Em Brest, a cautela não invalida o sonho: «Uma lição para todos a favor da Superliga»

4 meses atrás 86

Bologna em Itália, Girona em Espanha e Brest em França. A temporada 23/24 foi propícia a intrusos no pódio, trio de lugares habitualmente destinado aos endinheirados e poderosos clubes que monopolizam o topo das respetivas tabelas.

Embalado pela intrigante campanha, o zerozero decidiu explorar o caso do representante francês: o Brest, emblema rotinado à luta pela manutenção e cara conhecida da segunda divisão, confirmou a qualificação direta para a Liga dos Campeões 2024/25 na última jornada.

A dimensão da conquista sobe de tom quando analisamos a história recente, o treinador, os adeptos e o plantel - que tem das folhas salariais mais baixas do campeonato: a quinta mais baixa, em concreto. Para nos guiar nesta viagem, o zerozero deu a mão a Alexandre Teixeira, jornalista que nasceu e viveu 20 anos em Brest.

qSabendo que, este ano, a Liga Francesa passava de 20 para 18 clubes, acreditei que o Brest ia fazer parte daquelas três/quatro/cinco equipas que iam lutar pela sobrevivência.

Alexandre Teixeira

Numa primeira instância, Alexandre comprovou e aprofundou a ideia generalizada do Brest: «É um clube que tem uma história ligeira na primeira divisão francesa. Teve um bom momento, no final dos anos 80, quando teve alguns jogadores que vieram a ter sucesso nos anos 90: Paul Le Guen, Vincent Guérin. Também contrataram o campeão do mundo de 1986, José Luis Brown. Tiveram um período de sucesso, apesar de nunca terem ido além de um oitavo lugar, mas depois o clube foi à falência: o presidente teve 'mais olhos do que barriga' e perdeu-se. O clube teve de começar do zero; começaram da quarta divisão, no fim dos anos 90.»

«Nos últimos 20 anos, aí sim. Foram passados, mais ou menos, metade na primeira divisão e metade na segunda. É um clube que luta, sobretudo, pela manutenção», confirmou.

Roy e Lorenzy, os homens do leme

Eric Roy, o técnico do Brest

Falar do passado recente do Brest é falar também de Eric Roy, treinador que assumiu o conjunto francês na temporada transata e, desde então, segundo Alexandre Teixeira, está a viver um conto de fadas: «Sempre esteve ligado ao Nice, primeiro como jogador e depois como treinador, diretor, etc. Quando saiu, foi para o Lens, ser diretor desportivo; repetiu a experiência, mais tarde, no Watford. A partir daí, foi comentador, mas sempre em contacto com o futebol: assim, chegou ao Brest, sozinho. Na altura, o Brest estava numa situação muito má e ele teve a inteligência de se adaptar ao clube, de ter um discurso de confiança, de confiar nos adjuntos que conheciam bem o clube - ex-jogadores - e o ambiente da cidade. Esse foi o início de uma história que se tornou maravilhosa.»

Curiosamente, na experiência enquanto comentador, Eric Roy trabalhou com Alexandre Teixeira. O jornalista, conhecedor do atual treinador do terceiro classificado francês, levantou-nos o véu sobre Roy enquanto profissional: «Muito empenhado. Na altura, na RMC Sports, tínhamos os direitos televisivos do campeonato inglês. Com a experiência que ele teve no Watford e como tinha ainda umas relações em Inglaterra, ajudou-nos, seja a conhecer jovens ingleses ou em análises táticas durante a semana. Depois, ele tem carisma, é natural, é muito empático e deu tudo certo. O que aplicou connosco, tenho a certeza que aplicou também como dirigente e treinador.»

Continuando nesta travessia, chegamos, inevitavelmente, ao plantel. Sem espaço para estrelas e com curiosas histórias pelo meio, surge outro interveniente de peso nesta bonita epopeia: Gregory Lorenzi, o arquiteto do projeto.

Lorenzi, numa primeira fase, como jogador do Brest

«O Brest é um clube pequeno, que não tem o apoio de consórcios estrangeiros, como é o caso do Troyes, por exemplo. O Brest é gerido de uma maneira familiar. Ou seja, cada euro investido tem de ser bem investido. Não há lugar para superestrelas ou grandes ordenados. Há que construir o plantel de uma maneira inteligente e é aí que o trabalho do diretor desportivo - Gregory Lorenzi - é fundamental. Foi jogador do Brest e, há oito anos, quando ainda era jogador, o presidente disse-lhe: "Tu tens a oportunidade de ser coordenador desportivo, mas tens de encerrar a tua carreira hoje"», confidenciou-nos Alexandre Teixeira.

«Conseguiu construir este plantel, sempre com boas oportunidades de mercado: foi buscar jogadores à segunda divisão e reservas dos grandes clubes. Quando falamos de jogadores como o Amavi, o Lees-Melou, o Mounié… Estavam no estrangeiro, sem sucesso, e o Lorenzi soube dizer: "Volta a França; podes não jogar competições europeias, mas tens tempo de jogo e vais voltar a ser feliz"», continuou.

«No último mercado de transferências, o Brest gastou apenas 500 mil euros - no Bradley Locko. Todos os outros jogadores chegaram por empréstimo ou a custo zero, o que torna a história inacreditável. É a prova que, no futebol, o mais importante para o sucesso é o lado mental, a confiança. Com o discurso do Eric Roy, o ambiente, a qualidade dos jogadores… Como eles costumam dizer, antes de serem um grupo de jogadores, são um grupo de amigos», finalizou, desta forma, o tópico do plantel.

A cidade, os feitos e festejos... mas cautela

Festejos efusivos da equipa, junto dos adeptos @Getty /

Tendo em conta todos os detalhes da história, torna-se impossível não ficar surpreendido com o feito "Brest na Champions" e, nesse sentido, Alexandre Teixeira aproveitou para recordar uma campanha portuguesa - relativamente recente: «O exemplo do FC Paços de Ferreira, quando ficou em terceiro lugar, se calhar é a melhor comparação possível. Um clube que ninguém espera que tenha sucesso e que acaba por "chatear" todas as equipas. Além disso, o Brest foi, provavelmente, a equipa que teve a proposta de jogo mais atrativa do campeonato francês, com jogos que nem os melhores roteiristas de Hollywood podiam imaginar - o 4-3 contra o Lyon, o 4-5 contra o Rennes. Mesmo a forma como o Brest ficou no pódio - golo do empate do Nice contra o Lille, ao minuto 90+3 - é impressionante; se não fosse isso, o Brest ficava em quarto. É um filme!

Como não poderia deixar de ser, o facto de ter vivido na cidade do clube sensação da Ligue 1 23/24, levou-nos a perguntar a Alexandre Teixeira sobre a vida em Brest.

«Tenho raízes em Brest: nasci e vivi lá 20 anos. Assisti ao crescimento e desenvolvimento do clube, do quarto escalão francês até à Liga dos Campeões. É uma terra de futebol! Costumamos dizer que nunca vais a Brest por acaso, porque está mesmo numa ponta. É uma vila de pessoas muito humildes, com muita indústria e junta ao mar, parecida ao norte de Portugal. Pessoas que sofreram muito depois da Segunda Guerra Mundial. Pessoas que merecem este sucesso», garantiu.

«O Stade Francis-Le Blé não vai poder acolher os jogos da Liga dos Campeões pela dimensão que tem, mas ainda é dos poucos estádios em França que está na cidade. Está colado a uma escola e eu, curiosamente, fui aluno dessa escola. O parque de estacionamento para os jogadores e televisão é a área de jogos para os alunos. Atrás do estádio, há muitos prédios que dão para assistir aos jogos. Parece um estádio "à inglesa"», notou Alexandre, sobre a casa do clube.

Imagem do Stade Francis-Le Blé na receção ao Paris SG @Getty /

Nesse sentido, o jornalista falou também sobre o novo reduto do Brest - ainda em construção, que deve ser finalizada em 2027: «Vai ser um estádio moderno, um bocadinho fora da cidade, mas com um centro comercial à beira. Um pouco como no Dragão e na Luz, por exemplo. Está previsto que o estádio acolha apenas 18 mil pessoas. Ou seja, cinco mil a mais que atualmente. Eles pensam - apesar de ser um pensamento negativo - que se o Brest for para a segunda divisão, ao menos vai ter um estádio não muito desproporcional.

O estádio está a ser construído, mas a ponte na conversa fez-se sozinha. Do futuro estádio, passámos para o futuro do Brest, que pode ter dois sentidos, na opinião de Alexandre Teixeira. Contudo, há algo certo e imprescindível, conforme o jornalista.

«Olho para o futuro de duas formas. A primeira, de uma maneira jornalística e factual: o sucesso da próxima temporada depende muito da continuação do Gregory Lorenzi, porque ele é cobiçado - pelo Rennes, Lens, Nice - e é o arquiteto deste projeto. Se o Brest conseguir guardá-lo, porque ninguém entende melhor o projeto que ele, será uma base importante para a próxima época. Depois, mais como adepto: o sucesso do Brest na próxima temporada é a manutenção. O clube não está preparado para estas andanças, os jogadores também não. Tenho esse medo, mais uma vez, que seja como o FC Paços de Ferreira: acabaram em terceiro e, na temporada seguinte, quase desceram», comparou.

qO Eric Roy, numa entrevista, disse que já sabia o discurso para o primeiro dia da próxima época: «Muitos parabéns pelas conquistas da época passada, mas, agora, nós começamos do zero».

Alexandre Teixeira

Posso assegurar que, apesar dos milhões da Liga dos Campeões, o Brest vai ter de ir ao mercado, obviamente, mas nunca vai pagar dez/quinze milhões por um jogador. Podem ter a certeza. O Brest devia aproveitar os milhões Champions para investir no estádio, infraestruturas, equipas de formação… Investir no clube e não na equipa», opinou.

Em jeito de conclusão, Alexandre Teixeira aproveitou para salientar: «É uma lição para todos os que são a favor da Superliga. Os resultados "humanos" ainda têm valor no futebol. Nesta temporada, o Brest não é exemplo único. Clubes que não estão programados para isso, mas dão pontapés no sistema. Mostram que o verdadeiro futebol ainda está vivo.»

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