O meu pai vivia e dormia todos os dias com a Rádio. E com o desporto nela. Nem sei como é que a minha mãe aguentava a companhia eterna do aparelho, qual sabonete-grafonola, mesmo que aquele auricular de cor pérola, em forma de champignon espanhol em lata, estivesse lá para simular a existência de silêncio ambiente.
Bem topado pelo meu pai, o "nogá" foi uma arma que ele usou em mim um dia, com sabedoria.
Desmanchou-me de desilusão.
- Hoje o jogo não é para miúdos.
Não me lembro de ter refilado mas conheço-me. Devo ter armado banzé, mas tenho a certeza de que não fui à bola.
Porque me lembro (tal deve ter sido a neura) do regresso do meu pai desse jogo proibido, quando ainda não tinham inventado os de alto risco.
Da mão dele saiu um "nogá"!
Comprou-me bem, na antecâmara assim silenciada de uma sessão de lamuria garantida.
- Foi o Joaquim Agostinho que te mandou!
Fiquei mesmo impressionado!
O Joaquim Agostinho!!! O próprio do Joaquim Agostinho! Para mim!
Sei de mim que era um puto refilão e um crédulo. O conceito de mentira, mesmo piedosa, era incolável ao meu pai. Pessoa de integridade e honra à prova de bala.
Para mim, o Joaquim Agostinho - jamais saberá- passou de ídolo a pré-Deus naquele dia. E o "nogá", se já era troféu de dias felizes, ganhou em mim aura de caviar e pedigree de trufas negras.
O "nogá" foi, sem eu perceber por muitos anos, a primeira cola da minha ligação ao ciclismo.
Este sábado, fui ao sopé da Torre Eiffel em trabalho, receber os nossos Nélson e Rui, no final da prova olímpica. Aqui, na mesma França em que o nosso ídolo Agostinho fez dos portugueses iguais, com vitórias e outros feitos até aí impróprios para "essa gente das bidonville".
Acabado o trabalho, subimos além do Trocadero, passando pela sala de imprensa.
Salão de trabalho amplo. Ao fundo, jerricans de água potável e outras simpatias: fruta, um tabuleiro com embalagens de snacks para disfarçar sede e fome aos jornalistas que têm que fechar páginas antes de ir viver outras histórias. Bebi dois copos de água, roí um pessego, mirei o rótulo dos snacks.
Engoli em seco. Molharam-se-me os olhos.
Ali por baixo das letras está... o meu primeiro "nogá" desde que o meu papá... nos deixou por cá há dois anos. O Rodrigo Lobo nem deve ter percebido bem o que balbuciei, atabalhoado. Caiu-me um calor abafado e doce sobre a alma. Agostinho! Papá! Ciclismo! França! Nougat!!
Fez tanto sentido. Rui Costa e Nélson Oliveira: acho que sei quem é que veio connosco ver a corrida a Paris!