Crónica de bastidores. Ciclismo, o meu nougat

1 mes atrás 83

O meu pai vivia e dormia todos os dias com a Rádio. E com o desporto nela. Nem sei como é que a minha mãe aguentava a companhia eterna do aparelho, qual sabonete-grafonola, mesmo que aquele auricular de cor pérola, em forma de champignon espanhol em lata, estivesse lá para simular a existência de silêncio ambiente.

O meu pai vivia e dormia todos os dias com a Rádio. E com o desporto nela. Nem sei como é que a minha mãe aguentava a companhia eterna do aparelho, qual sabonete-grafonola, mesmo que aquele auricular de cor pérola, em forma de champignon espanhol em lata, estivesse lá para simular a existência de silêncio ambiente. Apaixonado por desporto, ao fim de semana juntava-me a essa companhia fixa e lá ia eu radiante para jornadas integrais de desporto ao vivo. Hóquei, andebol, futebol. Às vezes juniores de manhã, seniores à tarde. Relato no ouvido, filho pela mão, "almofadas prá bola" para dois, três ou quatro, se o meu mano e até a minha mãe estivessem no plano. No estádio, "Queijadinhaaaas de Sintraaaa" para o lanche e - esse é que era o meu troféu desportivo predileto - um "nogá". "Olhó nogáááá!" Lembro-me daquela dureza desafiante, que te vai melando mãos e beiços enquanto os dentes não vencem o duelo com o amendoim agregado pela força do açúcar cozinhado. O aroma caramelizado, o estilhaço que abruptamente se desagrega com sabor, de repente, consumando a vitória com um troféu crocante, que por um lado abdica ante o poder da tua mordedura, por outro se te cola aos dentes e fica a derramar doce no palato.

Bem topado pelo meu pai, o "nogá" foi uma arma que ele usou em mim um dia, com sabedoria.

Desmanchou-me de desilusão.

- Hoje o jogo não é para miúdos.

Não me lembro de ter refilado mas conheço-me. Devo ter armado banzé, mas tenho a certeza de que não fui à bola.

Porque me lembro (tal deve ter sido a neura) do regresso do meu pai desse jogo proibido, quando ainda não tinham inventado os de alto risco.

Da mão dele saiu um "nogá"!

Comprou-me bem, na antecâmara assim silenciada de uma sessão de lamuria garantida.

- Foi o Joaquim Agostinho que te mandou!

Fiquei mesmo impressionado!

O Joaquim Agostinho!!! O próprio do Joaquim Agostinho! Para mim!

Sei de mim que era um puto refilão e um crédulo. O conceito de mentira, mesmo piedosa, era incolável ao meu pai. Pessoa de integridade e honra à prova de bala.
Para mim, o Joaquim Agostinho - jamais saberá- passou de ídolo a pré-Deus naquele dia. E o "nogá", se já era troféu de dias felizes, ganhou em mim aura de caviar e pedigree de trufas negras.

O "nogá" foi, sem eu perceber por muitos anos, a primeira cola da minha ligação ao ciclismo.

Este sábado, fui ao sopé da Torre Eiffel em trabalho, receber os nossos Nélson e Rui, no final da prova olímpica. Aqui, na mesma França em que o nosso ídolo Agostinho fez dos portugueses iguais, com vitórias e outros feitos até aí impróprios para "essa gente das bidonville".

Acabado o trabalho, subimos além do Trocadero, passando pela sala de imprensa.

Salão de trabalho amplo. Ao fundo, jerricans de água potável e outras simpatias: fruta, um tabuleiro com embalagens de snacks para disfarçar sede e fome aos jornalistas que têm que fechar páginas antes de ir viver outras histórias. Bebi dois copos de água, roí um pessego, mirei o rótulo dos snacks.

Engoli em seco. Molharam-se-me os olhos.

Ali por baixo das letras está... o meu primeiro "nogá" desde que o meu papá... nos deixou por cá há dois anos. O Rodrigo Lobo nem deve ter percebido bem o que balbuciei, atabalhoado. Caiu-me um calor abafado e doce sobre a alma. Agostinho! Papá! Ciclismo! França! Nougat!!

Fez tanto sentido. Rui Costa e Nélson Oliveira: acho que sei quem é que veio connosco ver a corrida a Paris!

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