Do «foothand» à sala sensorial: o «Jogo Mais Inclusivo» da história tem mãos lusas

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O encontro entre Atlético de Madrid e Lille, agendado para a noite desta quarta-feira, a propósito da terceira jornada da Liga dos Campeões, poderá estabelecer um novo recorde quanto à inclusão de adeptos com algum grau de incapacidade.

Em fevereiro de 2023, em jogo da La Liga, Betis e Valladolid reuniram 1740 adeptos portadores de deficiência motora, cognitiva ou intelectual.

Ora, na origem deste recorde está José Soares, um dos impulsionadores da Integrated Dreams – na tradução literal «Sonhos Integrados» – ONG fundada em 2017. Foi na Andaluzia que este português encontrou a oportunidade de organizar o primeiro «Jogo Mais Inclusivo».

Uma vez mais a par do Football World Summit – congresso anual sobre a indústria futebolística – José Soares desvenda, ao Maisfutebol, os planos para a segunda edição deste projeto, desta feita em Madrid, rumo a um «espetáculo definitivamente inclusivo».

Maisfutebol: Como definiria «pessoas portadoras de deficiência»?

José Soares: Neste contexto, o termo é, geralmente, associado a pessoas com mobilidade reduzida. É interessante notar, ainda assim, que este grupo representa apenas sete por cento de um total de 1.8 mil milhões de pessoas. Acontece que a maioria das deficiências não são visíveis, como o autismo, a surdez ou o daltonismo.

As pessoas com deficiência representam, segundo a Organização Mundial da Saúde, 16 por cento da população mundial. Em todo o caso, o futebol, dito desporto rei e global, continua por envolver, de forma efetiva, estas pessoas. Deveria ser um espetáculo para todos.

MF: Quais as iniciativas preparadas? Alguma novidade?

JS: Elevámos a fasquia e destacaria um grande feito. Pela primeira vez, o jogo de uma equipa espanhola nas competições europeias contará com narração autodescritiva. Já ouvi argumentos de que o relato radiofónico seria suficiente. Enganam-se, porque é realizado para pessoas com realidade visual e auditiva.

Esta dinâmica é já um hábito na Premier League e na Bundesliga. E a UEFA já o fez em finais das principais competições. Curiosamente, esta iniciativa aconteceu no Metropolitano [estádio do Atlético de Madrid], na final da Liga dos Campeões de 2019 [Tottenham 0-2 Liverpool].

Sala sensorial, um porto seguro

MF: A principal bandeira é a sala sensorial.

JS: Exato, para pessoas com neurodiversidade [termo que remete para as diferentes formas de funcionamento do cérebro, fazendo variar as diversas funções cognitivas].

Por vezes, o contexto e a confusão perturbam estas pessoas. Por isso, poderão recolher a este lugar, instalado num camarote cedido pelo Atlético.

MF: Como é esta sala?

JS: Fechada, com perspetiva para o relvado através de um vidro, e por norma com iluminação reduzida, pormenor crucial para o bem-estar das pessoas com neurodiversidade.

Haverá também experiências táteis. Uma alcatifa, piso mole, jogos, bolas de stress e camisolas dos clubes. Ou seja, queremos organizar um contexto tranquilo. Em todo o caso, é importante oferecer a perspetiva para o relvado e para o espetáculo.

Não é necessário investir milhões de euros. O Sporting já promoveu iniciativas neste âmbito.

Seria possível eu lembrar a origem deste conceito?

MF: Por favor!

JS: De forma sucinta, os Shippey são uma família inglesa apaixonada pelo Sunderland. O casal tem três filhos com neurodiversidade e, certo dia, decidiram ir a um jogo.

Mas, aquela noite revelou-se um pesadelo, porque as crianças entraram em pânico no estádio. [Os pais] Descreveram a experiência como terrível. Então, pensaram de que forma poderiam partilhar com os filhos a paixão pelo futebol e pelo Sunderland. E, assim, projetaram as salas sensoriais.

Outro dedo português na equação

MF: E há mais iniciativas!

JS: O hino do Atlético de Madrid será interpretado em linguagem gestual e transmitido nos ecrãs do Metropolitano. Antes e durante o jogo, os intérpretes anunciarão os onzes, substituições e demais momentos.

Importa realçar que os árbitros serão acompanhados por três crianças com deficiência aquando da entrada no relvado.

Por fim, quanto a iniciativas no interior do estádio, continuamos a colaborar com o ColorADD [sistema de códigos destinado às pessoas daltónicas e concebido pelo português Miguel Neiva]. Desta vez, vamos sensibilizar os adeptos através de óculos que transformarão a perspetiva visual.

MF: Em fevereiro de 2023, no Betis-Valladolid, apresentaram coletes com os códigos ColorADD. Além disso, uma edição especial dos equipamentos do Betis foram impressos em Braille. Desta vez não acontecerá?

JS: Há limites impostos pela UEFA, uma vez que é um jogo da Champions.

William Carvalho no Betis-Valladolid, da La Liga, em fevereiro de 2023

Novas ramificações do futebol em destaque

MF: O que há a saber quanto à «fanzone»?

JS: Haverá demonstrações de futebol para cegos, com a seleção de Espanha, e será apresentada o «Foothand», a nova vertente do futebol, praticada em cadeira de rodas.

Em simultâneo, a La Liga divulgará o campeonato para atletas com deficiência intelectual. Por fim, o ColorADD e a AcessibAll promoverão formações.

MF: Por que motivo escolheram o Atlético Madrid para a segunda edição do «Jogo Mais Inclusivo»?

JS: Contam com inúmeras iniciativas no âmbito da fundação. Foram o primeiro clube com um núcleo fundado para adeptos com deficiência. No momento da nossa proposta, o Atlético aceitou de imediato. Assim, todos aproveitaremos para preparar o Mundial 2030.

O objetivo é deixar a semente para projetos autónomos. Sinto uma alegria enorme ao ver que o Betis, por si, organizou uma iniciativa semelhante, depois do sucesso em fevereiro de 2023. Um dia, mais clubes também o farão, até fora de Espanha.

MF: O bilhete para estes adeptos será gratuito?

JS: Ainda que alguns bilhetes tenham sido oferecidos [a escolas e associações], alcançámos acordo para um preço mais inclusivo. Ou seja, através de um desconto de 50 por cento, os bilhetes para estes adeptos terão o preço mínimo de 25 euros.

MF: Recuando até 2017, como começou a Integrated Dreams?

JS: Surgiu da perceção de que a deficiência no desporto é um tema remetido para os Jogos Paralímpicos. Esta vontade ganhou forma quando, depois de estudar Direito em Lisboa, frequentei o mestrado em Gestão de Desporto na Suíça.

Fundei esta ONG em 2017 e, desde 2018, conto com o importante contributo da Joana Cal. Sabia que não mudaríamos o Mundo, mas deixaremos um contributo interessante.

MF: Qual o próximo passo?

JS: Estamos em cooperação com a FIFA, tendo em vista o Mundial de Clubes 2025 e o Mundial 2026. Além disso, vemos o despontar de alguns participantes na Integrated Dreams. Por exemplo, o Nate Williams, de Inglaterra, desenvolve uma campanha que pretende transformar as zonas de imprensa dos estádios, tornando-as acessíveis a pessoas com deficiência.

Já desenvolveu um guia com os responsáveis de vários campeonatos do futebol inglês, algo inédito na modalidade.

Joana Cal e José Soares, da Integrated Dreams
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