Crónica do jogo Portugal 3 – Turquia 0

2 meses atrás 48

Martinez driblou as críticas à moda do velho Medeiros, facilitou na estrutura da equipa e, com os jogadores menos amarrados, levou Portugal a uma vitória fácil que garante desde já os oitavos-de-final. Perfeito como nos filmes.

DORTMUND – Já estava a tardar. Mas Saturno, o deus romano do tempo, que sussurrava todos os seus segredos ao grande Antímio de Azevedo no fim do telejornal, resolveu-se a dar à manivela do sol, afastando as nuvens e deixando mostrar um azul cerúleo no exato lugar onde deve estar num dia de Verão. Se em Leipzig, com os checos, tivemos de combater à chuva, pelas seis horas da tarde de hoje existiu a alegria de um dia limpo. Próprio para nos reconciliar-nos connosco e com o futebol de qualidade que a seleção nacional deve ao povo que nela acredita tão piamente. No entanto, a dúvida pairava. Aliás, de cada vez que entramos numa grande competição as dúvidas pairam. Nestes últimos quase quarenta anos a acompanhar (profissionalmente) a Equipa-de-Todos-Nós, como lhe chamou Ricardo Ornelas, um dos mestres de antanho, acho que só na Alemanha, em 2006 (e talvez em 2000, mas ainda assim…) é que um mar de dúvidas não adornou a caravela portuguesa. E neste momento em que escrevo é tanto assim que à beira de começar o jogo frente à Turquia não arrisco em deitar-me a adivinhar o onze inicial de Roberto Martinez. Em relação ao primeiro desafio mudou pouco de jogadores mas mudou um bocado estruturalmente, abandonando um central, devolvendo Nuno Mendes à lateral esquerda e pondo Palhinha num triângulo de meio-campo com Bruno Fernandes e Vitinha.

Ora dúvidas é que não as havia em relação ao adversário  que íamos enfrentar, muito diferente no seu estilo da obtusa Chéquia de Leipzig. Os turcos invadiram, como era de esperar, o Signal Iduna Park, ocupando por inteiro a famosa e terrível bancada sul, a pique sobre o relvado e começaram desde cedo a berrar e a assobiar como loucos que são pela sua equipa. Ora, tirando o incómodo que isso possa provocar aos tímpanos e a outros constituintes do aparelho auditivo, para gente experimentada como a de Portugal era um bocado para o lado em que dormíamos melhor. Também somos da massa da berraria, da farra e do fandango. Queremos é festa e abraços lá no seu compadre. Mas, vamos e venhamos, que também dava jeito estragar a festarola alheia algo que vem sendo hábito de cada vez que nos encontramos para jogos a sério. O primeiro jogo entre portugueses e turcos da minha geração vi-o em Nottingham, em 1996, na fase de grupos do Europeu de Inglaterra, vitória por 1-0 com golo de Fernando Couto. Puxa! Já lá vão uns anos bons. Recordo-me que no acolhedor estádio do Forest os turcos também apareceram para destruir ouvidos. Ou seja, é uma trabalheira danada fazê-los calar.

Pois então a coisa começou assim, como vos digo. Dos cerca de três milhões de turcos que vivem na Alemanha é certo que um milhão e meio estavam no estádio de Dortmund. Sobrava-nos um cantinho modesto como a casinha da Milú do Costa do Castelo. «Türkiye! Türkiye! Türkiye!» e o resto abafado como o meu lugar na bancada de imprensa de chapa para o sol poente. Mais de metade do relvado já estava à sombra. E em cima dele um começo morno para contrabalançar o fervor das bancadas. Aceitemos que quem tinha de meter mãos à obra era a Turquia. Afinal só com um ponto ficava em maus lençóis para o jogo com a Chéquia. Mas eis, que de repente, Leão foi à linha do lado esquerdo meter uma bola na área e esta foi parar direitinha ao pé também esquerdo de Bernardo Silva: 1-0. 21 minutos. Assim sim!, terão os adeptos nacionais esfregado as mãos. Hoje é capaz de ser dia de jogatana como há tanto tempo estamos à espera. Sete minutos depois, uma distração e o suicídio: um atraso estúpido de Akaydin para o guarda-redes que vinha ao seu encontro e, toma!, dois-a-zero. A coisa corre bem, vamos lá mas é não abusar da sorte e pôr tudo em pratos limpos que isto não é nenhum filme do Buster Keaton. Se Roberto Martinez desta vez não complicou, não haveriam de ser os jogadores a complicar por ele, ou não é? Tudo tão tranquilo que até uma pombinha veio lá do alto pousar na erva, passou o homenzinho dos gelados a perguntar «ice cream?», e parecia que estávamos a olhar para lírios no campo…

Martinez e o cavalo do Gary Cooper

Mete-se o intervalo e eu a matutar nas diferenças entre o jogo de Leipzig e este. Laterais mais presos à sua função lateral, Leão muito mais vivo na esquerda, Bernardo Silva desta vez mais alegre, surgindo da direita para o meio para aproveitar as costas de Cristiano Ronaldo, Vitinha mais seguro da sua posição e dos seus passes com a proteção de Palhinha. Depois, vejam lá do que me fui lembrar!, pensei na forma como Roberto Martinez tinha driblado as questões dos jornalistas sobre as invenções que preparou para os checos, e veio-me à memória essa figura ímpar do futebol português que era o António Medeiros. Quando se via acossado com questões que o incomodavam mandava a malta falar com o cavalo do Gary Cooper. Pois bem, o Gary Cooper teve um ror de cavalos. Afinal não foi apenas um dos mais prolixos atores de «westerns» como também participava de espetáculos equestres nos quais exibia os seus dotes de cavaleiro com cabriolas do arco da velha. Apesar de tudo houve um dos seus cavalos que, por ter entrado em tantos filmes, ficou tão famoso como qualquer ator secundário: o Frosty. Foi com ele que Cooper trabalhou durante quase dez anos e protagonizou cenas de tiro em barda contra os sioux, os apaches e outros que tais. Era aqui que eu queria chegar: o selecionador nacional mandou-nos a todos falar com o Frosty e, hoje em Dortmund, emendou a mão e precaveu-se. Para a segunda parte deu-se ao luxo de trocar os amarelados Palhinha e Leão metendo Ruben Neves e Pedro Neto. O resto haveria de resolver-se pela absoluta superioridade que Portugal demonstrara até aí. Com os turcos mais subidos, surgiriam certamente espaços para desenvolver contra ataques.  Meu dito, meu feito. Passe de Ruben Neves para Ronaldo que se isolou e, só com Bayinder pela frente, foi de uma generosidade escandalosa e ofereceu o 3-0 a Bruno Fernandes (55m). Limpinho. Os da bancada sul caladinhos como ratos e o cantinho lusitano do outro lado numa festa em flor.

Um laivo de  preguiça veio junto com os últimos fortes raios de sol da tarde alemã. Se tudo se conseguira sem pressas, não era agora – e para aborrecimento de Cristiano que não parou de esbracejar a pedir bolas na frente – o momento de espicaçar o bicho e pô-lo a trote. Ah, pois! Tal como o Frosty, também podíamos esquecer os índios da planície e dedicar-nos às cabriolas para entreter o povo. O menino turco, esse correu como se tivesse asas nos pés para ir ter com o capitão de Portugal e tirar uma «selfie». Algo que deixou felizes tantos compatriotas cabisbaixos que voltaram a fazer-se ouvir já sem exageros de decibéis. Quando um matulão quis imitar o menino turco já não teve graça. Mas outro borrego, e outro ainda, também quiseram a mesma brincadeira. Os «stewards» já eram quem mais corria em campo.  Martinez começara a fazer substituições convenientes e os últimos minutos foram de uma inexistência que só serviu para confirmar que tudo o que vira até aí fora perfeito como nos filmes.

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