Benni McCarthy, herói portista: «Separação entre Ronaldo e Ten Hag era inevitável»

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Se há homem perfeito para lançar o FC Porto-Manchester United, esse homem é Benedict Saul McCarthy

De dragão ao peito, Benni faz 59 jogos em 125 jogos oficiais e ganha tudo o que há para ganhar. Na memória azul e branca, os golos ao United (lá está!) e o livre decisivo em Old Trafford são instantes condenados à eternidade. 

No total são dois campeonatos, uma Taça de Portugal, duas supertaças, uma Intercontinental e, claro, uma Liga dos Campeões. 

qÉ importante que as pessoas saibam que, bem lá no fundo, o Bruno Fernandes é um grande portista. Um portista verdadeiro. Contou-me que quando era pequeno, ele e a família dele eram adeptos do FC Porto. E disse que me adorava ver quando eu jogava lá

Benni McCarthy

Nas duas últimas épocas, de 2022 a 2024, Benni McCarthy é elemento fundamental na equipa técnica dos red devils. Responsável pelo trabalho individual dos atacantes do United (incluindo Cristiano Ronaldo em 22/23), pela implementação da estratégia ofensiva e na mentoria de Rashford, Hojlund, Garnacho, Martial, Pellistri, Antony...

Na entrevista ao zerozero, McCarthy detalha esses dois anos no United, fala abertamente sobre os predicados e os defeitos de Ten Hag, opina livremente em relação aos problemas atuais do gigante de Manchester. 

Os portugueses Bruno Fernandes, Diogo Dalot e Cristiano merecem muitas palavras e elogios sobre a atitude exemplar. «Se todos treinassem como eles...»

Aos 46 anos, a viver na Escócia e ainda a falar um português perfeito, Benni McCarthy está preparado para assumir o comando técnico de uma equipa europeia - «se for em Portugal ou em Inglaterra, perfeito» - e recorda os cinco anos de grandes resultados no Cape Town City e no Amazulu, incluindo o troféu de Treinador do Ano em 2021. 

O menino bon vivant de outros tempos já não existe, mas neste chefe de família persiste a alegria de sempre. Uma hora de revelações e sorrisos com Benedict Saul McCarthy. 

NOTA: a PARTE II da conversa será publicada na tarde desta terça-feira. 

@Getty /

zerozero – Boa tarde, Benni. Sabemos que está a viver em Edimburgo.

Benni McCarthy –

É isso mesmo, obrigado pelo convite. E é sempre maravilhoso ver essa camisola azul e branca que aparece na imagem.

zz – Deixou o Manchester United em junho, depois de duas temporadas a trabalhar na equipa do Erik tem Hag. O que está a fazer nesta altura?

BM – Nos últimos meses tenho-me dedicado ao comentário televisivo, principalmente na Premier League TV. Mas não é fácil estar longe da relva. O futebol está-me no sangue. Falar sobre futebol é bom, mas eu preciso de estar no campo ao lado dos futebolistas e a tentar fazer deles cada vez mais competentes. Estou à espera da oportunidade certa para voltar a treinar, seja em Inglaterra, seja em Portugal.

zz – Estaria recetivo a um convite de um clube português?

BM – Adoraria ter esse desafio, porque Portugal é o meu país adotivo. É onde me sinto verdadeiramente em casa, depois de sair da África do Sul. Seria, claramente, a minha primeira opção para liderar uma equipa técnica.

zz – Continua a falar bem a língua portuguesa, conhece bem a liga e os clubes. Não seria difícil adaptar-se novamente.

BM – Joguei no FC Porto vários anos, conheço bem a cultura, a mentalidade e adoro aforma de estar dos portugueses. A qualidade dos futebolistas, a técnica individual, tudo isso me encanta. Julgo que é um país que dá ao treinador as condições certas para ser bem-sucedido. Acredito que o meu futuro pode passar por aí para, mais tarde, ter a capacidade de treinar equipas do nível do FC Porto e do Manchester United.

zz – Como é que o Benni se define enquanto treinador? Quais são as suas ideias dominantes?

BM – Julgo que as minhas ideias acompanham o meu background, sou um tipo duro e que vem de uma infância dura. Tive uma existência humilde enquanto criança, sei bem o que é sofrer e sei o que é ter de trabalhar no duro para alcançar o sucesso. Esses são os valores que procuro instituir em cada um dos meus jogadores. Temos de viver alicerçados no que construímos enquanto seres humanos.

zz – E daí partir para o relvado?

BM – Levar esse compromisso para a relva, sim. E fazê-lo com paixão, amor. É através dessas sensações que construímos o melhor futebolista e o melhor treinador. Tenho grandes referências no mundo do treino e adorava ver essa paixão no trabalho deles. O José Mourinho é o melhor exemplo que tenho para dar. Foi o meu melhor treinador e sempre viveu através desse código de compromisso. Era apaixonado e fez da nossa equipa uma equipa também apaixonada pelo trabalho. Pelo Mourinho, e pelo FC Porto, os atletas jogavam com orgulho, paixão e amor e por isso ganhávamos 99 por cento dos jogos. É esse o tipo de treinador que tenho sido e procuro ser sempre.

«O Bruno Fernandes é um grande portista»

zz – O futebol é mais do que paixão. O que procura ver mais das suas equipas em campo?

BM – Eu sou um tipo apaixonado, amo futebol e tento que os meus jogadores sejam assim também. Os meus jogadores têm de competir com um sorriso nos lábios, têm de se divertir em campo. Se juntarmos a isso o compromisso, não tenho dúvidas de que o sucesso aparece.

zz – Foi isso que procurou levar ao Manchester United nas duas últimas temporadas? A experiência terá sido fantástica, pois esteve na equipa técnica de um dos melhores clubes do mundo.

BM – Foi uma experiência incrível, mas muito dura também. O clube é enorme, sabemos isso, mas quando estamos lá dentro percebemos ainda melhor o peso e a exigência dessa dimensão. O dia-a-dia era duro, competitivo, porque o United exige sucesso dia após dia e, enfim, nem sempre os jogadores estavam disponíveis para dar o mesmo tipo de resposta. E depois víamos o mesmo a acontecer nos jogos. E quando os resultados não são bons, o mundo inteiro fala das dificuldades do Manchester United.

zz – O que guarda dessa experiência com o treinador Tem Hag no United?

Benni McCarthy
16 títulos oficiais

BM – O que retirei de melhor foi a minha relação individual com cada um dos jogadores. Criei uma ligação fantástica com todos eles. Eles percebiam-me e eu percebia-os. Mas eu não era o treinador principal e, por isso, as minhas ideias não podiam passar diretamente para a equipa. Antes de chegar à equipa, tinha sempre de comunicar o que pensava ao treinador principal, o que é normal. Para alguém como eu, com convicções fortes, não é fácil. A última palavra era sempre do Erik.

zz – O Ten Hag é muito diferente de si?

BM – Às vezes, não via nele essa paixão de que falo. Ele tem uma personalidade diferente, um perfil diferente. Acho que essa foi uma das dificuldades que a equipa e os jogadores encontraram.

zz – O Bruno Fernandes foi um dos jogadores com quem se deu bem?

BM – A minha relação com o Bruno é especial. É importante que as pessoas saibam que, bem lá no fundo, o Bruno é um grande portista (risos). Um portista verdadeiro. Tínhamos muitas conversas e ele contou-me que quando era pequeno, ele e a família dele eram adeptos do FC Porto. E disse-me que me adorava ver quando eu jogava lá. 

zz – O Bruno era muito pequeno quando o Benni estava no FC Porto. Teria uns dez anos.

BM –

Isso mesmo. Mas ele acabou por jogar na formação do Boavista e, mais tarde, no Sporting. Nunca no FC Porto.

zz – Talvez ainda consiga cumprir esse desejo de criança.

BM – Não creio. O Bruno é da elite mundial e tem capacidade para jogar no Real Madrid. Isso é quão especial ele é. Adora o trabalho diário e tem a tal paixão de que eu falava. O Bruno vive sob esse desígnio dia após dia, a paixão e o treino duro. O Diogo [Dalot] também é assim. Outro grande portista. O Diogo era o meu filho no plantel, olhava sempre por ele. Quando eu jogava no FC Porto, até 2006, o Diogo jogava nas escolinhas do clube e por isso ele sabia tudo sobre mim.

Foi maravilhoso partilhar essas memórias com eles e dar-lhes os conselhos que eu podia dar. Se alguns jogadores do Manchester United tivessem o que o Bruno e o Diogo têm, teria sido mais fácil ter bons resultados. Eles os dois treinavam com uma concentração impressionante, davam tudo o que tinham. Alguns dos outros não faziam o mesmo. Isso acabava por limitar a progressão da equipa do United, porque alguns jogadores não treinavam no limite das suas capacidades. Mesmo nos jogos, os dados mostravam-nos que alguns futebolistas estavam no patamar máximo de performance e outros um bocadinho abaixo.

zz – Isso explica em parte o insucesso do Manchester United.

BM – Não ajudava a equipa a ser bem-sucedida. Mas, sim, foi uma experiência tremenda para mim. E fez-me perceber que eu tenho de ser treinador principal, tenho de ser eu a saber dar o que os jogadores realmente precisam.

zz – Por isso optou por sair? Já não estava confortável no papel de treinador-adjunto.

BM – Sim, sim. Quero ser o espelho da imagem dos meus futebolistas. Quero que eles tenham a mesma mentalidade, a mesma ambição, a mesma atitude e a mesma cultura em que eu me desenvolvi. Para mim, treinar é como estar num jogo oficial. Quando era futebolista, já detestava perder quando estava num treino. Era e continua a ser a minha personalidade. Tornei-me cada vez mais competitivo e ainda mais desde que sou treinador. Acho que é saudável para as minhas equipas.

zz – Na função de adjunto é mais difícil fazer isso.

BM -

No papel de adjunto, a verdade é que eu era só mais uma voz atrás do treinador. E os jogadores gostam de perceber se o treinador deles é conservador, se é silencioso. E se ele for assim, os jogadores também serão assim, principalmente nos momentos mais difíceis. Mas se eles tiverem um treinador que os faz arder de paixão, eles vão entrar no máximo e a dar o máximo. Mesmo assim, eu vou chegar ao intervalo e vou dizer-lhes ‘vamos lá, rapazes, eu preciso de mais do que isso, devia estar 5-0 e não 2-0’. O José Mourinho era muito assim. Eu não quero ser apenas um Mourinho, quero ser o Benni Mccarthy. Mas há características dele que me inspiram.  

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«Ten Hag é inteligente, mas falta-lhe paixão»

zz – O Manchester United visita o FC Porto dentro de poucos dias. O que nos pode revelar sobre as convicções do Erik ten Hag? São muito diferentes das suas?

BM – Não muito diferentes, porque taticamente o Erik é um dos treinadores mais espertos que conheci. É inteligente, um homem muito inteligente. Meticuloso, preocupado com os detalhes. Ele colocava tudo ao dispor dos jogadores, explicava-lhe com cuidado todas as situações possíveis e imaginárias sobre o jogo. Depois, no final de contas, tinham de ser os jogadores a entrar em campo e a dar uma resposta boa. Quando o jogo corria bem, toda a gente dizia que ‘uau, o Ten Hag é inacreditável’, mas quando corria mal… o treinador é questionado. Mas tenho de afirmar que o Erik é um excelente treinador e um tipo extremamente inteligente.

zz – O que tem impedido o United de ser mais competitivo e lutar pelos maiores troféus?

BM – No futebol moderno, acredito que os futebolistas querem ver um pouco mais de paixão no seu treinador. Têm de sentir que o treinador está com eles e disposto a lutar ao lado deles. Taticamente, sinto que o Erik está no topo. Falta-lhe um bocado dessa chama, dessa paixão. É aí que somos diferentes, eu e ele. Quero estar ao nível dele no campo do domínio tático. Acho que a minha maior força é a empatia que crio com os jogadores e que lhes permite jogar a um nível que concilia paixão, determinação e desejo. É assim que se ganham os jogos, principalmente os mais exigentes. Essa é a diferença, esse fogo que sinto em mim, essa fome que tenho. O Erik é mais conservador. Oferece toda a informação aos jogadores e depois espera que eles cumpram no relvado.

zz – Foi difícil para o Ten Hag saber como lidar com o Cristiano Ronaldo?

BM – Sim, foi. Não foi fácil, porque o Cristiano é uma personagem enorme. Tem a sua personalidade, a sua maturidade e quer um treinador que o perceba também. A dada altura, é verdade, as coisas começaram a não funcionar entre eles.

zz – E o Cristiano começou a jogar menos minutos.

BM – O Erik tinha a sua filosofia, as suas ideias e não via o Cristiano a fazer parte delas. E os problemas nasceram. O Cristiano não ficava contente quando não jogava, porque dava tudo o que podia nos treinos. Ele treina como nunca vi antes alguém a treinar. Eu até ficava invejoso ao vê-lo, porque a nossa diferença de idade não é grande (risos). Ele é um jogador de elite em tudo, mesmo nesse comportamento.

zz – Nada há a apontar ao nível de compromisso do Cristiano?

BM – Ele chegava cedíssimo aos treinos, talvez duas horas antes de todos os outros começarem a chegar. E fazia tudo o que estava ao alcance dele para colocar o corpo a funcionar. Foi o atleta mais impressionante que conheci em toda a minha vida. Nem todos os atletas têm o que é preciso para ser assim. O Cristiano é um profissional de excelência. Infelizmente, a filosofia do treinador era diferente do que ele idealizava.

zz – O que pedia o Ten Hag a um jogador da posição do Cristiano?

BM – Ele queria um avançado capaz de pressionar logo à frente. E o Cristiano considerava que esse trabalho devia ser realizado pela equipa, como um todo. Com ele, em algumas zonas, o melhor a fazer é dar-lhe a bola e deixá-lo fazer as suas coisas. O Cristiano via o Ten Hag a optar pelo Martial e o Rashford na posição ‘9’ e não ficava satisfeito, porque sentia-se superior a todos eles. O treinador via as coisas de forma diferente.

zz – A separação era inevitável?

BM – Sim, era inevitável. No fim ele acabou por abandonar o clube e escolheu o Al Nassr. Está a provar a toda a gente que ainda consegue fazer golos. Se trabalharmos como equipa e depois deixarmos o Cristiano fazer o que precisa de fazer na posição dele, porque é o melhor do mundo nisso, é o ideal. Acho que o Manchester United desperdiçou uma grande oportunidade de utilizar o Cristiano da forma correta. Mas eu não era o treinador principal e não podia ser eu a tomar essas decisões. 

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«O Cristiano gostava de falar sobre o Sporting»

zz – Teve uma relação forte com o Cristiano? Afinal, ainda foram adversários em Inglaterra e ele deve lembrar-se do Benni no FC porto.

BM – Falámos muito sobre o Sporting, o FC Porto, pormenores de treino. Falámos sobre a mentalidade desses tempos comparada com a que víamos nos treinos do United. Falávamos sobre a forma como alguns dos nossos jogadores treinavam… Ele gostava de falar sobre o Sporting, do desejo que via na equipa. E dizia que ter jogado no Sporting, com a geração dele, tinha sido a melhor das sensações. ‘Benni, eu vejo agora jogadores a estarem num dos maiores clubes do mundo e a mentalidade é esta. Não percebo como não têm o desejo de querer mais’.

zz – Concordava com as palavras do Cristiano?

BM - Eu percebia-o, porque no FC Porto era exatamente assim, tínhamos de treinar de caneleiras e pitões de alumínio. Como se o treino fosse um jogo a sério. Todos treinavam no limite porque queriam jogar no domingo. E depois estávamos ali no Manchester United, um clube de elite, e o nível de treino… nós não conseguíamos compreender. Fiquei muito triste com o que o Cristiano estava a passar e com a saída dele. Mas, como já disse, eu não era o treinador principal. Não podia ser eu a tomar a decisão de mudar, tinha de seguir o que queria o Erik. Mas sei que o Cristiano diz o que já dizia nessa altura: ‘O Benni? Cinco estrelas’. (risos)

zz – O que podemos esperar deste Manchester United no Dragão?

BM – Eles têm de dar uma resposta rapidamente. No jogo contra o Twente fizeram 45 minutos muito bons, controlaram muito bem o jogo, podiam ter feito três ou quatro golos pelo menos. Não resolveram o jogo e na segunda parte… deixaram de fazer o que estavam a fazer bem. Deixaram de pressionar alto, de trocar a bola com rapidez e começaram a permitir transições perigosas. O Twente sentiu-se mais confortável, confiante e até podia ter saído de Old Trafford com uma vitória. Por isso, de certeza que no Porto vão dar tudo para deixar uma imagem diferente. Mas eu acho que vai ser o jogo mais difícil para o United nesta Liga Europa.

zz – Poucos, como o Benni, conhecem tão bem o Dragão.

BM – O FC Porto é uma equipa diferente quando joga em casa. No jogo em Bodo, na Noruega, não reconheci o meu FC Porto. Talvez tenha sido o piso artificial, porque normalmente os jogadores não gostam de jogar nessa relva. Mesmo assim, acho que a falta de qualidade demonstrada pela equipa foi indesculpável. O Porto devia ter feito muito mais, mas agora tem uma oportunidade tremenda para derrotar o Manchester United. Acredito, sinceramente, que o FC Porto tem equipa suficiente para ganhar e pode tirar partido da tremenda pressão que existe sobre o United.

zz – O que precisa de fazer o FC Porto para ganhar ao United?

zz – Mudar a mentalidade demonstrada na Noruega, porque não vi uma equipa apaixonada, esfomeada, mesmo contra dez adversários o FC Porto sofreu em campo. Tem de fazer melhor, muito melhor, para derrotar o United. E tem qualidade para isso.

zz – Além do Bruno Fernandes e do Diogo Dalot, há algum atleta do Manchester United que queira destacar?

BM – Lisandro Martinez. Tem a paixão, a capacidade de luta, a personalidade. Pode jogar em qualquer equipa do mundo, porque tem a mentalidade certa. Além do Lisandro… o Marcus Rashford. Está a voltar ao seu melhor e pode ferir o FC Porto em alguns movimentos. Finalmente, o Alejandro Garnacho. Gosto muito do garnacho, mas tem de jogar com mais regularidade. Não sei se existe algum problema entre ele e o Erik, mas não tem sido titular muitas vezes. Ah, só mais um: o Amad Diallo. Jogador incrível, incrível, ainda pouco conhecido. Defende e ataca bem, toma sempre as melhores decisões e sabe marcar golos.

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