Cannes entre metamorfoses, desilusões e uma Palma de Ouro honorária a George Lucas: “Este festival está num lugar especial no meu coração"

4 meses atrás 90

Diga-se o que se disser de Cannes 2024, esta foi a edição em que Francis Ford Coppola, Paul Schrader e George Lucas, três nomes capitais para a transformação do cinema americano há mais de cinco décadas, coincidiram por uns dias no mesmo espaço e no mesmo tempo. Coppola e Schrader estiveram no concurso, o primeiro com uma ficção arriscadíssima e difícil de balizar (“Megalopolis”), o segundo com uma 'encomenda' que lhe caiu nas mãos a partir de fonte literária e que é filme tão digno quanto discreto no seu percurso (“Oh Canada”). Nesta sexta-feira, foi a vez de George Lucas receber o terceira Palma de Ouro à carreira da edição em curso (duas outras foram atribuídas a Meryl Streep e aos estúdios nipónicos de animação Ghibli).

Numa conversa informal mas sem direito a perguntas da imprensa (Cannes chama-lhes “Rendez-vous avec...”), Lucas fez uma panorâmica geral do percurso, no palco esteve o homem eternamente tímido que tantas vezes preferiu agir na sombra como produtor, embora fosse um dos mais poderosos a mexer os cordelinhos da indústria. No palco esteve também o artista visionário que um dia fez um dos filmes mais radicais do cinema americano, “THX 1138” (obra-prima que não envelheceu uma ruga) e, em simultâneo, o mentor de “Star Wars”, outro marco na história de cinema que cresceu ao ponto de sufocar tanta criatividade à sua volta, até se transformar num ogre financeiro (a saga da Lucasfilm é hoje propriedade da Disney).

“Nós não estávamos interessados em ganhar dinheiro, só em fazer filmes”, disse o artífice de “Star Wars” ao recordar os seus primeiros anos no cinema. E a plateia aplaudiu, cordata, com a noção clara de que Lucas estava a ser sincero mas que essa ordem de prioridades durou o que durou: o tempo de uma juventude. Mas o autor de “American Graffiti” foi mais longe, para ele o êxito de “Star Wars” passa de geração em geração porque as aventuras de Darth Vader e Luke Skywalker sempre se dirigiram ao jovens. Ou à juventude que existe em nós.

Lucas tornou-se há escassos dias um senhor com oitenta anos de idade. Em 1969, fundou com Coppola a American Zoetrope. Entre tantos outros títulos, é também o homem que está por trás da produçã de “Indiana Jones” mas, no ano passado, faltou à chamada de Cannes para a estreia de “Indiana Jones e o Marcador do Destino”, ausência que tornou esta visita ainda mais especial.

Lucas também respondeu com ironia a quem, noutras ocasiões, o criticou pelo facto dos seis primeiros “Star Wars” serem tão habitados por pessoas de raça branca: “A ideia é que é suposto aceitarmo-los [as personagens] por aquilo que são, ndependentemente de serem gigantes, peludos ou verdes. A ideia é que todos são iguais. E a maior parte deles são aliens!”

Mas voltemos a Paul Schrader, que a meio do festival mostrou em “Oh Canada” o seu “filme monóculo” (a expressão é dele em entrevista ao Expresso), isto é: um filme com um só olhar, baseado num só personagem, no caso, um realizador de documentários com câncro em fase terminal e que se deixa entrevistar antes do fim anunciado. É obviamente obra a considerar, Schrader nunca o faria por menos, até porque a personagem de Richard Gere vai revelando ser um tipo ambíguo e que passou a vida a contornar compromissos. Acontece que o cineasta vem de uma prodigiosa década que nos deu “No Coração da Escuridão” e “The Card Counter: O Jogador”. Este “Oh Canada” olha para eles como um primo afastado.

O caso de Yorgos Lanthimos é mais estranho (palavra que rima bem com o cineasta grego) porque “Kinds of Kindness” foi um voluntário passo atrás (e não para dar dois à frente) depois do espalhafato criativo e decorativo de uma grande produção como “Pobres Criaturas”, que o coroou em Veneza e o levou aos Óscares.

“Kinds of Kindness” é um filme de amigos, que repete em parte o elenco da obra anterior (Willem Dafoe e Emma Stone) com novas caras nesta filmografia (Jesse Plemons e Margaret Qualley), baseado num argomento de Yorgos escrito há anos, e que tem forma de tríptico, já que há três histórias independentes no filme, interpretadas pelos mesmos atores - todas em torno do ocultismo.

Também não abona a favor de “Kinds of Kindness” que a melhor das três histórias seja a primeira, é que depois é sempre a descer. É um filme de 'intervalo' - nada contra - exercício de descompressão em que toda a gente se divertiu mais do que a audiência (melhor para eles) e em que o grego voltou a trabalhar com Efthimis Filippou, o argumentista de “Canino” e “Alps”.

Na Nápoles de Paolo Sorrentino e de “Parthenope”, filmada em altíssima definição e em Scope, não há estranheza (salvo um momento fantástico que o cineasta guarda para o final), nem sequer um papel no chão para manchar o décor, só beleza, chega mesmo a ser estonteante – o filme é o retrato de uma mulher, estudante de antropologia, dos anos 50 à atualidade, a atriz que interpreta é um encanto, mas a nível criativo Sorrentino nada acrescenta de novo à sua obra.

“Motel Destino”, de Karim Aïnouz, segunda participação consecutiva do brasileiro no concurso principal, é uma entrada pouco convincente num realismo sujo, de cores berrantes, saturadas. Karim procura desta vez uma fisicalidade grotesca ao invés da elegância ou do retrato na primeira pessoa de obras anteriores. Neste caso, o décor é um motel do Ceará que funciona como casa de passe, o casal que o gere (Nataly Rocha e Fabio Assunção) alberga um rapaz que está a fugir à polícia, até que o patrão machão descobre a infidelidade da companheira.

É a pulsão sexual, uma vez mais na obra do cineasta brasileiro, a tomar conta do jogo. Mas o filme frustra como thriller que tenta talvez evocar “sertões” e “cafagestes” de outros tempos da história do cinema brasileiro, é um filme que tarda a encontrar-se, sobretudo face a uma obra da qualidade de “A Vida Invisível”.

Em contraponto, porque surpreendeu e se afirmou, porque tinha tudo para irritar e, pelo contrário, conquistou-nos, há que falar de “Marcello Mio”, de Christophe Honoré, que operou uma metamorfose bem menos evidente que “Bird”, de Andrea Arnold, ou que “The Substance”, de Coralie Fargeat (é engraçado, este filme foi visto há oito dias mas é como se já estivesse a anos de distância da memória, de tal forma se esfumou). Mas a metamorfose de Honoré é uma metamorfose quand même.

Chiara Mastroianni em “Marcello Mio”

O ponto de partida do filme é uma evocação de Marcello Mastroianni, a memória coletiva que ele deixou em nós, espectadores, e este eco face a uma memória mais íntima, pessoal, de algumas pessoas que dele foram próximas, a filha Chiara Mastroianni, a mãe dela, Catherine Deneuve, ao grupo junta-se Fabrice Luchini, Nicole Garcia, Benjamin Biolay…

Mas há que ser preciso e o próprio Honoré fez questão disso em entrevista: não há aqui qualquer homenagem (a Marcello Mastroianni), só uma ficção permeável às coisas da vida, escrita a pensar na memória do ator italiano que conhecemos de Fellini ou De Sica (e que também filmou com Manoel de Oliveira), curiosamente no ano do centenário do seu nascimento. Entretanto há delícias, Luchini, por exemplo, a recordar o que outrora lhe disse Michel Bouquet: “o único conselho que há a dar a um ator é que ele deixe de ter personalidade...”

E neste contrato de amizade, Chiara, a filha, 'perde' a identidade. Honoré filma esse princípio de ficção em que ela, no filme, deixa de ser quem é para se redescobrir numa identificação com o pai (é a cara chapada dele). E dali partiram ambos, Honoré e Chiara, para uma comédia de vidas sonhadas, assunto caro ao cineasta francês. É um dos seus melhores trabalhos.

Mohammad Rasoulof

LOIC VENANCE

Cannes já exibiu entretanto “The Seed of the Sacred Fig”, do iraniano Mohammad Rasoulof. Que não voltará tão cedo a solo persa, a menos que o regime caia num destes dias. Falámos com o iraniano esta sexta-feira. É pena que uma Palma de Ouro não baste para mudar o mundo. Porque o choque com o regime, desta vez, é mesmo frontal: para Rasoulof, “The Seed of the Sacred Fig” - estrondoso filme a que voltaremos - é um rio sem regresso.

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