E depois de Raissi? "Nem o Presidente mais reformista seria capaz de mudar a abordagem do Irão em relação à Faixa de Gaza e ao Hezbollah”

4 meses atrás 85

Até este domingo, Ebrahim Raisi era a única certeza no futuro a curto prazo da República Islâmica do Irão. “E, agora, o principal jogador está morto”. O desaparecimento inesperado do Presidente iraniano, num acidente de helicóptero no nordeste do país, coloca em xeque a estabilidade política de um regime que, além de ter de resolver a continuidade da sua complexa liderança, tem a braços um forte sentimento de contestação, dentro e fora de portas.

Com 63 anos, eleito presidente em 2021, Raisi era o presente e o futuro do Irão. Apesar do escalar das tensões diplomáticas com Israel e da enorme onda de protestos do ano passado por causa da morte da jovem curda Mahsa Amini - que se converteu num símbolo internacional e inspirou um grito generalizado de revolta contra a repressão política, a corrupção sistémica e as políticas ultraconservadoras do regime face às mulheres -, a continuidade de Raisi era praticamente certa.

Crucialmente, Raisi era visto como o grande favorito a suceder ao ayatollah Ali Khamenei como o líder supremo do Irão, tanto pelo próprio Khamenei, como pelo poderoso Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, as duas entidades máximas responsáveis pelo programa nuclear e pelas decisões de política externa.

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Oposição a Israel e aproximação a China e Arábia Saudita devem manter-se

É na política externa, aliás, que a queda do Presidente iraniano deve ter menos impacto imediato. O mandato de Ebrahim Raisi ficou marcado por um forte contraste com os primeiros anos da presidência de Hassan Rohani, o moderado que liderou o país entre 2013 e 2021, e que promoveu um acordo nuclear e a aproximação com os Estados Unidos e o Ocidente (pelo menos até à chegada de Donald Trump à Casa Branca).

Raisi nunca demonstrou divergir da política do ayatollah Ali Khamenei e, para o investigador luso-iraniano Mohammad Eslami, professor no departamento de Ciência Política da Universidade do Minho, “nem o presidente mais moderado e mais reformista do Irão seria capaz de mudar a direção e abordagem do Irão em relação à Faixa de Gaza e ao Hezbollah”.

“Isso é uma estratégia a longo prazo que não mudaria facilmente, nem se o Governo inteiro fosse substituído”, afirmou Eslami.

O Irão é conhecido por apoiar vários grupos extremistas no Médio Oriente e por promover conflitos através de “proxys”, como o Hamas na Palestina e Israel, e o Hezbollah no Líbano. Na Síria, o regime do ayatollah colocou-se ao lado do ditador Bashar al-Assad; e, recentemente, após décadas de “guerra fria” com a Arábia Saudita, dois dos maiores atores do mundo islâmico acordaram uma relação mais saudável e o fim do apoio militar iraniano aos rebeldes houthis no Iémen.

No entanto, a tensão diplomática e rivalidade com Israel (e, por inerência, com os Estados Unidos), que se agudizou ainda mais com os bombardeamentos israelitas na Faixa de Gaza e com o ataque a uma embaixada iraniana no Líbano, estão para ficar.

“Estas operações não estão relacionadas com o Governo, a estratégia do Irão relativamente ao chamado eixo de resistência é controlada pelas forças revolucionárias e por ordem direta do ayatollah, e isso não é algo que possa mudar facilmente”, esclareceu o especialista em política do Médio Oriente.

Mural numa rua de Teerão

AFP / GETTY IMAGES

Sob o atual governo iraniano, Teerão tornou-se também um importante amigo da China e da Rússia no Médio Oriente. Para os russos, o Irão é um fornecedor de armas indispensável na sua invasão contra a Ucrânia, especialmente de drones Shahed - apesar de Raisi ter sempre negado que os drones usados na Ucrânia eram, de facto, iranianos. Já os chineses comprometeram-se a investir copiosamente em infraestruturas no Irão, no âmbito da Iniciativa “Belt and Road”, prometendo em 2021 que investirão 400 milhares de milhões de dólares ao longo de 25 anos, em troca de um desconto nas importações de petróleo.

“O anterior governo de Rouhani costumava ver o interesse nacional do Irão em colaboração com o Ocidente e os EUA. Mas o novo sistema político de Raisi associou o interesse nacional do Irão a uma boa relação com a China, a Rússia e os países vizinhos”, resume Mohammad Eslami.

Para o investigador, o investimento “massivo” da China no Irão torna a perspetiva de um corte de relações ainda mais improvável.

“Nenhum governo iraniano chegou ao ponto de estragar algo que já existia. O próximo governo não vai destruir as relações com a China e a Rússia para construir uma relação com os EUA e o Ocidente. O governo de Raisi também manteve uma colaboração com países ocidentais, exceto os EUA”, referiu.

Contudo, para Eslami, caso o próximo presidente seja menos conservador que Raisi, um possível ponto de agenda pode ser o acordo nuclear que Trump rasgou em 2018, precipitando uma nova aposta no programa nuclear de Teerão.

“Se o próximo presidente for mais moderado, podemos ver um retomar das negociações sobre um acordo nuclear com os EUA e o mundo, bem como uma tentativa para que sejam levantadas as sanções”, acrescentou o professor.

Vladimir Putin com Ebrahim Raisi

Contributor/Getty Image

Aumento de participação mais provável que aumento da contestação

Apesar do vácuo deixado pela morte do Presidente, o investigador Mohammad Eslami tem pouca confiança que “um único protesto seja levado a cabo no Irão”, acreditando antes que haja um aumento da participação política nas próximas eleições presidenciais - que têm de ocorrer dentro de 50 dias.

“Na anterior eleição legislativa, vimos que as pessoas simplesmente não participaram ou expressaram o seu descontentamento com o sistema no Irão com uma baixa participação. Mas, desta vez, a história será provavelmente diferente. As pessoas que não estão contentes, especialmente com a política cultural do governo - que, segundo elas, nega direitos às mulheres e oprime liberdades sociais -, podem participar e eleger um governo mais moderado”, explicou Eslami.

O especialista luso-iraniano apontou que a fraca participação eleitoral mais recente é um problema - em março, apenas 41% dos eleitores foram às urnas, o valor mais baixo desde que existe República Islâmica do Irão; e, em 2021, apenas 48,8% dos cidadãos elegíveis votaram quando Raisi foi eleito.

Para Mohammad Eslami, as autoridades eleitorais iranianas podem até permitir uma maior presença da oposição moderada, ainda que o processo de qualificação e desqualificação dos candidatos, pelo Conselho de Guardiões, seja (no mínimo) pouco confiável (organizações não-governamentais ocidentais acusam o regime iraniano de manipular eleições ao limitar a presença de opositores).

“As pessoas que não são aprovadas para serem candidatos às presidenciais são pessoas em quem o regime não confia. De modo a aumentar a participação eleitoral, é possível que o Conselho de Guardiões permita que mais candidatos moderados desempenhem um papel maior. E, para neutralizar os protestos do último ano, se conseguisse persuadir as pessoas que se manifestaram a ir votar, isso seria uma grande vitória para o regime”, salientou, crendo que “o ambiente eleitoral seja mais favorável que o anterior”.

Mohammad Mokhber

WANA NEWS AGENCY

Sucessão de ayatollah fica suspensa, para já

Nas horas que se seguiram à morte de Ebrahim Raisi, a substituição do Presidente foi rapidamente assegurada pelo líder supremo do Irão, que confirmou a nomeação do vice-presidente, Mohammad Mokhber, para presidente interino. “Não haverá a mais pequena perturbação na administração do país”, assegurou Ali Khamenei.

Se a sucessão de Raisi é mais simples - o presidente interino tem agora 50 dias para marcar novas eleições, em colaboração com o parlamento -, o topo da liderança da República Islâmica do Irão fica mais emaranhada. Mas não menos urgente, até porque o líder supremo tem 85 anos e a sua saúde tem-se deteriorado de forma notória.

Ali Vaez, diretor do International Crisis Group para o Irão, disse ao New York Times que Khamenei tentou “reduzir a imprevisibilidade do sistema ao preparar Raisi para ser o seu potencial sucessor e, agora, todos esses planos foram atirados pela janela”. O nome do filho do ayatollah, Mojtaba Khamenei, foi apontado pela imprensa internacional como sendo o novo favorito, mas Mohammad Eslami, sublinhou que a indicação de Mojtaba não só é improvável, como legalmente difícil.

“Há alguns meses, o ayatollah Khamenei declarou oficialmente que era ilegal sequer considerar o filho na sucessão, porque isto tornaria o papel de líder supremo, um cargo muito importante no Irão, numa posição hereditária”, salientou o especialista da UMinho, notando a resistência demarcada no país a políticas ou símbolos monárquicos.

Saúde do ayatollah Ali Khamenei tem-se deteriorado com a idade

Sobhan Farajvan/Pacific Press/LightRocket via Getty Images

Além disso, o cargo de líder supremo do Irão está apenas disponível para quem chegar aos títulos mais importantes da hierarquia islâmica xiita. “O líder supremo tem de ser um ayatollah, e Mojtaba não é um ayatollah. Em termos de conhecimento e experiência religiosa, ele ainda não cresceu o suficiente para ser o próximo líder. E, por outro lado, existem outras elites políticas e religiosas mais importantes que estão mais qualificadas para serem o próximo líder supremo”, avisou.

Contudo, Mohammad Eslami também advertiu que, dada a importância e a garantia que Ebrahim Raisi acarretava na chefia do país, a comunidade internacional deve aguardar para que os partidos políticos se organizem para ir a votos num sistema tão “complexo e complicado”.

“Ainda é cedo para falar destas coisas. Como disse, Raisi era o possível candidato para próximo presidente e próximo líder supremo. E, agora, o principal jogador está morto. O ambiente político e social do Irão precisa de um pouco de tempo, não de 24 horas, mas pelo menos de uma semana ou duas, para colocar as opções em cima da mesa”.

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