ENTREVISTA | Conceição, NES e Luís Castro: Rui Pires relembra o «sonho de miúdo» no FC Porto

1 semana atrás 43

Rui Pires foi uma das maiores promessas na formação do FC Porto. O médio, atualmente com 26 anos, embarcou para outro tipo de aventuras e voltou a emigrar, desta vez para Singapura, o segundo país que conheceu em termos desportivo depois de França, onde esteve dois anos.

Num país a quase 20 horas de distância de Portugal, o trinco confessa-se feliz com a decisão na carreira, uma vez que tem um estilo de vida que não encontraria na maior parte do mundo. Apesar de o país se equiparar, em termos de dimensão, à ilha da Madeira, conta com quase seis milhões de habitantes e pouco espaço para construir... novos estádios.

A diferença horária entre Singapura e Portugal não é um problema. Rui Pires atende a nossa chamada de sorriso no rosto, pronto a falar sobre todos os capítulos da carreira que começou em Mirandela, onde nasceu. FC Porto, Paços de Ferreira, Troyes (França) e Lion City Sailors (Singapura).

Nesta segunda parte da entrevista ao zerozero, Rui Pires recorda os tempos de dragões ao peito, sobretudo todos os sacrifícios que fazia desde Mirandela, as experiências com Nuno Espírito Santo e Sérgio Conceição na equipa principal do FC Porto e os jogadores que mais o impressionaram nos treinos.

A última parte será publicada ainda esta quinta-feira.

ZZ: Puxemos a fita atrás. É natural de Mirandela e vai muito cedo para o FC Porto. Como é que revive esses momentos de início da carreira?

RP: Foi complicado e, nesse sentido, gostaria de agradecer aos meus pais porque sem eles nada disto era possível. Comecei a jogar com oito anos, numa vila perto da minha aldeia, que se chama São Pedro Velho, no concelho de Mirandela. Os meus primeiros tempos foram no futsal. Correu bem, passei para o Mirandela e, no ano seguinte, para o futebol de sete. Fomos campeões distritais e decidi ir fazer captações a Fão, com o objetivo de ir para o FC Porto. Éramos cerca de 50 atletas, metiam-nos em equipas, davam-nos coletes e faziam equipas de cinco. Dos 50, escolhiam 20/22 para fazer uma partida num campo maior. Lembro-me que estava a chover muito nesse dia e eu fui um dos escolhidos. Acabou o jogo, cada um foi para sua casa e ninguém disse nada relativamente à decisão final.

ZZ: ...

@Catarina Morais / Kapta +

RP: Passado pouco tempo, estava na escola e não tinha telemóvel. O meu pai ligou para o meu antigo treinador, que trabalhava lá na escola. Disse que queria falar comigo e disse-me que o FC Porto queria contar comigo já na próxima época. Nem queria acreditar. Eu era portista e, como podes imaginar, era um sonho tornado realidade. Não tinha bem noção do passo que estava a dar. Nos primeiros anos, queriam que fosse viver para a Casa do Dragão [n.d.r para onde vão alguns jovens atletas do clube]. Só que a minha mãe não estava muito para aí vírada. Imagina perderes o teu filho de 11 anos para o Porto, a duas horas e meia de casa. Não era fácil para ela nem para o meu pai. Assim, concordámos com eu fosse treinar à sexta-feira - o único dia da semana - e fazia os restantes no Mirandela. O meu pai levava-me a seguir à escola, que acabava às 15h00. Tinha que estar no Porto às 17h00/18h00. Era uma correria para chegar ao treino [risos]. Ficava a dormir no hotel para jogar no dia seguinte. Também tenho de agradecer ao FC Porto porque as coisas corriam bem e eu jogava. Se tu pensares bem, hoje em dia, um jogador que vá treinar uma vez e jogue no fim-de-semana... Não é normal. No segundo ano, porém, as coisas já ficaram mais sérias. Queriam que eu fosse três vezes por semana, mas o meu pai dizia que era impossível.

ZZ: Ficou chateado com essa decisão?

RP: Não, não. Eu percebia o lado dele. Existiam vários aspetos que ajudavam a fomentar o pensamento. Por exemplo, no segundo ano, só para teres uma noção, coincidiu com a altura das obras no Tunel do Marão, que ainda não existia. No inverno, o tempo era terrível e chovia torrencialmente. Eu chegava muitas vezes ao treino e já tinha acabado porque tinha apanhado trânsito. Desvio para lá, desvio para cá, condicionava muito o trajeto normal. Se apanhavas um camião... tinhas que ir com ele até ao fim, pois não havia maneira de ultrapassar. Mas lembro-me de estar no balneário a brincar porque não havia treino devido às condições metereológicas. O meu pai deixava-me em baixo e tinha que subir a rampa toda do Olival, só aí ficava com o aquecimento feito [risos]. Muito stress, acima de tudo. Não é qualquer pessoa que faz este esforço. Tive a sorte de terem horários flexíveis para tal. Foram gastos absurdos durante vários anos e eles acompanharam-me durante todo o trajeto na formação do FC Porto. 

@Global Imagens / Miguel Pereira

ZZ: Lembra-se de alguma história caricata ou engraçada relacionada com as viagens que fazia?

RP: Lembro-me, por exemplo, de estar com a minha mãe e ficar sem travões a meio da viagem, quando estávamos a descer a Serra do Marão. Chovia granizo e eu, miúdo como era, meti a mão à frente do vidro para ele não partir [risos]. Estava preocupado e partilhava do stress da minha mãe, que estava a pensar em tudo o que poderia vir a acontecer. 

ZZ: Falou há pouco da Casa do Dragão. Como é que funcionava?

RP: Eu vim de uma aldeia muito pequena e morar numa cidade tão grande como Porto custou um pouco. Era tímido e acanhado. A Casa do Dragão ajudou-me nesse sentido, pois fomos sempre bem tratados. Pessoas espetaculares. Tínhamos cozinheiro, segurança 24 horas por dia e desenvolvemos laços familiares entre atletas. Acho que éramos 30 ou 35 jogadores, já não me recordo bem. Na altura tínhamos 14 anos e existiam jogadores com 18 anos. Faziam de nós o que queriam, né? A minha primeira noite... Posso contar a história.

ZZ: ...

RP: Ainda não morava, mas fiquei lá porque íamos para um torneio no dia seguinte. Aquilo tem vários tipos de quartos e eu fiquei num juntamente com mais três jogadores. Estávamos no andar de baixo, que tinha janelas para um restaurante em frente. Havia muita gente na esplanada e o pessoal deste lado começou a mandar umas bocas, na brincadeira, claro. Aquilo era tardíssimo, 1h ou 2h da manhã. Depois voltavam para a cama, sempre assim. Até que as pessoas da esplanada começaram a falar e alertaram a portaria. O segurança acendeu a luz, chateado, a perguntar quem é que estava a fazer asneiras. Toda a gente fingiu que estava a dormir, mas se ninguém disse nada, no dia seguinte íamos levar todos um processo disciplinar. E eu a pensar: onde é que me vim meter? Se a primeira noite foi assim... Também me lembro de partilhar o quarto com pessoal mais velho e, quando acordava, tinha tudo desarrumado. Gostava de preparar tudo direitinho, mas depois via que a minha pasta dos dentes já não estava lá, a minha roupa... Era o mais novo do quarto e todos se riam de mim [risos] O que é que eu ia dizer? Tinha que entrar nas brincadeiras. Tudo isto ajudou a criar uma família e a sentir menos saudades de casa. Estávamos sempre juntos. Saí com 17 anos e, até agora, as minhas maiores amizades são essas. Foi onde cresci como atleta, como pessoa.

@Global Imagens / 10664

ZZ: Que principais lições é que aprendeu desses tempos longe de casa?

RP: Tens que te desenrascar mais cedo porque não é qualquer pessoa da nossa idade, com 14 anos, que está longe dos pais. Eu penso que nós, jogadores de futebol, temos uma maturidade acima da média, uma vez que as coisas acontecem mais cedo. Não temos tantas saídas à noite... Claro que nos podemos divertir nos momentos certo, mas é diferente. Eu sentia que, comparativamente aos rapazes da minha idade, eu estava à frente em termos de maturidade. Para além disso, tínhamos todas as condições possíveis num ambiente cheio de grandes jogadores. Quando cheguei, pensei logo: 'como é que vou jogar aqui'? Questionei muitas vezes isso  porque aquilo eram só craques. Vinha de uma realidade completamente diferente... Ao início, era avançado e rapidamente me tornei num médio defensivo. Passei de marcar 50 golos por época para não marcar nenhum. 

ZZ: Como é que acontece essa transição drástica de posição?

RP: O que eu sentia é que eles iam buscar os melhores do distrito. Eu era rápido, inteligente, fintava e sobressaía muito. Depois entro num contexto em todos são iguais a mim. Eles viram que eu tinha boa qualidade de passe e colocaram-me logo mais recuado no terreno. Passei imediatamente de futebol de 7 para futebol de 11, não sabia bem a minha posição (...) Gostava de dar assistências. Estava isolado e passava a bola ao meu colega ao lado, portanto, não tinha aquele instinto de avançado. 

ZZ: Com que jogadores é que ainda mantém contacto e, por outro lado, quais foram os melhores atletas com quem partilhou o balneário?

RP: Essa pergunta é muito difícil de responder... Começo pela segunda parte. Em termos de rendimento desportivo, acho que o Diogo Costa (FC Porto) e o Diogo Dalot (Manchester United) são quem esteja melhor. O Moreto Cassamá (Omonia), a meu ver, era um fora de série e continua a ser um grande jogador. O Rui Pedro (Hatayspor), não só por ser meu amigo, mas acho que é muito difícil encontrar jogadores com a qualidade dele. São diferenciados. No que toca às amizades, tenho uma grande relação com o Rui Pedro, com o Bruno Pereira (Penafiel) ou o João Tavares (Marítimo). Criámos muitas amizades e, acima de tudo, histórias. Não me lembro de mais nenhum, são tantos.

ZZ: Qual a maior dificuldade para um miúdo da vossa idade?

RP: Estar focado na escola e conseguir conciliar as duas partes. Nós andávamos todos na mesma turma, éramos 20 rapazes do FC Porto e duas raparigas, por exemplo. Chegas a uma altura em que só pensas em futebol, futebol e futebol (...) Eu tinha sorte que era bom aluno, apesar de nunca estudar. Só a partir do décimo ano é que se tornou mais complicado devido aos estágios das seleções nacionais. Deixei de ter boas notas e acabei só por acabar. Para além disso, é complicado manter os pés bem assentes na terra. O futebol é muito bonito, mas nem toda a gente consegue chegar a um bom nível nem fazer uma boa carreira a nível financeiro. As pessoas pensam assim, mas não. Acham que vão ganhar mundo e fundos, ser o melhor do mundo... Quando se é jovem temos essa perspetiva, no entanto, quando crescemos vemos que não é algo tão linear.

ZZ: Depois de alguns anos nas camadas jovens, o Rui chega à equipa B do FC Porto, pela mão de Luís Castro. Que memória tem de uma liga extremamente competitiva numa altura precoce a nível sénior?

RP: Estava no meu segundo ano de júnior, salvo erro. O Tomás Podstawski teve uma lesão e eu fui chamado para a pré-época. Correu muito bem e eu era jovem, acho que não tinha mais ninguém da minha idade, excetuando o Rui Pedro. Consegui afirmar-me logo nos primeiros treinos porque a transição entre as duas equipas era complicada. Agora, é tudo diferente e mais natural. Pensei várias vezes: 'Como é que vou aguentar?' O nível era completamente diferente, tudo mais rápido. Assim sendo, tenho de agradecer ao mister Luís Castro, que foi com ele que fiz o meu primeiro jogo, contra o Aves.

ZZ: ...

RP: Existiam vários jogadores mais velhos como o Fede Varela ou o Omar Govea. Mas adaptei-me bem. O mister Luís Castro foi dos melhores treinadores que já tive na carreira. A exigência que ele tinha com os atletas, a nível de treino, era fora do normal. Exigente tanto para os mais novos como para os mais velhos, não deixava passar nada. No entanto, também nos concedia liberdade para decidirmos tudo dentro de campo. Ele gostava muito de implementar a posse de bola e lembro-me perfeitamente disso, fruto dos exercícios que trazia. Ainda hoje guardo vários aspetos que aprendi nessa altura. Nunca tive dúvidas que pudesse atingir um patamar muito alto, tal como aconteceu nos últimos anos, tanto no Botafogo como no Al Nassr, da Arábia Saudita. Fez esta caminhada com dois adjuntos que também estiveram comigo, o João Brandão e o Vítor Severino. Não foi por acaso que atingiram o sucesso. 

@UEFA

ZZ: Pelo meio, é capitão de Portugal Sub-19 e conseguem, por exemplo, chegar à final contra Inglaterra, em 2017. Que tipo de responsabilidade é que a braçadeira trouxe para um jovem atleta?

RP: É outras das coisas da qual me orgulho. Sentes que os jogadores à tua volta te respeitam e isso é importante. Dentro de campo tens de liderar as tropas e, depois, dar a cara nos momentos bons e maus. Essa final... Acabamos por perder e foi muito triste. Claro que ganhando o Europeu as coisas podiam ser diferente, mas tínhamos uma grande equipa. Foi pena.

ZZ: Subimos alguns degraus na carreira e chegámos ao momento em que é chamado ao treino da equipa principal, na altura comandado por Nuno Espírito Santo. Acaba por não fazer nenhum jogo na equipa A, apesar de ser apontado com insistência como uma das maiores promessas do clube. Ficou a faltar isso na passagem pelo FC Porto?

RP: Claro. Esse é o sonho para os miúdos que ficam lá durante vários anos. Fiz vários treinos na equipa principal e passei várias semanas com eles. Só faltou mesmo jogar. Mas não guardo qualquer tipo de mágoa por isso. Na minha altura, existiam grandes jogadores na minha posição. O Danilo Pereira, o Rúben Neves... Não era fácil subir de patamar. Depois, tive de tomar uma decisão, após três anos na equipa B. Podia ter ficado mais um pouco e esperar pela oportunidade, no entanto, preferi sair para evoluir noutro tipo de contextos. Estava a sentir-me demasiado confortável e queria ter outro tipo de experiências. Temos que perceber que uma equipa B é diferente de um conjunto sénior. Éramos todos muito jovens, não tínhamos homens no nosso plantel. 

ZZ: Que diferenças é que sentiu entre os dois mundos?

RP: Tive os mesmos sentimentos aquando da transição entre júniores e equipa B. Tudo rápido, a outro nível. Não tinhas tempo para pensar: quando recebias a bola, já tinhas de ter pensado no que ias fazer. Mas eu acho que os treinos me corriam bem. Estava focado em fazer as coisas perfeitas. Estava rodeado de jogadores com uma qualidade superior e parecia que tornavam tudo fácil. Se estiveres inserido nesse tipo de ambiente todos os dias, vais evoluir rápido, sem sombra de dúvidas. 

@Catarina Morais / Kapta +

ZZ: Quem é que o impressionou mais?

RP: Tantos... [pausa] Gostava muito do Yacine Brahimi, tinha uma capacidade de finta, de sair da pressão... Era um talento que mais ninguém tinha. O Jesús Corona também era parecido. O Óliver Torres, muito acima da média a nível técnico. O Herrera. O Éder Militão, que na altura era jovem, mas conseguiu afirmar-se de imediato. 

ZZ: Além de Nuno Espírito Santo, também é chamado por Sérgio Conceição, atual treinador do FC Porto...

RP: É muito exigente e o treino anda a uma velocidade acelerada, algo que me deixou impressionado. Nos últimos anos, o clube carateriza-se pela intensidade de jogo e penso que só conseguem implementar isso devido ao nível do treino. Com ele, não podes estar relaxado. Tens 20 atletas sempre a dar o máximo e tu, se não andares, vais ser o único que não andas, percebes? Nunca deixa o treino cair. 

Portugal

Rui Pires

NomeRui Miguel Guerra Pires

Nascimento/Idade1998-03-22(26 anos)

Nacionalidade

Portugal

Portugal

PosiçãoMédio (Médio Defensivo)

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