse uma sala privada isto não teria acontecido. É a prova provada que os privados são o garante da diversidade, da democracia e da liberdade, porque o Estado falha. As pessoas no Estado, em primeiro lugar são empregadas de nós todos, mas têm um comportamento como se fossem os donos disto. Não são e, às vezes, esquecem-se que quando se trabalha para dez milhões de pessoas tem de se pensar nos dez milhões de pessoas. Com que direito é que alguém acha que num país que não tem teatros, não tem salas de espetáculos, determinados géneros não podem pisar o palco deles? Isto é anti-democrático. Consigo entender que haja uma linha programática, mas proibir não. Imagine que todos os restaurantes eram públicos e alguém dizia ‘não vamos dar peixe a ninguém’ e as pessoas não tinham direito a comer peixe. Se quero comer peixe porque é que não hei de ter um sítio? Isto é o que o Estado faz na cultura e de uma forma muito desonesta perante todos os portugueses por se achar superior. Metade dos teatros públicos não aceitam espetáculos de stand-up comedy. Um grupo como os Anjos ou um Tony Carreira provavelmente não conseguiriam fazer um espetáculo na Casa da Música ou no CCB. Vamos ao Porto e quantas salas de espetáculos há? Nem 10. Então com que direito é que pomos linhas vermelhas? Sou muito defensor da liberdade e até é uma contradição, porque politicamente sempre fui de direita, mas parece que sou mais de esquerda do que a própria esquerda, porque para mim não há linhas vermelhas.

Mas agora o Governo mudou…

Acreditamos sempre que um dia vai mudar e que um dia reconheçam a importância do setor privado da cultura, porque os artistas são empresários, fazem parte do setor privado da cultura. Um Rui Veloso, um António Zambujo, uma Carminho são empresários de si próprios, gerem uma empresa que são eles, não são empregados de outros, não são empregados por conta de outrem. Há que respeitar as empresas do setor, promotores de espetáculos e os artistas.

Essas fragilidades viram-se na pandemia com uma série de profissionais com graves crises financeiras…

E quando o Governo determinou que poderia haver espetáculos com 50% de ocupação quem é que abriu as portas? Os privados. Quem é que manteve as portas fechadas? Os públicos. Com que direito? Porque tinham o salário garantido, recebiam o mesmo estando a funcionar ou estando fechados.

O que não acontecia com os privados…

Não. Temos de mudar este paradigma, o país em primeiro lugar tem de aumentar os hábitos culturais e acredito que isto tem de ser um motor da sociedade civil. A bandeira para desenvolver o país tem de passar por incentivar a consumir mais cultura e a ter mais hábitos culturais.

Já falou com o novo Governo?

Pertencemos a uma associação e vamos ter a primeira reunião com a ministra da Cultura no dia 9 de julho [hoje], onde vamos levar o nosso caderno de encargos, no sentido de conseguir que, pela primeira vez na história, o Governo reconheça e tenha políticas para o setor privado da cultura porque nunca tem. O secretário de Estado do Turismo trabalha com os privados e com o setor público, o da Economia também e para o da Cultura até hoje parece que somos um supermercado comercial, eles é que são as elites. Mas isso era no tempo da ditadura. Não vivemos em ditadura, mas na cultura querem impor-nos uma ditadura, querem impor a ditadura do gosto e linhas vermelhas. O stand-up comedy não é linha vermelha, música popular também não. Isto é tão idiota. É como na ópera, se quisermos ganhar mais público não é com certeza apresentarmos uma ópera de Wagner de 4 horas que é super difícil que vão ficar entusiasmados, nunca mais ninguém quer ir a um espetáculo de ópera. Temos de começar pelas mais fáceis, as chamadas óperas populares, Verdi, Puccini que têm histórias simples, canções bonitas. Se atrairmos pessoas para o stand-up comedy mais facilmente transitam para um teatro sério, não o contrário. As pessoas são pequeninas porque pensam que têm de ter uma linha programática e pensam que a sala de espetáculos tem de ser para os amigos. Não, isto é do povo, é de todos e se é de todos tem também de haver abertura para aquilo que foge da linha programática, como é lógico. Senão, não é democracia. É uma democracia só para o que gosto, não é o que a maioria gosta. Isto está completamente errado, é evidente que há uma parte da cultura que precisa de apoios e ninguém discorda disso, não podemos é estreitar o túnel. Isso era o que Salazar fazia com a censura. Agora há nova censura, o Estado substituiu-se. E curioso, no tempo do Estado Novo, a maior parte das salas de espetáculos eram privadas. Hoje, a maior parte são públicas. Aliás, há 39 locais de exploração de salas de espetáculo a tempo inteiro.

É um número reduzido…

Isto devia ser só no concelho de Oeiras, nem sequer estou a falar de Lisboa. Isto devia ser motivo de preocupação e como o Estado se apropriou, substituímos a censura pela ditadura. Na ditadura dizia-se que não se podia passar determinado tipo de filme, depois do 25 de abril é o programador que diz que não vai exibir aquele filme. Qual é a diferença?

Começou em 1995 com os festivais…

Era algo novo, não havia um hábito de festivais em Portugal, mas era um fenómeno que acontecia em toda a Europa. Na altura, éramos a terceira empresa e havia um espetáculo internacional de dois em dois meses, chegava o verão e havia quatro espetáculos, normalmente no estádio de Alvalade, mas como éramos a terceira empresa não conseguíamos

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