Depois de cem anos de silêncio, vinho das três Marias ganha nova vida (com a ajuda dos irmãos Sorte)

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Dois jornalistas, um deles descendente das três Marias, e de um Mário, quiseram dar nova vida ao vinho produzido na quinta da família, que conta com 200 anos. Com a ajuda de um enólogo irrequieto e dos irmãos Sorte nasceu o Cem Anos de Silêncio, a partir de uma casta cada vez mais rara. E isto em terras onde Amadeo de Souza-Cardoso nasceu e imortalizou uma cozinha.

Há, pelo menos, 100 anos foram plantadas umas vinhas na Quinta da Gateira, em Mancelos, Amarante. Três irmãs e um irmão (Maria Cândida, Maria Beatriz, Maria Luísa e Mário Augusto) foram responsáveis pela produção e venda deste vinho durante muitos anos. Agora, estas vinhas ganharam nova vida pelas mãos de um dos seus descendentes.

Augusto Freitas de Sousa e a sua mulher Maria João Babo são jornalistas de profissão e decidiram criar um vinho a partir destas vinhas velhas. Deram-lhe o nome de Cem anos de silêncio.

“Estas vinhas nunca deram vinho decente. Estiveram 100 anos em silêncio e agora finalmente deram um vinho que considero bom”, diz ao JE Augusto Freitas de Sousa. “As vinhas foram plantadas há mais de 100 anos, apesar de estarem registadas desde 1931 no Instituto da Vinha e do Vinho. A casta Azal foi mal amada porque era muito ácida, ainda para mais feita com gás e para ser bebida no próprio ano, um disparate”.

“As minhas tias-avós tinham muitas terras e começaram por fazer vinho e vendiam a granel. Lembro-me de em pequenito de haver entre 100 a 200 pipas”, começa por recordar. “O meu pai ficou com aquela quinta, e vendia as uvas, a produção toda. O caseiro lá fazia uns vinhos, bebidos no ano, metiam cristais de açúcar para ficar com gás, gás carbónico, mas eu não gostava desses vinhos”.

“Nós começámos a pensar que estas uvas podiam dar um vinho bom. A casta é Azal, uma uva com muita acidez. Mas precisávamos de ajuda. Um amigo meu recomendou-me um professor dele: Jorge Sousa Pinto. Demo-nos muito bem com ele. É muito low profile, mas é o tipo mais louco. Faz 500 km por dia. Faz espumantes deles na Quinta de Santa Cristina, faz muito Alvarinho, incluindo na Quinta de Melgaço. É consultor em muitos sítios e ajuda pequenos produtores. Além do mais, as adegas dele ficam a 3 km da nossa quinta”, acrescenta.

Como curiosidade, não muito longe da Quinta da Gateira fica a casa onde nasceu e cresceu o pintor cubista português Amadeo de Souza-Cardoso, que ficou imortalizada na arte mundial, com o quadro “Cozinha da casa de Manhufe”. O próprio pai do pintor era exportador de vinho verde.

De regresso ao Cem anos de silêncio, em 2021, foi produzida uma versão experimental, o “número zero”, aludindo aos jornais lançados internamente antes de chegarem às bancas.

Um ano depois, é lançado o Cem anos de silêncio, depois de uma colheita de 2.300 quilos de uva, com 1.998 garrafas produzidas. “Fizemos o “número zero” para amigos e família. Todos gostaram muito. Mostrei a amigos meus que são jornalistas de vinhos e gostaram. Pensámos que se calhar isto tinha caminho para andar…”-

“O vinho está mais afinado agora, tem pouca intervenção. Ele nem sequer o desengaça, acha que fica mal”, aponta, referindo-se ao processo de separar o bago da uva do engaço, que costuma ser feito para evitar amargor. “Depois da  intervenção, o vinho vai para um sítio de que gosto cada vez mais: cubas de inox. A madeira dá muitos bons vinhos, mas mascara a identidade do vinho”, considera.

Esta casta existe na zona de “Amarante, um bocadinho em Basto e haverá mais algumas na sub-região do Sousa. Mas é típica de Amarante”.

“Há 200 anos a quinta já estava lá, até acho que é anterior. O avô das minhas tias-avós já tinha comprado as quintas há muito tempo. Elas nasceram noutra e depois foram para lá morar. Chegaram a ter mais, mas no meu tempo ainda havia nove quintas. Entretanto, foram-nas vendendo”, explica.

Os responsáveis pela viticultura, e caseiros, são dois irmãos: Zeca e Herculano Sorte. Um apelido que dá bom presságio para o vinho.

“Normalmente, as vinhas velhas tem uma quantidade indecifrável de castas. Esta tem uma particularidade, só tem azal: uma casta muito desconhecida, que tem vindo a desaparecer”, afirma, apontando que isto deve-se ao programa de apoio à reestruturação e reconversão das vinhas (VITIS).

“No programa Vitis, se arrancares uma vinha velha podes plantar três. Como os direitos de plantação são difíceis de conseguir, a maior parte dos produtores arrancaram muitas vinhas velhas substituindo-as por castas que vendiam melhor”, dando o exemplo do Arinto, ou do Alvarinho “a mais cara ao quilo em Portugal Continental”.

A produção foi de cerca de duas mil garrafas, e assim vai continuar. Na melhor das hipóteses, a vinha com cerca de dois hectares, numa quinta com quatro, pode atingir uma produção anual de 4 mil garrafas. “Tenho lá um Azal mais novo e até podia misturar mas não quero. Até posso misturar outras uvas, mas não quero”, afirmou. As regras em vigor permitem que um vinho monocasta possa incorporar até 15% de uvas de outras castas.

A região de Amarante já é considerada região de vinho verde pela Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes. “Antes, o Alvarinho só era DOC [Denominação de Origem Controlada] se fosse em Melgaço. Alargaram isso às regiões de vinhos verdes e a casta já está autorizada. Ambos gostamos da casta Alvarinho, é muito versátil, dá para fazer muita coisa”, mas o objetivo é manterem-se fiéis à Azal.

Em termos de vendas, os produtores têm recorrido ao canal Horeca e às garrafeiras. “Eu e a Maria João fazemos tudo, inclusive lacrar as garrafas à mão e a colocar nas caixas. Somos nós que distribuímos e vendemos”.

Neste momento, o vinho encontra-se à venda numa garrafeira e em três restaurantes em Lisboa, e numa garrafeira e num restaurante no Porto.

“Este é um mundo complicado e com bastante concorrência. Temos que nos dedicar com algum afinco, temos que tratar muito bem da vinha, sempre. Se não tiveres boas uvas, depois o vinho é igual aos outros. Não quero comprar uvas fora, nem vinho a granel, quero fazer vinho a partir destas vinhas”

Sobre o processo de vinificação, diz que não é “muito dado a vinhos sem nenhuma intervenção. Este tem alguma intervenção, mas não há grandes coisas”, afirma. Na produção, “tudo é natural, com adubos biológicos”. Para o futuro, o objetivo é “manter o perfil”. O vinho da colheita de 2023 há de ser “muito parecido”.

No seu livro, “As castas do vinho”, João Afonso descreve a Azal como uma casta que “em geral, produz brancos de carácter frio (fresco) e acídulo onde sobressaem aromas de mediana intensidade de frutos cítricos e de maçã verde e ácida”.

“Nos melhores exemplos, a acidez muito firme e bem casada dá azo a vinhos com muito carácter minhoto e de consumo muito agradável nos dias quentes de verão”, acrescenta João Afonso.  A casta conta com 758 hectares plantados, 1% da área de vinha nacional, sendo a 23ª casta mais utilizada.  No Minho, conta com mais de 7% entre a área de vinha, sendo a 5ª casta mais usada.

A região demarcada dos vinhos verdes é uma das maiores do mundo em termos de área (7.000 km2), ocupando toda a província minhota.

A sub-região de Amarante, no distrito do Porto, é descrita como estando “protegida da influência do Atlântico e a uma altitude média elevada, pelo que as amplitudes térmicas são superiores à média da Região e o Verão mais quente. Estas condições favorecem o desenvolvimento de algumas castas de maturação mais tardia: Azal e Avesso (brancas), Amaral e Espadeiro (tintas). O solo é granítico, tal como na maior parte da Região. Os vinhos brancos apresentam habitualmente aromas frutados e um título alcoométrico superior à média da Região”, segundo a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes (CVRVV). No entanto, é dos “tintos que vem a fama da sub-região de Amarante, uma vez que as condições edafo-climáticas referidas favorecem uma boa maturação das uvas, sobretudo da casta Vinhão, o que permite obter vinhos com cor carregada e muito viva, apreciada pelo consumidor regional”.

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