“É o mesmo princípio da autodeterminação de Timor-Leste”. Relatora da ONU desafia Portugal a reconhecer o Estado da Palestina

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Entrevista a Francesca Albanese

03 out, 2024 - 22:24 • José Pedro Frazão

De visita a Portugal, Francesca Albanese tem várias palestras sobre a Palestina marcadas para diversas universidades, mas não tem ainda um encontro com o Governo português na agenda. Numa entrevista registada no ISCTE em Lisboa, a jurista que acompanha a situação dos direitos humanos nos territórios ocupados palestinianos, por nomeação do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, faz a defesa da tese do genocídio perpetrado por Israel sobre os palestinianos.

No mesmo dia em que António Guterres foi considerado ‘persona non grata’ por Israel, a relatora da ONU para a Palestina coloca-se ao lado do secretário-geral das Nações Unidas e assume uma crítica frontal a Israel. Em entrevista à Renascença, Francesca Albanese acusa os países ocidentais de “amnésia colonial” e hipocrisia em relação à criação do Estado Palestiniano.

Genocídio e crimes de guerra têm definições legais distintas. É apenas a intencionalidade que faz a diferença?

Um crime de guerra acontece em tempo de guerra, quando há um conflito. É uma violação das regras da guerra, que são muito simples, mas que, ainda assim, existem para preservar a humanidade: não atingir civis, não atingir instalações civis, não causar danos desproporcionados na realização de operações militares, não visar locais religiosos, locais de identidade cultural, escolas, etc, não torturar, não privar arbitrariamente as pessoas de liberdade em tempo de guerra. Os crimes contra a humanidade podem ser cometidos tanto em tempo de guerra como em tempo de paz, contra uma população civil de uma forma sistemática e generalizada, ou seja, existe um sistema, um padrão ou uma violação contínua, como por exemplo a deslocação forçada ou o apartheid.

O genocídio é uma série de atos criminosos como matar, infligir sofrimento ou criar condições de vida que levem à destruição de membros de um determinado grupo. São atos cometidos com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo e, neste caso, os palestinianos são alvos por serem palestinianos, é um grupo como tal. Este é o elemento crítico. E porque é assim? Porque os palestinianos habitam a terra que Israel reclama para si. Esta é a mentalidade geral da predisposição de Israel em relação aos palestinianos. A intenção é sustentar atos de matança ou de destruição, como aconteceu em Gaza. O genocídio foi cometido com meio para um fim, como parte de um plano para esvaziar o que resta da Palestina — nomeadamente a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental - da vida e da identidade dos palestinianos.

Nesse sentido, esse genocídio estava já a acontecer antes de 7 de outubro de 2023?

Penso que o plano existia e a oportunidade foi providenciada pelo 7 de outubro, dia que marcou uma escalada da violência contra os palestinianos que se revelou genocida, o que significa que se manifestou em definitivo um plano destrutivo. Isso não significa que os atos genocidas não possam ter ocorrido antes, mas investiguei o que ocorreu a partir de 7 de outubro.

O Governo português, através do ministro dos Negócios Estrangeiros, discorda que as ações israelitas contra os palestinianos configurem um genocídio. O mesmo diz o governo dos EUA e dúvidas semelhantes são colocadas por Emmanuel Macron ou Olaf Scholz. Isso faz com que todos sejam cúmplices desse genocídio?

Não, a cumplicidade exige uma conduta ativa, mas certamente isto torna-os alheios à situação e, a meu ver, e com todo o respeito, também imprecisos na leitura da situação. Gostaria que eles elaborassem sobre como isto não constitui genocídio, porque, nos tempos modernos, é difícil tentar encontrar a intenção genocida de uma forma tão explícita, omnipresente e ostensiva. Em Israel, há ministros, líderes políticos e religiosos, de todos os segmentos da sociedade israelita, que dizem que os palestinianos têm de partir, não há lugar para eles ali: “Ou partem sozinhos ou vamos torná-los em migrantes forçados.” Se ficarem, terão de permanecer subjugados, caso contrário, serão mortos, o que, de facto, era o que estava a acontecer mesmo antes de 7 de outubro.

O facto de as pessoas e os decisores políticos na Europa se terem sentido tão tocadas — e com razão — por terem visto o horror que os israelitas suportaram no dia 7 de outubro, mas não conseguirem ter empatia com o que milhões de palestinianos vivem há 75 anos e não apenas nos últimos 11 meses, é chocante.

Mas existe uma outra abordagem jurídica, desencadeada contra indivíduos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Admite que é provável que esta tenha melhores resultados através da acusação de indivíduos e não dirigida apenas a países?

São dois processos diferentes, complementares e não mutuamente exclusivos. Em primeiro lugar, existem as responsabilidades criminais internacionais. Aqueles que incitaram ao genocídio, cometeram genocídio através de atos de omissão ou até conspiraram para o genocídio, devem ser responsabilizados, investigados e processados. Isto pode acontecer ao nível do TPI, mas também em tribunais com jurisdição universal a nível interno. Ser-lhes-ão concedidos, naturalmente, padrões de julgamento justo e equitativo.

Paralelamente a esta, mas também separada, está a responsabilidade do Estado. Ora, é verdade que quando um indivíduo é um funcionário público e considerado responsável por atos de genocídio, os Estados tornar-se-ão responsáveis, porque trata-se de um indivíduo que exerce responsabilidades de Estado quando é funcionário público.

Se o procurador-geral do TPI Karim Khan o conseguir, o processo será bem-sucedido?

Em termos de genocídio, sim, mas a questão é que não podemos esperar por um processo penal. A responsabilidade do Estado não pode ser a soma das responsabilidades individuais. Não podemos esperar por julgamentos criminais. Caso contrário, o direito a um julgamento justo dos alegados perpetradores ultrapassaria a necessidade de proteger as vítimas. Na Convenção sobre o Genocídio há uma obrigação de prevenir o genocídio. Portanto, quando há uma indicação de que poderá estar a ser cometido um genocídio, é necessário pará-lo. E esse relógio começou a contar quando o Tribunal Internacional de Justiça emitiu medidas preliminares. Esse deveria ter sido o momento para Israel investigar e processar os que foram referenciados pelo Tribunal Penal Internacional, que é responsável por estabelecer a responsabilidade do Estado e não a responsabilidade individual. Se os processos judiciais não tiverem efeito, é a própria Convenção sobre o Genocídio que falha, porque o alerta precoce é o que torna acionável a única forma de prevenir o genocídio.


O facto de as pessoas e os decisores políticos na Europa se terem sentido tão tocadas — e com razão — por terem visto o horror que os israelitas suportaram no dia 7 de outubro, mas não conseguirem ter empatia com o que milhões de palestinianos vivem há 75 anos e não apenas nos últimos 11 meses, é chocante.

Defende que não há ação contra Israel. Porquê?

Porque há parcialidade em relação a Israel, exercida principalmente por estados ocidentais. E há uma enorme pressão de Israel, que conseguiu criar um sistema de medo entre os Estados e mesmo dentro dos seus círculos eleitorais. Mesmo com esta transformação do antissemitismo numa arma de arremesso, qualquer pessoa que pronuncie uma palavra contra Israel pode ser acusada de antissemitismo ou de apoiar o terrorismo. Isso impede as pessoas de condenar, denunciar, até falar sobre a Palestina e sobre o que os palestinianos estão a passar. Este clima criou uma espécie de dificuldade até para ter informação adequada. Há países onde os debates foram silenciados ou a autorização para a realização de conferências foi negada, incluindo nas universidades.

Coloca Portugal nesse clima?

Não conheço Portugal de forma suficiente. Parece-me que Portugal vem de uma tradição de abertura, mas, ao ouvir o que as pessoas diziam — porque não é algo sobre o qual eu tenha uma ideia – dizem-me que as coisas estão a mudar. Portanto, existe essa possibilidade deste país evoluir num sentido como o do meu país [Itália], onde há 30 anos era totalmente normal falar dos direitos dos palestinianos e onde agora parece que todos os palestinianos se tornaram terroristas. Há uma espécie de esquizofrenia e de realidade distópica, que não se trata de compreender mal a realidade, mas de criar uma realidade alternativa. Espero que isso não aconteça com Portugal.

Afirmou que alguns países estão a ter ‘amnésia colonial’. Portugal está nesse lote?

Posso dizer-vos que esse é o caso de muitos países europeus onde estive. Estou apenas a oferecer um elemento de reflexão para os portugueses. Vocês, portugueses, compreendem que na História há um impacto de mais de 500 anos de colonialismo em Portugal, Espanha e outros países como França, Grã-Bretanha, Holanda e até Itália – que tem uma história curta, mas vergonhosa, de colonialismo. Impactou pessoas em toda a África, América Latina e Ásia. Quinhentos anos de colonialismo ceifaram centenas de milhões de vidas. Sabem quantos genocídios foram cometidos? Quer dizer, os Estados Unidos são um país que nasceu de um genocídio! E foi assim na Austrália e no Canadá. Veja-se o caso da Nova Zelândia.

Esta é a realidade. As pessoas do Sul Global não o esquecem, enquanto nós, países ocidentais, tendemos a não falar sobre isso. É por isso que digo que temos uma amnésia colonial. Mas ao mesmo tempo, nem tudo está perdido. Penso no que Portugal fez no caso de Timor-Leste, onde desempenhou um papel tão crítico, tão importante para levar a colonização ao seu fim. Portugal esteve tão próximo dos timorenses.


Mesmo com esta transformação do antissemitismo numa arma de arremesso, qualquer pessoa que pronuncie uma palavra contra Israel pode ser acusada de antissemitismo ou de apoiar o terrorismo. Isso impede as pessoas de condenar, denunciar, até falar sobre a Palestina e sobre o que os palestinianos estão a passar.

Acha que Portugal deveria seguir o mesmo caminho com a Palestina?

Porque não? É o mesmo princípio. É sobre o direito à autodeterminação. Claro que entendo que com Timor houve uma maior ligação, porque era uma ex-colónia. Mas o colonialismo é uma culpa comum. É por isso que as pessoas na Europa deveriam sentir-se culpadas, porque eventualmente o Holocausto foi o regresso à Europa de práticas que foram utilizadas contra os povos colonizados. Antes de cometerem o genocídio sobre o povo judeu, os alemães cometeram genocídio contra os Hereros.

O Governo português não avança para reconhecimento da Palestina porque defende um debate mais alargado e equilibrado em torno de consensos nesse sentido, a bem do próprio povo palestiniano. Entende esta posição?

Por que razão dizem isso? Não se trata aqui de fazer o que é sensato, mas o que é devido. Como pode alguém falar do direito à autodeterminação de um povo e da solução de dois Estados sem então reconhecer o Estado palestiniano? Já agora, o Estado da Palestina existe, com ou sem o reconhecimento por Portugal. Penso que os países europeus são muito hipócritas ao continuarem 'cegos' em relação ao que se passa na Palestina e aos palestinianos e israelitas. Esqueçam a política, estamos a falar de vidas humanas que foram completamente destruídas e devastadas. E esses números, claro, são maiores para o lado palestiniano. São dezenas de milhares de vidas do lado palestiniano. E não creio que os israelitas estejam a viver melhor. A única forma de os ajudar é contribuir para derrubar este regime brutal de ocupação, que ambos aprisiona em diferentes níveis de sofrimento. Dizer que não se reconhecer o Estado da Palestina apenas significa marcar uma desconexão entre as palavras e as ações.

Foi retirado o pavilhão português do navio que seguia para Israel com carregamento de armas. Foi uma boa decisão?

É uma boa decisão de Portugal, embora o meu receio seja que agora este barco leve outra bandeira, mais cedo ou mais tarde. Este navio deve ser atracado e bloqueado, não para prosseguir. Deixo isso para os especialistas. Acho que o que Portugal fez agora foi absolutamente importante e simbólico, porque era aberrante ver um navio que transporta armas que Israel usaria claramente para atacar os palestinianos que neste momento estão a sofrer genocídio, transportando uma bandeira europeia. Estou muito feliz por o governo ter tomado esta decisão.

Como comenta o facto de Israel ter declarado que António Guterres é ‘persona non grata’ no país?

Lamento muito , porque ninguém deveria ser tratado assim e, mais ainda, a figura mais importante das Nações Unidas. Israel perdeu o sentido de decoro para com as Nações Unidas. Israel está a comportar-se da maneira mais deselegante e desrespeitosa, desfazendo a Carta da ONU nas Nações Unidas e acusando as Nações Unidas de serem um lugar de trevas, antissemitismo e terrorismo. Como se atrevem? O facto de nunca termos responsabilizado Israel pelos seus atos, levou-os a sentirem-se autorizados a não serem controlados. Claro que lamento muito o que aconteceu com o secretário-geral, mas expresso a minha solidariedade e tenho a certeza de que isso não o impedirá de ser a pessoa de princípios que tem sido nos últimos meses.

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