Crónica de bastidores. Quatro Vês em Paris

2 meses atrás 78

Gonzalo Fuentes - Reuters

Na véspera, eram duas da manhã quando acabei de editar a peça de antevisão da prova de triatlo feminino. Tínhamos imagens exclusivas do grupo, que vivia numa casa própria nos "arredores" de Pequim, longe das distrações da Aldeia Olímpica. Não podíamos desprezar tal conteúdo!

Bem bastava o revés de ter perdido o meu querido David Vaz. Foi com ele, por proposta dele, que montei do zero na RTP o projeto de reconhecimento mediático do Triatlo, assente na inacreditável Vanessa Fernandes. O David tinha um cérebro tão brilhante como o "pulmão" da Vanessa.

Naquela campanha conseguimos captar uma soberba vitória dela em Madrid, peça imprescindível da Rosa Veloso e Michael Gore. E ali, imagens de arquivo sem preço que, há falta de orçamento para mais, nos permitiram "pintar" outros vários pares delas. E às de outras tvs. Dois anos depois, ainda via numa televisão privada as nossas imagens, "gravadas do ar" a suportar notícias sobre os sucessos dela. Serviço Público.

Mais: antes dos Jogos de 2008, aquela investida genial da Sandra Vindeirinho e do repórter de imagem Rui Rodrigues à Austrália, que rendeu a primeira grande reportagem sobre Triatlo em prime time da tv portuguesa, antecipando o melhor que estava para acontecer.

Em suma, a execução perfeita do "plano" que levaria a Pequim. Bem... quase. É que o David era muito mais que um irmão estratega. Era o meu comentador RTP de Triatlo - como não - e uns dias antes da prova olímpica, ligou-me meio embaraçado:
- João... temos um problema.
Calado, esperei pela bomba.
- Não vou poder comentar a prova.
Gelei. Tinhamos uma posição de comentador improvisada no espaço RTP em Pequim só para assegurar os comentários dele.
-Então, David??...
- Desculpa. A Federação não tem cá gente suficiente para conseguir dados de referência da prova, para ajudar a Vanessa. Vou ter que ir para o percurso ajudar.
Engoli em seco.
- Claro, David. Eu entendo.

Foi assim que o destino decidiu que, naquela madrugada, seria o Jorge Lopes a ocupar a primeira cadeira com micro do nosso bastidor.

Voltemos então àquelas duas da manhã. Ter ficado a editar a peça implicava que a noite de sono ia ser olimpicamente curta. Da redação em Pequim ao hotel perdíamos mais de uma hora de sono, outra para o regresso, mais umas duas à espera de autocarros...


Em suma: "decidimos" dormir na redação.

O Jorge Lopes reivindicou a prioridade sénior e escolheu primeiro a cama:
- Eu durmo em cima daquela secretária.
- Ok Jorge!

Eu "escolhi" o chão. Colchões demasiado ergonómicos até às seis.

Às seis e tal da matina, narrávamos ali a final do Triatlo. Narrámos! Grande Vanessa Fernandes! Obrigado pela alegria! Pela medalha histórica! Por ter valido tão a pena.

Quem dera à cafeína providenciar despertares assim!

Que dia aquele! Lá junto à Grande Muralha, imagens que a História guardou no nosso coração, na reportagem do Manuel Fernandes Silva. É que a "louca" da Vanessa, quando regressou à casa do Triatlo, fintou ela própria a segurança chinesa e teve a ousadia de levar com ela para o quarto, além da medalha... o Repórter de imagem Rui Rodrigues!! E passaram! A Vanessa acabou o dia a ser jornalista do seu próprio acontecimento!!! E ninguém foi preso!

2024. Nesta quarta-feira feira, fui o repórter RTP no Triatlo Olímpico. Caramba miúdos, que orgulho senti. E no meio da conversa, o Vasco Vilaça, grande e espontâneo, numa homenagem que respeita a memória, dedica aquela alegria dele à pioneira Vanessa. Acho que consegui disfarçar. Apeteceu-me abraçá-lo. Mas eu ali sou jornalista. Os adeptos não têm lugar na zona mista. É que o malvado do Vasco, sem imaginar, atirou certeiro ao meu coração. A Vanessa, que já pagou ao preço do ouro o reverso daquela medalha de prata, mereceu como pouca gente aquele abraço quente de Paris.

Confesso sem vergonha: já chorei três vezes a escrever esta crónica.

As palavras do Vasco fizeram-me viajar. E escrever esta crónica de viagem. E encheram-me de necessidade de também eu abraçar.

A Vanessa. O David. O Jorge. O Vasco.

Aquela foi a última narração de provas que fiz com o magnífico Jorge. Com o David, a despedida foi em Londres. O cancro, esse estupor, roubou-mos à vez.

Tenho mesmo de entregar os meus abraços sem adiamentos, mal dispa o pólo e a isenção RTP.

Por agora... quatro Vês: de Vitória, de Vasco Vilaça e de Vanessa.

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