Crónica de bastidores. A Cerimónia nunca é uma seca

1 mes atrás 55

Se for verdade que festa molhada é festa abençoada, estes Jogos Olímpicos têm entrada direta no Guiness Book. Toda a Santa Cerimónia de Abertura foi um concurso aberto entre o caudal do Sena e as nuvens pouco passageiras.

Seguramente por ciúme de tanto protagonismo, o sistema de rega desta verde França decidiu, por Toutatis, cair-nos em cima da cabeça.

Eu e o Rodrigo Lobo, as nossas tralhas - camera, kit de iluminação, mala de baterias, sistema de diretos, mochilas, tripés, comida e bebida de sobrevivência - uns bons 30 ou 40 kg de matéria prima televisiva, percebemos logo qual era o nosso único transporte olímpico garantido para, em quatro horas, chegar à ponte Alexander III, o ponto de direto designado: os nossos pés.

Chegar lá. Bem... chegar lá é fintar multidões como se fossemos um Zicky Té com atrelados, convencer polícias de que a acreditação olímpica é um livre trânsito oficial. Poupo-vos partes rocambolescas por limitação de caracteres. Juro: rocambolescas. Entrámos a vinte minutos do tempo limite. Posições de direto ocupadíssimas.

O André, português e repórter de imagem ao serviço da TV do Catar, chegou-se meio metro para o lado para nos aconchegar. Montámos o "estúdio". Oferecemos a nossa luz para os diretos dele. Partilhámos a água, bilingue, que caía do céu até eles desistirem dos diretos demasiado húmidos.

O Catari, Deus o abençoe, foi comprar comida e bebida halal para todos antes de nos deixar por herança o dobro do espaço.

Não vos vou narrar a Cerimónia mais húmida da minha sextupla existência olimpica. O mundo testemunhou como a felicidade consegue, basta juntar-lhe muita água, unir atletas em barcos, público em bancadas e margens, jornalistas da Terra inteira, num sorriso de realização plena de orgulho por estar "ali".

A marcha atlética de regresso ao hotel foi igualmente regada, mais pesada (todo o material, corpos e roupa decidiram trazer água olímpica como recordação), mas cumprida em muito menos tempo e zigzag.

O meu telemóvel desmaiou a meio da noite. Demasiadas lágrimas de alegria na porta USB. Foi o do Rodrigo Lobo (Deus m'o conserve) que me deu escuta.

Agradeço ao hotel o acesso gratuito ao secador de cabelo, que o reanimou em 15 minutos de seca soprada, às duas da madrugada. Às 3h00, com o quarto armado em estendal da Aldeia da Roupa Branca, deito-me com estrondo na caminha fofa.

Só tive tempo para um suspiro. Esqueci-me de desligar a luz do quarto. Chamei-me um nome feio. Contratei uma grua emocional para regressar à posição "de pé". Desligo no interruptor. Ele não aceita. Regressa à posição ON. Repito.

Interruptor teimoso como eu. Não aceita. Não prende no off. Tento mais quatro vezes. Nem pensar. Não desliga. "Não!! Nem penses que vou dormir de luz acesa".

É então que o meu génio da lâmpada se ilumina e me segreda: "Os problemas são os professores das soluções". Se Deus te dá um pólo RTP pesado com a água que o Céu te deu, usa-o a teu favor, João Pedro".

Não o tinha sequer torcido. Tem a etiqueta? Tem. Enfio-a no pinxavelho do interruptor. Dou uma volta armada em nó.

Tlack! O estalido sonoriza a passagem a escuro.

"Segura? Sim, segura". Boa. Vamos dormir sobre este dilúvio olimpico.

Hoje, a meta do ciclismo é exactamente no mesmo ponto. Ponte. Alexandte III. E a água, por cima e por baixo, aussi.

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