Dino Baggio em exclusivo: «O Romário agarrou o Baresi: ‘Este não estava morto?’»

2 meses atrás 78

[O Mundial de 1994 marcou uma geração e está a celebrar os 30 anos. O torneio norte-americano teve jogos inesquecíveis, maravilhosos underdogs e colecionou novos heróis para as cadernetas de cromos e as conversas de café. O zerozero junta-se às festividades e vai publicar até quarta-feira, dia 17 de julho e da final Brasil-Itália, cinco entrevistas a protagonistas do torneio. O primeiro convidado é Dino Baggio, figura maiúscula da Squadra Azzura de Arrigo Sacchi] 

Baggio. O apelido intimida, mesmo a esta distância. Simboliza o peso estilístico do grande futebol italiano nos anos 90. Se Roberto era Il Divino, Dino era o manipulador da casa das máquinas, o operário fino e cumpridor. Nada unia os Baggio, a não ser a intimidade nos campos de futebol. Um par de épocas nas Juventus, uma década na seleção de Itália e, lá está, o nome.

Baggio. 

Dino tem agora 52 anos. Aceita o convite do zerozero e viaja 45 minutos por uma carreira riquíssima, com direito a 60 jogos pela Nazionale, chamadas a um Europeu e a dois Mundiais. Em 1994 terá sido o italiano mais influente no monstro desenhado por Arrigo Sacchi. Roberto, o homónimo, vivia num patamar à parte. A criar e a decidir. 

Revelado no Torino, Dino Baggio teve passagens pelo Inter, pela Juventus, pelo melhor Parma de sempre e pela Lazio. Ganhou três vezes a Taça UEFA, uma vez a Taça de Itália e uma vez a Supertaça. Num palmarés de ostentação e bom gosto, faltou-lhe uma Serie A. Parece impossível. 

Dino Baggio, um dos grandes médios dos anos 90 e herói do Mundial-94, uma conversa sobre futebol vintage. 

zerozero – Ciao, Dino. 30 anos depois do Mundial de 1994, ainda tem alguma ligação ao mundo do futebol?

Dino Baggio – É um prazer falar para Portugal. Tenho muita vontade de ir aí de férias. Bem, na verdade estou completamente afastado. Há três anos deixei de colaborar com as camadas jovens do Vicenza e vivo agora uma vida tranquila. Tive sorte no futebol, fiz investimentos e os rendimentos são bons. Gosto de teatro, de cinema, a minha mulher trabalha no mundo da Cultura e isso também contribui para o meu afastamento.

zz – Vê pouco futebol, portanto?

DB - Vejo pouco futebol. Acompanho os meus filhos e nada mais. Já não entro num estádio há mais de cinco anos. Este futebol contemporâneo não me agrada nada, sinceramente.

zz – A Itália do Euro24 foi uma desilusão também.

DB – Desastrosa. Para fazer esta triste figura, era melhor nem ter ido ao Europeu. Mais valia terem ficado todos em casa. Foi uma presença desmotivante, de todos os pontos de vista. Vi seleções como a Turquia, a Áustria e a Suíça a serem superiores a nós, quando no papel têm muito menos cartel. Isto para a Itália é inaceitável. A Itália tem quatro Mundiais no museu, tem uma imagem a defender.

qFalamos sempre do penálti do Roberto [Baggio], mas o Baresi e o Massaro também falharam. O Roberto não merecia, porque fez um Mundial extraordinário. Senti que perdi ali a oportunidade de uma vida

Dino Baggio

zz – É um problema de falta de qualidade ou superior a isso?

DB – Não é um problema de jogadores ou treinadores. Nos últimos 20 anos não houve um programa sério para o setor de formação, como existe em Espanha, na Alemanha ou em Portugal. Leio nos jornais os nomes que saem desses países e fico impressionado. E em Itália? Não há espaço para os jovens italianos na Serie A e esse é outro dos problemas.

Quando eu jogava, havia limitações aos futebolistas de outros países e isso permitia aos italianos ter lugar nas maiores equipas do calcio. Vejam quantos italianos são hoje em dia titulares nos melhores emblemas de Itália. E não vejo forma de as coisas melhorarem nos próximos cinco anos.

zz – O que deve ser feito, no seu entender, pela federação italiana para devolver a competitividade à Squadra Azzurra?

DB – Voltar a investir nas associações regionais, melhorar as condições de trabalho nas camadas jovens e nos pequenos clubes. É de lá que vêm grande parte dos talentos. Primeiro, isso. Depois, o futebol profissional deve ser repensado. A legislação não é adequada aos interesses do futebol italiano. Defendo a obrigatoriedade de seis vagas para italianos por equipa.

Percebo que o mundo é diferente, mas essa medida seria determinante para colocar o futebolista italiano num patamar competitivo de excelência. Há poucos italianos a esse nível, essa é a triste realidade. Não vejo jogadores de grande nível internacional em Itália. Essa é a diferença para a minha Itália de 1994, por exemplo.

zz – É um bom momento para recordar essa equipa: Baresi, Maldini, Roberto Baggio, Zola, Donadoni…

DB – Dino Baggio (risos). Todos lutavam pelo título em Itália e todos jogavam a Liga dos Campeões. Estavam habituados a cenários maiúsculos, à pressão. Quantos jogadores de equipas pequenas da Serie A estão na seleção atual? Não sabem o que é a obrigação de vencer sempre. A estratégia de vender os jogadores demasiado jovens é míope e ineficaz. Os clubes têm de recuperar a capacidade de reter o talento italiano.

Dino Baggio celebra com Maldini o golo à Noruega @Getty /

«A vitória sobre a Noruega foi heróica»

zz – Talento não faltava à Itália vice-campeã mundial de 1994. Mas as coisas até começaram mal, Dino.

DB – Um escândalo, é verdade (risos). Perdemos contra a Rep. Irlanda na estreia (0-1). Foi um jogo estúpido, nenhum de nós pensava ser possível perder. Conseguimos remediar bem as coisas, mas esse jogo ficou-me atravessado na garganta. Não dormi nada nessa noite, lembro-me bem. Chegar ao fim do primeiro jogo e ter zero pontos nunca é bom sinal.

Acabámos por ter alguma sorte e qualificámo-nos no limite para a fase seguinte. Foi duro jogar esse Mundial, o clima era muito agressivo.

zz – Refere-se à meteorologia ou ao ambiente à volta da equipa?

DB – À meteorologia (risos). Jogámos sempre com enorme calor e uma humidade brutal. Às vezes ao início da tarde, de loucos. Não conseguíamos jogar o que sabíamos. O Arrigo Sacchi exigia um ritmo elevadíssimo e era impossível fazer o que ele pedia. Impossível mesmo.

Dino Baggio
5 títulos oficiais

zz – Fizeram dois jogos em Nova Jérsia e depois foram para Washington decidir tudo contra o México.

DB – E o segundo jogo contra a Noruega foi heróico (1-0). O Paglicuca [guarda-redes] foi expulso muito cedo [21 minutos] e tivemos de ir ao limite para ganhar esse jogo.

zz – Com um golo do Dino Baggio.

DB – Certo. Cruzamento do Signori na esquerda e um belo cabeceamento meu. Eu era muito forte nesses momentos de bola parada. Aconteceu-nos de tudo nesse jogo. O vermelho ao Pagliuca, a lesão do Baresi a abrir a segunda parte e ainda um problema com o Maldini, quando já não tínhamos substituições.

Jogámos para o resultado, que era a única coisa que contava. Éramos uma equipa forte, tínhamos sete jogadores que tinham ganhado dias antes a Liga dos Campeões pelo AC Milan. Isso faz toda a diferença, essa inteligência competitiva.

zz – 1994 é o ano em que o Dino Baggio troca a Juventus pelo Parma.

DB – Tive seis anos magníficos no Parma. Eu não queria sair da Juve, até pelo grande Mundial que tinha feito. A Juve era um clube maior, mas o Parma nessa fase tinha uma força financeira inigualável e a oferta era irrecusável. Tivemos equipas maravilhosas, adeptos incríveis e ganhámos muito troféus: duas vezes a Taça UEFA, uma vez a Taça de Itália e fomos segundos em 1997 na Serie A. Tudo me correu bem lá.

«O Sacchi foi e é o melhor treinador do mundo»

zz – Para os mais jovens, e que não o viram a jogar, como descreveria o médio Dino Baggio?

DB – O senhor viu-me a jogar?

zz – Muitas vezes.

DB – Como me descreveria?

zz – Elegante com bola, bom rematador, fortíssimo no jogo aéreo.

DB – Aí está. Um médio completo (risos). Jogava de pé direito, de pé esquerdo, com a cabeça, tinha uma compleição física perfeita, era inteligente a compreender os momentos do jogo e o mister Arrigo Sacchi viu todas essas características em mim. Raramente fui suplente na minha carreira porque os treinadores sabiam que tinham rendimento garantido comigo.

Quando eu estava bem, conseguia fazer a diferença. E era capaz de fazer golos, era um médio com esse feeling. Hoje é difícil encontrar um médio assim. Digo-o com humildade: hoje em dia, o meu passe valeria muitos milhões.

zz – Voltemos ao Mundial de 1994. A Nigéria foi uma das grandes surpresas e só perdeu com um golo do outro Baggio, o Roberto, no prolongamento.

DB – Sim, e um golo de penálti. Estivemos a perder até ao minuto 88 e já pensávamos na viagem para casa. Lembro-me que o Sunday Oliseh teve uma grande oportunidade para acabar com o jogo e que o Roberto Mussi nos salvou nesse momento. E eu tirei uma bola da Nigéria em cima da linha, noutro momento. Jogo muito difícil (2-1).

Esse foi o único jogo em que comecei no banco, porque levei uma pancada num tornozelo no primeiro jogo e andava a jogar com dores. ‘Não te vou usar desde o início, porque se o jogo for para prolongamento vou precisar de ti mais fresco’, disse-me o senhor Sacchi no hotel. E foi a melhor forma de gerir a minha condição física.

zz – O que nos pode dizer sobre o Arrigo Sacchi, um nome sagrado do futebol italiano?

DB – Foi o melhor treinador do mundo. Mudou a filosofia do futebol italiano, mudou a metodologia de treino, foi o número um e continua a ser o número um para mim. O que ele ensinou continua a ser imitado e replicado por vários treinadores em Itália. Revolucionou o calcio. Tem um filho no mundo do treino: o Carlo Ancelotti. É muito diferente na personalidade, mas não nas ideias. Aliás, para mim é o melhor treinador do mundo, a seguir ao mestre Sacchi.

«Jogámos em condições obscenas»

zz – Temos de falar do golaço do Dino à Espanha. Que sensações guarda desse jogo realizado em Foxborough?

DB – Exato, a cidade fica perto de Boston. Lembro-me sobretudo de duas coisas: do meu golo, que gentilmente lembrou, e da humidade. A humidade relativa na atmosfera era de 100 por cento. Como era possível jogar às duas da tarde debaixo de condições dessas? Primeiro queríamos respirar e depois, sim, jogar futebol. Condições obscenas.

zz – Nas imagens do seu golo, percebemos até que os festejos são contidos. Por culpa do cansaço?

DB – É verdade, um golaço daqueles merecia outra celebração (2-1). Festejei, festejámos, mas estávamos exaustos. E o meu golo foi na primeira parte ainda [minuto 25]. Foi duro ganhar a essa Espanha. Era uma Espanha com um estilo diferente, muito combativo, mas já com bons futebolistas. Acho que tivemos mais vontade do que eles.

Eu tive a sorte de fazer um dos mais belos golos da minha carreira, eles empataram ainda pelo Camiñero, num lance em que o Benarrivo foi batido, e depois o meu amigo Roberto Baggio decidiu tudo perto do fim. Com o golo dele, percebemos que íamos para as meias-finais. Era uma Espanha forte, raçuda. Mas nós aí já tínhamos vestido a pele de candidatos ao título.

zz – Aliás, esse crescimento da Itália é visível nas meias-finais contra a Bulgária.

DB – Na primeira parte, a Bulgária não passou do meio-campo. Estou a exagerar, mas quero com isto dizer que fizemos rapidamente dois golos pelo Roberto e mostrámos que não havia conversa: queríamos estar na final.

zz – O penálti do Stoichkov não assustou?

DB – Antes disso, o Albertini já tinha mandado um tiro ao poste e obrigado o Mihaylov a uma grande defesa. Nesse jogo fomos superiores, apesar dessa Bulgária ter jogadores fantásticos. Aquele defesa que já faleceu, infelizmente, era um monstro. Ivanov, isso mesmo. O Kostadinov era rapidíssimo, incomodava, e o Stoichkov tecnicamente era um génio.

Gostava muito também do Letchkov, o carequinha. Foi uma tarde quase perfeita no Giants Stadium (2-1).

zz – Quase?

DB – Ficámos muito abalados pelo Costacurta. Viu um amarelo e soube ali que não podia jogar a final. O sonho de qualquer bambino em Itália era esse: jogar uma final do Mundial e, de preferência, contra o Brasil. O Costacurta não merecia esse desgosto. No final estavam 21 homens a festejar e um a chorar.

Dino Baggio persegue Romário na final de 1994 @Getty /

«O Roberto [Baggio] não merecia aquele penálti»

zz – Falemos da grande final de Rose Bowl. Aquele Brasil estava ao alcance da Itália?

DB – É difícil afirmar isso quando temos uma equipa com Bebeto e Romário na frente de ataque. E o Ronaldo Fenómeno no banco (risos). Estávamos preparados, fortes, mas sabíamos que podia cair para um lado ou para o outro. O jogo foi equilibrado, apertado e tivemos um comportamento defensivo perfeito. Conhecíamos os movimentos do Romário e o Baresi adivinhou praticamente tudo. O Romário ficou doido com ele (risos).

zz – Disse-lhe alguma coisa?

DB – A meio do jogo, acho que num canto, o Romário foi ter com o Baresi, abraçou-o e disse-lhe assim: ‘Este não estava ‘morto’? Como é que ele está a fazer a melhor exibição do Mundial?’. Coisas à Romário. Ele e o Bebeto fizeram pouco nessa final. O Sacchi armou a nossa equipa bem, pediu sempre aos quatro defesas para estarem muito juntos e eles não tiveram hipóteses.

zz – Porque o Baresi lesionou-se no segundo jogo e só regressou na final.

DB – Precisamente. Mas o Franco sabia tudo sobre futebol, não precisava de correr muito para estar em todo o lado. Era um génio a ler o jogo e a posicionar-se.

zz – Esse Mundial teve jogos espetaculares, mas a final não foi um deles.

DB – As finais são muitas vezes assim, mais fechadas. Ali o importante é ganhar. A nossa estratégia foi inteligente. Quisemos abrandar o ritmo, adormecer o jogo, defender com concentração e aproveitar depois o talento do Roberto [Baggio] e a velocidade do Daniele [Massaro]. A verdade é que tivemos duas ocasiões claras para marcar. O Brasil teve uma, se bem me lembro. E depois fomos para a lotaria dos penáltis.

zz – O que sentiram quando a bola do Roberto passou por cima da barra?

DB – Eu não fui um dos marcadores dos penáltis, porque fui substituído no prolongamento. Estava esgotado, esgotado. Corri muito sem bola e estava uma temperatura, dio mio! Falamos sempre do penálti do Roberto, mas o Baresi e o Massaro também falharam. O Roberto não merecia, porque fez um Mundial extraordinário.

Senti que perdi ali a oportunidade de uma vida. Estes 30 anos passaram a correr. E agora parece-me impossível imaginar a Itália na final de um Mundial. Aliás, acredito que a Itália terá dificuldades em qualificar-se para o Campeonato do Mundo de 2026.

«Não me devem poder ver à frente em Portugal»

zz – A prova voltará a ser realizada parcialmente nos EUA. Em 1994, viveram boas aventuras por lá?

DB – Claro, claro. A comunidade italiana em Nova Iorque é enorme e uma vez, num dia de folga, fomos passar umas horas a Little Italy, uma zona em Manhattan. Aquilo estava cheio de italianos, claro, e não foi fácil voltar ao hotel (risos).

On this day 28 years ago Italy beat Portugal 1-3 at the Estadio das Antas (Porto) in a 1994 world cup qualifier.

Roberto & Dino Baggio scored the first and last goals, both goals were assisted by Paolo Maldini.

This was Maldini's first competitive match as captain for Italy. pic.twitter.com/HbTuhIlWSw

— Hannah (@JuventinaHannah) February 24, 2021

zz – Não podemos acabar sem falar dos golos do Dino a Portugal.

DB – Já sabia que me iam perguntar sobre isso (risos).

zz – Um no Porto e outro em Milão. Portugal não foi ao Mundial de 1994 por culpa do Dino Baggio?

DB – Não, não, nada disso. O golo no Estádio das Antas foi o meu primeiro pela Nazionale e por isso nunca o esquecerei. Ainda por cima foi um golaço, um pontapé de fora da área. Itália fez uma grande exibição, marcámos logo no início [Roberto Baggio] e Portugal marcou um golo pelo Fernando Couto com a mão (risos). Portugal já tinha uma boa equipa, excelentes jogadores, o Futre era um perigo.

zz – 1-3 no Porto e 1-0 em Milão.

DB – Aí tive mais sorte. Portugal foi superior em alguns momentos, mas a nossa segunda parte foi excelente, crescemos no jogo. Só precisávamos do empate e jogámos com isso. Não sei se o meu golo foi em fora-de-jogo ou não, sinceramente. Lembro-me de ver o Roberto Baggio a rematar, o Jorge Costa fez o corte e a bola sobrou para mim.

Só tive de encostar. Portugal merecia ter ido ao Mundial de 1994. Sempre fui feliz aí. Também marquei pela Juventus ao Benfica. Não me devem poder ver à frente em Portugal (risos).

zz – Última pergunta: está feliz por não lhe termos perguntado se o Roberto Baggio é seu familiar?

DB – Ah, ah, ah, ah. Essa foi a pergunta que mais vezes me fizeram nos anos 90, quando não havia internet e todos pensavam que éramos irmãos. O Roberto é um amigo do coração, para sempre, mas não somos familiares. Eu sou de uma pequena terra perto de Pádova e o Roberto é de Vicenza.

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