E depois o choro sobre o leite derramado

2 meses atrás 59

O problema é que a diabolização do compromisso político só existe em relação aos temas políticos, porque quando se trata de cargos, a coisa muda de figura.

O populismo de direita está a fazer das suas. Não foi por falta de aviso que se chega a uma vitória da extrema-direita na primeira volta das eleições legislativas francesas ou se assiste a escaladas eleitorais impressionantes, onde Portugal também entra na rota. Foi, sobretudo, por falta de resposta aos sinais e aos problemas estruturais que se arrastam ano após ano, gerando mercados de oportunidade para quem sustenta sociedades com outros tipos de desequilíbrios diferentes dos existentes. Quantos ensaios de êxito tiveram os Le Pen em França ou as outras expressões populistas de direita na Alemanha, na Áustria, em Itália ou nos Países Baixos, só para citar os mais relevantes, agora que o VOX está em perda em Espanha?

Vale de muito pouco os democratas moderados chorarem sobre o leite derramado se, quando têm os instrumentos para exercício do poder político de forma consequente se entretêm com táticas, imediatismos, vistas curtas, afagos de ego, respostas aos nichos eleitorais e meros expedientes de sobrevivência política, como se estivessem de turno a responder ao que surge, sem pensar de forma estruturada, sustentada e orientada para as transformações de futuro.

À boleia de uma espécie de tribalismo partidário, tem-se diabolizado o compromisso em torno de temas essenciais da sociedade portuguesa, cuja resposta depende de uma visão e de medidas sustentadas no tempo, independentemente de quem governa. Foi assim após a vinda da Troika, configurada e subscrita por alguns socialistas em funções governativas e na liderança do partido. Tem sido assim na afirmação da geometria variável de um exercício político que ora virou à esquerda para superar uma derrota eleitoral, ora virou à direita para desvalorizar a rutura dessa mesma solução política, até à desperdiçada maioria absoluta. O problema é que a diabolização do compromisso político só existe em relação aos temas políticos, porque quando se trata de cargos, a coisa muda de figura. Houve compromisso para eleger a Mesa da Assembleia da República. Houve acordo para eleger os representantes da Assembleia em diversos órgãos com representantes do parlamento, incluindo o Conselho de Estado, aqui incluindo o Chega na convergência. E houve acordo para concretizar a designação de António Costa para a liderança do Conselho Europeu. Aliás, boa parte dos que diabolizam o compromisso em território nacional, quase continental, são os primeiros a alimentar e sustentar a normalidade do diálogo e das convergências no plano europeu, até para responder aos riscos da ascensão da extrema-direita.

O foco do compromisso tem de estar na resolução dos problemas das pessoas, da comunidade como um todo e do território, não apenas nos egos e nos interesses pessoais ou particulares. É o interesse geral que deve prevalecer.

Quem anda por cá há algum tempo, não estranha convergências em função de interesses particulares, sem relevância real, consequente e sustentada para o designado bem comum. Foi assim no passado, enquanto, condicionados pelos compromissos com a Troika, se procurou convergir em torno da carga fiscal para responder aos problemas reais, com a oposição de muitos que toleraram as convergências locais com o mesmo governo de direita para aforrar os cofres municipais a título de compensações pela frente ribeirinha do Tejo ou pelos terrenos do atual aeroporto de Lisboa. Em nome do interesse de uma parte, não se hesitou em convergir para proveito próprio e fragilização de terceiros, num jogo favorável à direita e ao ego pessoal. Estas eram as convergências boas! Como rotulada de boa terá sido a convergência à esquerda com quem rejeitou e continua a rejeitar boa parte do acervo histórico do papel democrático do Partido Socialista, da construção europeia e da nossa participação na Organização do Tratado do Atlântico Norte, sendo avessa à consagração europeia agora viabilizada por um compromisso ao centro político, com papel ativo do governo português de direita.

Neste quadro em que os valores, a coerência e o sentido de equilíbrio são substituídos pelas sustentadas expressões de “Grandes Houdinis”, porquê insistir em determinado sentido da política com decência, visão e foco nas pessoas, no território e na sociedade vista como um todo? A resposta é simples: Para não termos de chorar sobre o leite derramado, das conquistas da extrema-direita e dos populistas! Urge o compromisso para a construção de respostas sustentáveis para os quotidianos das pessoas e dos pilares fundamentais da sociedade portuguesa, da saúde à justiça, da qualidade de vida à coesão territorial, da sustentabilidade à geração de oportunidade, da segurança à autoridade do Estado.

Enquanto não existirem essas respostas, com senso e sustentabilidade, existindo convergências para os cargos, continuaremos a ter leite derramado para chorar e uma escalada de riscos democráticos e de desagregação social.

NOTAS FINAIS

DEPOIS DO CERCO AO CAPITÓLIO, CERCO AO PARLAMENTO? Já trabalhei com as forças de segurança, sei bem da relevância da sua missão e da sustentada insuficiência do reconhecimento, dos recursos e do apoio político no desenvolvimento da mesma, mas, por maior que seja o desespero e o sentimento de injustiça, nada pode justificar o incumprimento da lei por quem deve zelar pela sua observância. Depois da manifestação ilegal à porta do Capitólio, o apelo do Chega para uma manifestação policial à porta do parlamento é um teste ao senso, ao sentido de missão e ao compromisso democrático. Será um incontornável teste do algodão da influência da extrema-direita em pilares fundamentais do Estado e da sociedade.

A RUA, A MÃE DE TODAS AS ESPERANÇAS. Depois de alguma esquerda combalida das perdas eleitorais e de representatividade procurar direta ou indiretamente ganhar músculo por via da contestação na rua, só faltava mesmo o mimetismo do Chega a procurar fazer o mesmo. Os extremos tocam-se.

EM TEMPOS CINZENTOS, PERDEMOS A COR. A morte de Manuel Cargaleiro deixa-nos mais sorumbáticos, entregues aos cinzentos dos quotidianos nacionais e globais. Resta-nos a obra e as memórias, porque como dizia “a arte é a lembrança que deixamos aos outros”.

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