Atlantic Mavericks explora o lado experimental da pop portuguesa entre 82 e 93

4 meses atrás 211

Portugal, anos 80: um diferente planeta, noutra galáxia. País saído de uma revolução pacífica e que tinha atravessado um Verão “quente”, Portugal tinha na música um campo pouco dado ao hedonismo e à experimentação, com o espaço disponível na segunda metade da década de 70 a ser, sobretudo, preenchido pela denominada “música de intervenção”. Por isso mesmo, quando a geração que atravessava a adolescência por alturas do 25 de Abril (1974) finalmente se emancipou com a chegada à maioridade, as coisas começaram realmente a mexer. Até 1979/80, o que alguns historiadores — apostados a todo o custo em encontrar ecos nacionais das revoluções geradas por Elvis, Dylan ou os Beatles — identificavam como “rock” mais não era, na maior parte dos casos, do que ligeira música de baile sem um pingo de desafio ou resistência, marcas necessárias quando se quer explicar o que é, afinal de contas, essa arte eléctrica do afrontamento. Portanto, o despoletar do chamado “boom do rock português” a cargo de artistas como Rui Veloso e bandas como UHF teve o real sabor (e impacto…) de um momento zero, de um arranque de História, com o rock a ser capaz, pela primeira vez entre nós, de mencionar drogas e sexo e outros prazeres proibidos sem se deixar entorpecer pelas correntes moralistas dominantes. Depois, nos primeiros anos da década de 80, o surgimento de grupos como os GNR — de que sairia Vítor Rua — ou Heróis do Mar — grupo de Carlos Maria Trindade — apontaria o caminho para uma bem mais aventureira, no que à tomada de riscos estéticos dizia respeito, segunda parte da década.

Com a busca de paisagens musicais mais ousadas surgiu igualmente uma vincada vontade de independência. A criação da Fundação Atlântica em 1983 e, sobretudo, da Ama Romanta, em 1986, arrepiou o caminho para a cultura de edição independente em Portugal, mostrando então ser possível construir catálogos mais interessados na antecipação do futuro do que na busca urgente de um lugar de destaque no “mercado” do (então) presente. No alinhamento de Atlantic Mavericks, no entanto, a primeira entrada em termos cronológicos — o tema de 1982 “Em Campo Aberto” que Carlos Maria Trindade, teclista dos Heróis do Mar, reservou para o lado B do seu solitário single “Princesa” (que deveria ter anunciado um álbum que nunca saiu…) — teve o carimbo editorial de uma obscura Musa, etiqueta de vida breve ligada à Vimúsica (responsável em Portugal pela distribuição de alguns títulos do catálogo da Factory dos Joy Division), que se estreou nesse mesmo ano com um single de uma banda chamada Stratus que teve na cadeira de produtor… Carlos Maria Trindade. A Musa não tinha uma linha estética definida e aparentava ser apenas um selo destinado a encaixar projectos pontuais: além da new wave dos Stratus, experimentou com o balanço tropical da Voz de Cabo Verde ou com uma genérica aproximação ao disco assinada por Guilherme Silva antes de ter oferecido à posteridade o singular som do membro fundador dos Heróis do Mar e Corpo Diplomático.

“Em Campo Aberto”, como de resto “Princesa”, o tema que ocupava o lado A do single lançado pela Musa, serão dois dos mais sérios e certamente mais bem conseguidos exercícios de synth-pop do arranque português dos anos 80, um “desvio” curioso tendo em conta que os Heróis do Mar, que se tinham estreado em disco no ano anterior, alcançavam nesse mesmo ano de 1982 os píncaros do sucesso com a edição de “Amor”, facto que, aliás, talvez ajude a explicar porque não teve essa veia synth-pop de Carlos Maria mais exposição com a edição do álbum que terá mesmo chegado a ser gravado.

Em termos cronológicos, 1986 — o ano do aparecimento da Ama Romanta — é o mais representado no alinhamento de Atlantic Mavericks. Com essa data, encontram-se por aqui três faixas originalmente incluídas no alinhamento de Divergências, a histórica e ambiciosa compilação que inaugurou, em jeito de manifesto, o incrível catálogo da editora criada por João Peste, o frontman dos Pop Dell’Arte, e ainda “Andrómeda”, tema dos Balladium retirado do segundo volume da antologia Música Moderna Portuguesa lançada pela Dansa do Som (etiqueta ligada aos Xutos & Pontapés que lançou, sobretudo, música criada para os concursos de música moderna do importante clube Rock Rendez Vous).

A Ama Romanta, explicava-me há alguns anos João Peste, em declarações para um artigo da revista Blitz, representou “um papel extremamente ingrato, mas extremamente importante”. O artista elaborou depois: “Editou aquilo que tinha que ser editado e que mais ninguém tinha coragem para editar. De facto, conseguimos começar a mudar as coisas enquanto a Ama Romanta existiu, mas, obviamente, o sistema é sempre mais forte e, depois da Ama Romanta ter acabado, as coisas acabaram por voltar ao que eram (ou se calhar até ficaram piores). A política de mediocridade das grandes editoras tem destruido a própria indústria discográfica. Não foram os downloads ilegais que destruiram a indústria, mas a mediocridade das pessoas que a têm gerido e as suas políticas”.

O espírito combativo de Peste, bem patente nessas declarações, também se manifestava nas suas escolhas para a compilação que inaugurou a aventura Ama Romanta. Em Atlantic Mavericks encontramos temas de SPQR (“Flow”), Croix Sainte (“We Build Cities”) e Linha Geral (“Hino à Nossa Luta”) que no alinhamento de Divergências repartiam espaço com artistas oriundos das margens da pop, do punk e de outros territórios desafiantes como Mler Ife Dada (banda de Nuno Rebelo), Jorge Ferraz (também de Pop Dell’Arte e Santa Maria, Gasolina em teu Ventre!), Anamar, Grito Final, Jovem Guarda ou Essa Entente. 

Os SPQR eram a banda de José Pedro Moura (que foi também baixista de Mão Morta e Pop Dell’Arte) e Rafael Toral (também do grupo liderado por Peste e hoje um dos mais destacados nomes das franjas mais experimentais da nossa música contemporânea) a que mais tarde se juntou também o saxofonista Rodrigo Amado (hoje nome de referência a nível mundial no campo do free jazz e música improvisada); os Croix Sainte tinham lançado o histórico maxi The Life of He no ano anterior tornando-se num nome incontornável da nossa imberbe cena indie, representantes dignos do chamado “som da frente” (designação criada a partir do nome do histórico programa de rádio de António Sérgio); e os Linha Geral de Tiago Lopes e Carlos Manso mergulhavam nas mesmas águas turvas da cena indie, fazendo talvez uma ponte com a era da canção de intervenção, pelo menos no seu alinhamento político.

A outra peça do pequeno puzzle de 1986 aqui apresentado é “Andrómeda”, solitária amostra do som dos Balladium, projecto de Carlos Manso, também ligado aos Linha Geral: é uma curiosa peça de electrónica granular bem alinhada com a estética minimal synth que estabeleceu uma subterrânea tape culture por toda a Europa e mais além. Um tema suficientemente precioso para hoje se lamentar não se conhecer mais do output deste projecto que participou na segunda edição do mítico Concurso de Música Moderna do Rock Rendez Vous realizado em 1985, ano em que os Pop Dell’Arte foram distinguidos com o apropriado Prémio de Originalidade.

Igualmente da Ama Romanta era “Querelle”, tema que os Pop Dell’Arte de João Peste — e então também de José Pedro Moura, Sapo e Rafael Toral — lançaram em maxi em 1987 (contando aí com uma pontual colaboração de Nuno Rebelo), o mesmo ano em que foi editado o seu álbum de estreia, Free Pop. Invulgarmente, esse tema perfeitamente sintonizado com o mais disruptivo punk-funk de Nova Iorque ou Londres (e que em 2007 foi alvo de uma oportuna remistura da dupla electrónica The Glimmers) mereceu um vídeo clip de José Pinheiro (disponível no YouTube) que funciona como um tão nítido quanto raro retrato da estética indie portuguesa da época.

De 1988 é um dos mais singulares temas deste alinhamento: “Saxofonia” integrava o alinhamento do raro A Regra do Fogo, álbum que Luís Cília lançou no catálogo designado como Tejo, uma aventura comandada por Nuno Rodrigues (membro da histórica Banda do Casaco e A&R visionário na Valentim de Carvalho responsável pela direcção musical de António Variações) no seio da Transmédia. Cília fez nome nos terrenos da folk e da música popular por onde espalhou uma considerável discografia, mas em 1988 surpreendeu ao lançar um disco em que abraçava a electrónica dos sintetizadores e para que recrutou ainda o guitarrista Pedro Caldeira Cabral ou o saxofonista de jazz Edgar Caramelo. É aliás o sopro de Caramelo que domina o tremendo “Saxofonia”, criativo exercício de multitracking a que Cília adiciona o que soa a percussão de um DX7 com hipnótico efeito.

Igualmente de 1988, mas de um campo musical oposto, é “Irreal Social”, peça de tonalidades baleáricas e neo-românticas dos Ban de João Loureiro (banda herdeira dos mesmos Bananas que em 1983 editaram um solitário single de new wave, “Identidade”) e também de Ana Deus (mais tarde, fundadora dos aclamados Três Tristes tigres). Além de ter sido lançada em maxi, essa canção integrou ainda o álbum de estreia dos Ban, Surrealizar, também lançado em 1988.

1989 é outro ano-chave no alinhamento de Atlantic Mavericks: o facto dessa mesma colheita ter rendido música tão distinta quanto a que aqui se representa com “Vê-se das Nuvens” de Nuno Rebelo, “Voz do Mar” de Pilar ou “Daly” de Tó Neto atesta na perfeição a maturidade e diversidade que então a mais moderna música nacional já tinha logrado alcançar. 

Nuno Rebelo mantinha em paralelo a aventura de pop de vanguarda Mler Ife Dada, mas em 1988 estreou, no desfile de moda Manobras de Maio que teve lugar na Praça de Touros do Campo Pequeno, a peça Sagração do Mês de Maio (1ª Sinfonia Falsificada)” que daria título a um álbum surpreendentemente editado na ”gigante” EMI no ano seguinte. É um exercício de “exótica” “sakamotiana” que ainda hoje soa visionário. Na mesma editora e no mesmo ano saiu o homónimo registo de estreia da cantora Pilar, trabalho que contou com produção do mestre Wayne Shorter, membro do quinteto de Miles Davis e fundador dos Weather Report, uma verdadeira estrela do jazz americano que para este trabalho reuniu a nata portuguesa do género — Yuri Daniel no baixo, Mário Barreiros na bateria e guitarra e Mário Laginha no piano, todos eles ainda muito activos na nossa cena jazz contemporânea. “Voz do Mar” é mais uma baleárica peça de recorte elegante em que a voz algo limitada de Pilar consegue, ainda assim, banhar-se em luz. Finalmente, desse tríptico de 1989, há que referir “Daly”, que soa a tema de library da Bruton dos anos 80, todo ele feito de notas de néon de DX7 e pulsar de cadência tropical. Ideal para sunsets à beira-mar como o que aparece retratado na capa de O Negro, terceiro álbum do teclista Tó Neto lançado na pequena MBP e de cujo alinhamento este tema foi extraído.

As quatro mais recentes faixas seleccionadas para Atlantic Mavericks ostentam já as datas de 1990, 1991 e 1993, mas encaixam bem na estética que emanou da década anterior podendo, aliás, pelo menos num par de casos, terem sido ainda produzidas nos derradeiros momentos dos anos 80.

Esse será, quase certamente, o caso de “Crepúsculo” dos portuenses Fé de Sábio que em 1990 lançaram um solitário e homónimo LP na Discantus, etiqueta que no seu disperso catálogo percorreu a distância entre os fados de Coimbra, a música tradicional e as experiências ambientais deste grupo composto por Adalmiro Ferreira, Daniel Bessa, José Santos, Lino Sousa e Luís Santos. Alguns destes músicos apareceram mais tarde ligados a obscuros projectos de dark ambient (casos de Adalmiro e Daniel) ou até no âmbito do noise e drone em aventuras lançadas em etiquetas como a Illuminated Paths ou Castles in Space (caso de Luís, parte de The Murmurous Playground).

De 1991 são “T”, tema extraído do álbum Vidya de Vítor Rua lançado com selo Potlatch (em cujo catálogo não se conhece nenhuma outra entrada), e também “Optical Sunday Without William Burroughs”, peça de um EP auto-editado e homónimo dos Santa Maria, Gasolina Em Teu Ventre! de Jorge Ferraz e, entre outros músicos, Tó Trips, guitarrista que continua a ter prolífica carreira (Club Makumba é a manifestação mais recente de um percurso que teve natural ponto alto com os Dead Combo).

O primeiro tema, que no alinhamento de Vidya é creditado a Telectu, duo que Vítor Rua criou com Jorge Lima Barreto (músico falecido em 2011), é o único desse projecto em que o músico mais conhecido por tocar guitarra ou sintetizadores usou o clarinete: “Uso um loop para criar um baixo pulsante no clarinete, e sobre esse loop crio depois melodias no clarinete”. Rua, dono de uma memória nítida, vai mais fundo: “O Jorge Lima Barreto está nos samplers (Roland) e numa bateria electrónica Alesis, a tocar percussão, e no violino está o Carlos Zíngaro a solar durante todo o tema reagindo às frases do meu clarinete”. 

Por outro lado, o tema com o mais rebuscado título desta compilação, “Optical Sunday Without William Burroughs”, dos também exuberantemente nomeados Santa Maria, Gasolina Em Teu Ventre!, integrava um EP auto-editado e vivia de absurdas colagens de palavras sobre asbtractos improvisos de free rock. 

A mais recente entrada, em termos cronológicos, no alinhamento de Atlantic Mavericks cabe, uma vez mais, aos Telectu de Rua e Lima Barreto. O tema, retirado da antologia Theremin Tao (lançada na SPH de Fernando Cerqueira) que reunia peças inéditas gravadas entre 1982 e 1992, é descrito por Vítor Rua: “É uma programação minha em computador, ligada aos sintetizadores Jupiter 6 e Roland JX3P, numa frase em loop criada para a a instalação do artista plástico José Nuno da Câmara Pereira ‘EBRACH’ (Em Baixo Rente Ao Chão), que venceu o Prémio AICA. Usei timbres de metalofones e essa música era passada nos passeios de Lisboa, junto ao Fórum Picoas, no Natal, e as pessoas escutavam na rua a música. Era uma frase muito melódica, sem início e sem fim”.

Atlantic Mavericks: A Decade of Experimental Music in Portugal (82-93) tem curadoria de Glossy Mário e é lançada no selo madrileno Glossy Mistakes, funcionando, dessa forma, como uma observação distanciada de um prolífico período da música criativa nacional, quando tudo estava ainda por fazer e descobrir e cada passo tinha sempre o sabor de um início de nova aventura. Escutando esta música — e a mais antiga das peças aqui incluídas já soma quatro décadas —, percebe-se que, de facto, estes foram sobretudo impulsos criativos que procuraram agarrar o futuro. O tempo aqui está suspenso e não existe. Como a música descrita por Vítor Rua, não tem início, nem fim.

Nota: Este texto foi escrito a convite da Glossy Mistakes para acompanhar a edição de Atlantic Mavericks.


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