Dos insetos ao foie gras de laboratório. "Desafios que temos pela frente vão obrigar a alterar produção de alimentos e o que pomos na mesa"

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Entrevista a Carlos Neves

23 out, 2024 - 23:17 • Sandra Afonso

Cientista-chefe da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA, na sigla inglesa) alerta que as alterações climáticas estão a aumentar as ameaças alimentares e é preciso "mais ciência".

As ameaças alimentares estão a aumentar com as alterações climáticas. Em entrevista à Renascença, o cientista-chefe da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar ((EFSA, na sigla inglesa)) recomenda mais prevenção e vigilância.

Carlos Gonçalo das Neves considera que "os desafios que temos pela frente vão obrigar a alterações de como produzimos os alimentos e naquilo que pomos na mesa".

Avança ainda que há novos produtos a chegarem ao prato dos consumidores. Apesar da maioria dos pedidos de aprovação ainda serem rejeitados, alguns já receberam luz verde.

O cientista-chefe da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar comenta ainda a notícia divulgada esta semana, que o atraso em proibir químicos perigosos teria provocado cancro e infertilidade. Segundo Carlos Gonçalo das Neves, este é um alerta da Provedoria de Justiça Europeia para a necessidade de agilizar as decisões.

Hoje encontramos à venda muitos produtos alimentares como insetos, uma novidade no Ocidente, ou mesmo produtos novos, como substitutos da carne. Nota uma grande mudança na alimentação disponível ao consumidor, nas últimas décadas?

A comida e a alimentação é como um comboio que nunca para, está sempre em movimento. A inovação faz parte da culinária, é normal que a curiosidade e novas possibilidades abram portas para novos alimentos. Temos assistido ao longo dos anos a uma alteração dos padrões de consumo, especialmente à medida que, por exemplo, certos alimentos de outras regiões começaram a estar disponíveis onde habitualmente não existiam.

Notamos agora, sem dúvida, a pouco e pouco, a criação de novos produtos. Esses exemplos que indicou, dos insetos, ou outros que nós designamos de novos produtos alimentares, começam a aparecer, talvez mais desenvolvidos e mais presentes já em outros mercados, nomeadamente na Ásia. Mas começam também a chegar ao continente europeu e a todos os países da União Europeia.

E muitos destes alimentos passam pelo laboratório? Esta produção em laboratórios é o futuro da alimentação?

Não diria que são já muitos. Especialmente aqui, na União Europeia, o número de novos tipos de alimentos produzidos em laboratório ainda são poucos. Já existem alguns, mas são poucos.

Não chegam ao mercado sem a avaliação da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar?

Todos os produtos alimentares disponíveis na União Europeia passam por uma rigorosa análise científica sobre a segurança destes produtos. Aliás, essa é a função da Agência, aconselhar aqueles que têm de fazer as decisões políticas e legais, se os produtos são seguros ou não. Sendo seguros, estão disponíveis. Essa decisão é feita por outros que não nós.

Aqueles que estão a ser desenvolvidos no laboratório poderão, eventualmente, ganhar alguma tração com o passar dos anos. Nós falamos muitas vezes das alterações climáticas, da sustentabilidade, da importância de produzir o nosso ecossistema. É preciso ser criativo, pensar em novas soluções e estas podem ser uma de várias soluções para resolver alguns destes problemas que temos neste momento.

"Já temos a primeira candidatura para um produto produzido em laboratório que seria similar ao foie gras"

Chegam à Autoridade Europeia muitos pedidos de autorização de novos produtos para serem lançados no mercado? É também um indicador da investigação nesta área.

A função da autoridade é olhar para a literatura e para a documentação disponibilizada pelo agente económico que quer colocar um novo produto no mercado. Nós aqui não temos laboratórios, não fazemos testagem de laboratório, como alguns poderiam pensar, analisamos essa informação científica para tomar uma decisão.

Há, realmente, um crescimento exponencial nos últimos quatro, cinco anos, ainda não é grande, mas todos os anos aparecem 20, 30, 40, cada vez mais aplicações, candidaturas. Até agora têm sido quase todas em produtos ligados a plantas e algas, mas posso dizer que já temos o primeiro produto, a primeira candidatura para um produto produzido em laboratório que seria similar ao foie gras. Ou seja, não é carne, mas é produzido através de células animais, em laboratório. Nas plantas, em algas e fungos existem já algumas candidaturas e já há aprovações.

Em geral, a maioria das candidaturas são aprovadas? Qual é a tendência?

A aprovação nunca compete à Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar. Aliás, a candidatura é feita à União Europeia, há um processo administrativo e, uma vez passado esse primeiro trâmite, passa para a avaliação de risco, portanto, a análise científica. Peritos por toda a Europa analisam a informação e a conclusão é remetida a Bruxelas.

Já existem, por exemplo, quatro insetos aprovados na versão para farinha e começam a aparecer outros, mas a análise é feita produto a produto. É extremamente rigorosa. Alguns foram recusados, segundo o nosso parecer não devem neste momento ser aprovados porque não há informação, não é suficiente, ou é contraditória. A Comissão Europeia legisla como deseja.

Atraso em proibir químicos perigosos levou a cancros e infertilidade

Normalmente, os pareceres da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar são seguidos pelo executivo comunitário?

Normalmente são respeitados e é um sinal importante de um sistema que criámos dentro da União Europeia, que já tem mais de 20 anos, em que existe uma análise científica que é independente, é transparente, não é afetada por política, nem por lobby, e que depois deveria, tanto quanto possível, informar as decisões políticas.

Às vezes, pode haver algumas diferenças, algumas alterações, mas nós respeitamos que existem outras considerações que é preciso tomar em conta, às vezes acontece com muitos dos nossos pareceres. Não são aplicados a 100%, mas serão aplicados gradualmente, ou porções. É normal.

Ainda sobre a alimentação. Portugal retirou a rotulagem nos alimentos com informação nutricional ao consumidor, ao que sei a Comissão Europeia procura um método mais eficaz de rotular em todos os Estados-membros. Considera importante esta informação? Como pode ser garantida?

A rotulagem é uma competência exclusiva da Comissão Europeia e dos Estados-membros. Mas temos, por exemplo, a função de explicar aos consumidores, com uma linguagem mais acessível do que a que enviamos para Bruxelas, a nossa recomendação.

Pode haver, por exemplo, aditivos ou componentes num produto, que não podem ser consumidos mais do que tantos gramas por dia, ao longo da vida. Explicar às pessoas o que é que isso significa, quais são os riscos, quais são as contrapartidas, é informação essencial.

Da alimentação passamos para a agricultura. Já abordou aqui, de certa forma, a agricultura celular. Até que ponto é que pode ser uma alternativa à produção animal?

Há bocado falávamos de insetos, falávamos de células feitas em laboratório, existem muitas outras novas técnicas, novas possibilidades, novas ferramentas que temos à nossa disposição. Temos a possibilidade de utilizar novas técnicas genéticas para alterar o genoma, garantir colheitas mais resistentes a pragas, também os famosos GMOs [organismos geneticamente modificados], sempre muito discutidos. Temos ainda novas práticas, agora ligadas à inteligência artificial, à capacidade de novos sensores. São novas possibilidades de fazer o mesmo mas de outra forma. Também isto é evolução, é inovação.

Com menos pesticidas, por exemplo?

Por exemplo, é uma outra opção. Sabemos que os pesticidas têm impacto sobre o ambiente, existem outras soluções, agentes que fazem esta proteção das plantas com menor risco, existem outras variantes, biocidas, existe a possibilidade de certas colheitas serem resistentes a certas bactérias, a certos vírus e já não era preciso sequer utilizar pesticidas. Existem muitas soluções sobre a mesa.

O futuro da alimentação está no laboratório?

Até resistentes às alterações climáticas.

Exatamente, mais resistentes a alterações climáticas, a ondas de calor, à seca. Todas estas inovações tecnológicas começam a aparecer, a um ritmo cada vez mais rápido. A minha principal preocupação, e é o dever da autoridade, é garantir que aquelas que possam ou não ser aplicadas, são seguras.

A nossa função é dizer: esta técnica, este método, esta ferramenta é segura, na função em que se quer utilizar. Se querem aprovar ou não, cabe aos políticos.

Ao nível das culturas geneticamente modificadas, a única que tem aprovação para consumo no espaço comunitário é o milho. Certo?

Existem, se não estou em erro, duas variações de milho, exatamente. São realmente as únicas opções no mercado da União Europeia aprovadas.

Já disse que está a aumentar a investigação e soluções alternativas para a alimentação. Em Portugal, uma universidade prepara uma variedade de arroz resistente às alterações climáticas, por exemplo. Qual é a posição da autoridade europeia face a esta tendência, apoia a introdução destes novos produtos no mercado?

A Autoridade não tem de ter e não tem opinião, quando lhe for requisitado avalia se a alteração é segura ou não.

Está neste momento um pacote legislativo a ser discutido na Comissão Europeia, no Parlamento Europeu, sobre as chamadas novas técnicas genéticas. Uma lei que, uma vez aprovada, se for aprovada, isso anda num pingue-pongue em Bruxelas, mas se fosse aprovada permitiria que produtos feitos com algumas alterações genéticas, mais conservadoras, progredissem mais facilmente na avaliação do risco.

"Existe uma análise científica que é independente, é transparente, não é afetada por política, nem por lobby"

A Autoridade Alimentar tem algum parecer sobre novos produtos agrícolas à espera de uma decisão da Comissão Europeia?

Temos alguns milhares de candidaturas que chegam a toda a hora. Houve uma renovação do GMO há pouco tempo, uma reapreciação feita pela Comissão Europeia.

No entanto, a nova lei, que poderia realmente flexibilizar, facilitar a introdução no mercado de algumas dessas alterações, continua à espera de ser decidida em Bruxelas. Até lá, avaliaremos de acordo com a legislação em vigor.

Quando prevê que haja uma decisão sobre essa nova lei?

Tivemos eleições, estamos agora a preparar uma nova Comissão, tudo atrasou. Presumo que ao longo do ano de 2025 o tema volte à mesa. Acaba por ser uma decisão dos Estados-membros.

Com a crise ambiental, é inevitável a transformações da agricultura, com consequências na alimentação?

É o imparável caminho da inovação. As alterações climáticas e os desafios que temos à nossa frente não são uma fantasia e importa ser criativo e responsável em novas soluções. Há que experimentá-las, há que tentá-las, é preciso fazer isto de forma inclusiva.

É uma discussão que temos de ter com os cientistas, com os agentes políticos e com os agentes económicos, que precisam de financiar estas soluções, com os agricultores, que acabam por ser o motor, e com os consumidores, que no final de contas têm a última palavra.

Os desafios que temos pela frente vão obrigar a alterações de como produzimos os alimentos, de como consumimos e das escolhas que fazemos naquilo que pomos à mesa e naquilo que pomos na boca.

Na saúde, aumenta na Europa a preocupação com a obesidade. É visível nos alimentos que chegam para avaliações, em questões como os níveis de açúcar, por exemplo?

É um ótimo exemplo. A Autoridade Europeia já alertou para informação científica, às vezes um pouco desconectada, às vezes as relações causa-efeito não são tão fortes como se pensa, mas onde mostra que consumos de açúcares como o que acompanha o café estão ligados a alguns problemas de saúde - cardiovascular, obesidade.

Justifica-se em determinados produtos alertas sobre os efeitos nocivos do açúcar na saúde, como vemos no tabaco, por exemplo?

É uma decisão que se calhar compete a cada Estados-membro e à respectiva realidade. Pode não ser a forma mais correta, é preciso é que a informação chegue aos consumidores, que seja recomendada a redução máxima de consumo de açúcares livres nas dietas, porque não se encontra, cientificamente, nenhum benefício para a saúde no consumo deste tipo de açúcares.

As ameaças alimentares são frequentes?

Mesmo na União Europeia, onde temos provavelmente o mais avançado sistema de segurança alimentar do planeta, existem sempre situações onde bactérias aparecem na comida. Os famosos surtos acontecem todos os anos, e compete à autoridade reunir toda a informação dos Estados-membros e lançar um relatório anual onde mostramos quais foram as bactérias que apareceram, onde é que houve surtos, quem é que ficou doente, quem é que morreu. Aparece e é normal que apareça. O importante são as medidas de prevenção e vigilância.

"Segurança alimentar. "Alterações climáticas podem levar a que certas coisas aconteçam mais""

Essas medidas devem ser reforçadas?

Alterações climáticas podem levar a que certas coisas aconteçam mais. Por exemplo, certas bactérias na água, os famosos alga blooms, quando algas crescem massivamente e produzem toxinas, a entrada de novos mosquitos com novas doenças que podem afetar os nossos animais ou as pessoas. Como isto está a acontecer em tempo real e em alguns destes exemplos a acontecer de forma mais habitual, é importante manter a prevenção e ter uma vigilância epidemiológica mais robusta em todos os países da União Europeia. Não serve a Portugal fazer um trabalho magnífico se os nossos irmãos espanhóis não fizerem o mesmo, não é?

Esta semana é notícia uma investigação da Provedoria de Justiça Europeia que acusa o executivo comunitário de demorar demasiado tempo a proibir determinados químicos perigosos, que podem ter provocado cancro e infertilidade. Este caso passou pela Autoridade Europeia para a segurança alimentar?

Não... Aquilo que eu tive a hipótese já de ver é um alerta porque alguns destes processos de regulação demoram imenso tempo. A verdade é que muitas vezes, infelizmente, demoram imenso tempo porque, por exemplo, se está em causa um pesticida, é preciso que o agente económico apresente a candidatura. Depois, tem de ser avaliada pelos Estados-membros, pode demorar um, dois anos, depende da capacidade do país. Às vezes, o agente económico não dá toda a informação necessária, é preciso pedir mais.

Só depois deste trabalho é que chega à Autoridade Europeia, que faz uma avaliação de todo este processo, se a informação está correta, é científica e se está completa.

Acho que todos estão motivados para que isto não demore tanto tempo, é uma necessidade. O que não podemos é tomar decisões mais rápidas sem ter a certeza de que o que estamos a dizer é seguro ou não, porque poderia levar a problemas maiores do que aquilo que me acaba de dizer.

​Estão em frigideiras, roupas impermeáveis e até na comida ou água. Como podemos evitar os “químicos eternos”?

Fica também aqui a dúvida se a saúde pública neste momento está em causa? A notícia diz que há milhares de toneladas por ano de uma grande variedade de produtos que continuam a ser uma ameaça descontrolada para a saúde. Como é que isto se resolve?

É preciso não generalizar o termo produtos. Por exemplo, quando estamos a falar dos pesticidas, os produtos em circulação neste momento foram alvo de uma avaliação científica para estarem no mercado, foram aprovados em termos de segurança. Segurança para aquilo que se quer utilizar. Quando usamos pesticidas que estão aprovados no mercado europeu, eles foram considerados seguros.

É preciso também explicar a quem nos ouve, aos consumidores, que a ciência está sempre em desenvolvimento e pode acontecer, e acontece às vezes, que algo que há 10 anos, 15 anos foi avaliado como seguro, à luz de nova informação científica, novos estudos, novo conhecimento, já não é seguro. Isso é absolutamente normal. O que seria importante é que, tão depressa quanto exista um corpo suficiente de informação que nos alerte para as coisas mudaram, nós conseguíssemos rapidamente fazer essa alteração.

Era preciso agilizar mais os procedimentos na agência europeia?

O sonho europeu era de que a EFSA fizesse sempre isto com todos os Estados-membros, não em vez dos Estados-membros, mas com os Estados-membros.

Apesar de termos aqui quase 600 profissionais 100% dedicados à segurança alimentar, muitas destas opiniões científicas que damos são feitas por peritos independentes espalhados por toda a Europa. Para ser mais rápido, preciso que haja peritos espalhados por toda a Europa que queiram trabalhar connosco, é preciso que as universidades e organismos internacionais os deixem trabalhar connosco.

Agilizar também passa por pôr ao serviço novas ferramentas, como a inteligência artificial. Às vezes, para tomar uma decisão sobre um pesticida, os nossos peritos têm de ler mais de 15 a 20 mil artigos científicos. Não os lêem, fazem uma seleção. Alguns destes processos, para serem agilizados, também seria necessário alguma alteração legislativa e na forma como regulamos.

Notei que não apontou a necessidade de fundos, o que é praticamente inédito.

Quando digo que é preciso que deixem os técnicos e peritos trabalharem connosco, é provável que sejam as universidades que reclamem mais fundos para libertar esses profissionais.

Nós precisamos de mais ciência. Muitos destes temas, como este último caso, quanto mais informação tivermos, rigorosa e científica, melhor serviço prestamos ao consumidor. Esse serviço é prestado pelas universidades, politécnicos e indústria.

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