Comoção brasileira diminui urgência em equiparar aborto a homicídio mas projeto segue vivo

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"Temos muita preocupação com este projeto de lei", disse à Lusa Flavia Estevan, da Organização Não-Governamental (ONG) Coletivo Feminista, frisando que vislumbra esta proposta inserida "numa série de ataques sequenciais, e praticamente semanais, à pauta [assunto em discussão] do aborto no Brasil".

"O fundo do poço parece ter chegado quando você está dizendo que criança vai ser presa por homicídio, com uma pena maior do que o estuprador [violador]. Já é uma coisa tão fora de tudo, que a gente conseguiu que a sociedade reagisse", sublinhou a ativista.

"O acesso aos serviços existentes já são mínimos", numa lei em vigor, praticamente inalterada desde 1940, e uma das mais rígidas da América Latina. No Brasil, de acordo com a legislação atual, o aborto só é legal em casos de violação (todas as gravidezes antes dos 14 anos são consideradas violação mesmo com relação sexual consentida), risco de morte para a mãe ou anencefalia do feto.

A proposta de projeto de lei aprovada com caráter de urgência numa votação que durou 23 segundos, na semana passada, foi apresentada pelo deputado Sóstenes Cavalcante, do Partido Liberal (PL), do ex-Presidente Jair Bolsonaro, e propõe uma alteração no Código Civil, a fim de estabelecer penas semelhantes às do homicídio para mulheres que interromperem uma gravidez após 22 semanas, mesmo aquelas que sofreram uma violação.

Com esta proposta, se o aborto for realizado após 22 semanas de gestação, será considerado "homicídio simples", para o qual a lei prevê penas que variam de seis a 20 anos de prisão, uma pena maior do que a aplicada aos violadores, que varia de seis a doze anos de prisão.

 "Isto num momento em que a gente deveria estar a falar em como ampliar o acesso", considerou Flavia Estevan.

Estas alterações sugeridas pelas bancadas conservadoras e evangélicas no Congresso, que reúne pelo menos 56 assinaturas, afeta sobretudo as meninas com menos de 14 anos, disseram à Lusa várias ONGs.

Nestas idades, as jovens têm pouca noção do que está a acontecer com o seu corpo, escondem da família, vão aos hospitais e "os funcionários falam parabéns".

"Nem os funcionários de saúde abordam essa possibilidade" de aborto, frisou.

À Lusa, a coordenadora executiva de Católicas pelo Direito de Decidir, Denise Mascarenha, sublinhou que as organizações estão "numa vigilância constante, porque o ataque aos direitos sexuais e reprodutivos e a tentativa de criminalização total do aborto no Brasil é um projeto que ganhou muita força" desde a vitória presidencial em 2018 de Jair Bolsonaro com uma agenda alegada de "moral e dos bons costumes".

Uma rapariga ou mulher foi violada a cada oito minutos, em média, no primeiro semestre de 2023, de acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que indica ainda que 74% das denúncias envolveram vítimas consideradas "vulneráveis", ou seja, menores de idade ou pessoas incapazes de dar consentimento por doença ou deficiência.

"É assustador que tramite em urgência dentro de um congresso uma lei que olhe para essa criança que já está passando por tudo isso e queira submetê-la a uma pena socioeducativa", disse Denise Mascarenha, numa alusão às mudanças no projeto de lei após a revolta social, que incluem o aumento de pena para os violadores e o acompanhamento psicológico como única medida socioeducativa para as adolescentes violadas que abortarem.

Ainda assim, a responsável da ONG católica que refuta a ideia do aborto como um dogma, releva a importância do debate ter sido vencido na opinião pública: "Vamos ver qual o impacto disso nos passos do Congresso", disse.

"A gente não sabe se vai conseguir engavetar isso", completou.

Em declarações à Lusa, o professor permanente do programa de pós-graduação em ciência política e do programa de pós-graduação em comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Emerson Urizzi Cervi, explicou que a vitória, parcial, da sociedade civil deveu-se a ter havido "tanta comoção porque esse tema entrou no debate público no Brasil, não pela chave da discussão sobre o aborto", já que a esmagadora maioria da população é contra a interrupção voluntária da gravidez, mas pela "discussão sobre o estupro".

"E isso fez toda a diferença, porque não há ninguém a favor do estupro" numa ação em que as mulheres violentadas seriam duplamente punidas, sendo por isso que "a bancada evangélica e os conservadores estão perdendo o debate", detalhou.

O analista político recordou, ainda, que, por ser um tema delicado junto da sociedade brasileira, "só depois de ter ficado claro qual era o debate é que o Presidente entrou, que a primeira dama entrou, que os ministros de Estado entraram, dizendo a mesma coisa: `nós não vamos punir a mulher, a menina, que foi vítima de estupro`".

Um estudo encomendado pela CNN Brasil em agosto de 2023, mostra que 43% dos brasileiros são contra a legalização da interrupção da gravidez na maioria dos casos e 39% do público brasileiro é a favor da legalização em todos ou na maioria dos casos, 18% dos brasileiros disse não saber ou não quis responder.

"Tanto que o discurso feminista que é a favor do aborto praticamente não aparece", frisou.

As duas ativistas ouvidas pela Lusa criticaram Lula da Silva porque, apesar de se ter mostrado, tardiamente, contra este projeto de lei, reforçou que era pessoalmente contra o aborto.

"Quando um Presidente dá a sua opinião pessoal já é um caminho equivocado", disse Flavia Estevan, enquanto que Denise Mascarenha criticou o facto de o "Governo acabar se rendendo a essas agendas nas negociações com o Congresso".

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