António Costa: inventor da ‘geringonça’ na primeira fila da Europa contra a extrema-direita

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Único representante dos socialistas europeus num lugar de topo da União Europeia, o antigo primeiro-ministro português tem duas funções essenciais: manter o socialismo relevante na Europa e barrar as tentações de direita de Ursula Von der Leyen.

FILE PHOTO: Portuguese Prime Minister Antonio Costa smiles as he attends a joint news conference with European Commission President Ursula von der Leyen and European Council President Charles Michel (not pictured) during the European Social Summit in Porto, Portugal, May 8, 2021. REUTERS/Violeta Santos Moura/File Photo

Quando António Costa, agora designado presidente do Conselho Europeu, inventou a ‘geringonça’, estaria já interiormente convencido que estava a abrir uma página nova nos anais da política europeia: não era mais uma das ultrapassadas frentes populares pré-eleitorais de esquerda – apesar de a França insistir sazonalmente (como neste momento) em ressuscitar Leon Blun, sempre com fraca colheita; nem era um acordo vago para uma futura convergência pós-eleitoral se tudo corresse mais ou menos bem. Nada disso: era transformar uma derrota numa vitória, recorrendo àquilo que escapara ao fim das ideologias: o apelo à própria ideologia. O sorriso com que António Costa perdeu as eleições de 2015 fazia temer qualquer coisa de novo, mas até os menos distraídos não perceberam o que viria por aí.

A geringonça teve várias consequências. A primeira delas, foi injetar na esquerda à esquerda do PS um soro de vida que a retirou do lugar de letargia em que se enredava desde os melhores anos do PREC. Em segundo lugar, mas isso foi muitos anos depois, acabou com a evidência de Portugal estava sociologicamente de esquerda – uma decorrência que o centro-direita ainda não agradeceu devidamente a António Costa (ou se calhar já). E em terceiro lugar, criou ‘jurisprudência’ na Europa (como foram os casos, entre outros, de Espanha e da Polónia): perder umas eleições pode não ser exatamente perder umas eleições. Serve para o bem e para o mal, para a esquerda e para a direita, para amigos e para simples conhecidos, mas serve – e o mundo político europeu passou a reconhecer António Costa.

Depois de 2015, o primeiro-ministro português passou a contactar com a Europa pelos nove anos seguintes. Os regimes democráticos europeus têm entre outras caraterísticas a capacidade de induzirem uma forte rotatividade de lugares: há sempre caras novas a aparecer em Bruxelas e Estrasburgo – o que, por um lado, deve ser uma tremenda dor de cabeça para pessoal adstrito ao protocolo da União Europeia e, por outro, induziu na figura de António Costa uma perceção de longevidade que não é comum nos corredores do edifício burocrático dos 27. António Costa era conhecido e reconhecido – mesmo quando decidiu mudar as armações dos óculos mais ou menos de dois em dois meses – como politicamente capaz, ideologicamente consistente e inovador, e estruturalmente astuto. A acrescentar, liderara um país que passou pela pandemia sem se afundar no oceano Atlântico, domara as diabruras da extrema-direita mantendo-a num registo de mera palhaçada político-pessoal, reconciliara socialistas de direita e de esquerda (por exemplo: Francisco Assis e Pedro Nuno Santos) e fizera a dívida descer abaixo dos 100% do PIB (mesmo que tivesse sido à custa dos balanços das empresas públicas e dos bonds europeus).

Isto é, só um partido socialista europeu muito distraído não tomaria a iniciativa de aproveitar tanto ativo junto. Ficou claro que, quando António Costa deixou de negar a possibilidade de ir para a União Europeia e se percebeu que o seu homólogo Pedro Sánchez estava definitivamente enredado numa novela cuja principal protagonista é a sua legítima esposa, o seu destino europeu estava escrito.

Agora que esse facto se consumou, António Costa sabe que foi traído pela Europa por que tão demoradamente esperou: a extrema-direita cresceu – mas isso já toda a gente sabia, dir-se-á. Nem toda: Ursula von der Leyen olhou para as sondagens e, não as tendo percebido completamente, tratou de enfiar-se numa carreira para Roma e ir prestar vassalagem à ‘papisa’ da cidade, Giorgia Meloni. Aparentemente, estaria convencida que, depois das eleições de junho para o Parlamento Europeu, conservadores e socialistas já não chegariam, em conjunto, para lhe manter o emprego. E foi a Roma fazer um seguro que – se soubesse ler números – saberia que não precisava. Mas não foi só isso: nestes cinco anos, Ursula von der Leyen tratou de ‘puxar’ a União Europeia para a direita (mais que da CDU alemã, von der Leyen parece da CSU bávara) e de ‘secar’ os lugares políticos que lhe estavam à volta. A presidência do Conselho (nas mãos de um simpático mas atabalhoado Charles Michel) e a Alta Representação Externa (na posse de um até à altura desconhecido espanhol chamado Borrell, que só muito tardiamente percebeu que a política externa da União passou a ser um caso sério de reacionarismo), foram as suas vítimas favoritas.

Ou dito de outra maneira: enquanto presidente socialista do Conselho Europeu, António Costa passa a ser a primeira linha da oposição à ‘reacionária’ alemã, que possivelmente vai continuar a colocar no terreno a sua estratégia de aproximação à extrema-direita, agora auxiliada por Kaja Kallas, designada Alta Representante para o Exterior, ex-primeira-ministra – e que podia muito bem ter sido secretária-geral da NATO 2024 ou Miss Estónia 2018.

De algum modo, está nas mãos de António Costa manter os socialistas europeus num lugar de relevância. Com as eleições antecipadas em França a ‘puxar’ tudo para o outro lado, o seu papel não será fácil. Mas os socialistas europeus têm esperança em António Costa. E os portugueses também – e só lhe pedem uma coisa: que, daqui por cinco anos, não aceite ser contratado por um banco norte-americano.

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