ENTREVISTA PARTE I | Paulo Moreno despede-se do Benfica com sabor amargo: «Uma temporada vergonhosa»

2 meses atrás 82

Fim de um bonito ciclo no Pavilhão Nº2 da Luz. Depois de vários anos a defender o símbolo do Benfica, Paulo Moreno despediu-se das instalações encarnadas para conhecer outro campeonato pela segunda vez na carreira (o francês, com a camisola do Chartes), pois já contou com uma pequena experiência no Al-Arabi SC, do Catar. Tudo o resto? Foi de vermelho e branco.

O trajeto do pivô de Cabo Verde começou em 2005/2006, na altura nos infantis. Subiu a pulso e, pouco tempo findado, estreou-se pela equipa sénior. Não demorou muito para conseguir agarrar o lugar e ser um dos jogadores mais importantes para todos os treinadores que passaram no banco de suplentes. 

Paulo Moreno
8 títulos oficiais

A liderança, o companheirismo, a amizade e a lealdade sempre estiveram lá. «Puko», como é carinhosamente conhecido, marcou uma era e deixará um legado com diversos capítulos. Apesar de não ter alcançado o maior objetivo durante esta aventura - o título de campeão do Campeonato Placard Andebol 1 -, acrescentou um troféu europeu ao museu encarnado. 

Nesta primeira parte da entrevista ao zerozero, o antigo capitão das águias voltou a falar da maior «conquista de sempre em Portugal» no toca a pavilhões, fez um balanço sobre a (difícil) temporada que agora finda, relembrou o «monstro» Alfredo Quintana e escolheu alguns jogadores que podiam assumir a braçadeira na próxima época.

ZEROZERO (ZZ): Sabe quantos jogos (476), golos (995) e a competição (Taça de Portugal) que disputou em mais ocasiões com a camisola do Benfica - excetuando a I Divisão? 

PAULO MORENO (PM): Não sei bem. Não ligo muito a números e a estatísticas. Só me disseram pela primeira vez quando fiz a entrevista com os canais de comunicação do Benfica. [pausa] Diria que foram 400 e tal encontros, juntamente com quase mil golos. No que toca à prova... diria competições europeias, mas qual delas?

ZZ: Foi a Taça de Portugal com 39 partidas, seguida da EHF European League (34) e da qualificação para a Taça EHF (19). 

PM: Só me preocupo com os números no sentido em querer ser melhor. Pretendo ajudar a equipa ao máximo e atingir os objetivos propostos. De vez em quando gosto de ver as épocas em que fiz mais golos ou o rácio de remates. Claro que, por vezes, isso não corresponde ao trabalho desenvolvido, mas tento consultar isso quando tenho um pouco tempo. Acima de tudo, gosto de colocar-me à prova e essa é uma razões que me leva a ir embora do Benfica.

Sempre um dos mais requisitados pelos adeptos @Cátia Luís/SL Benfica

ZZ: A sua transferência já tinha sido anunciada há algum tempo, mas só agora é que está a vivenciar as últimas semanas em Lisboa. Como estão a ser estes momentos?

PM: A 'ficha já tinha caído' quando fui ver as instalações do Chartes, em França. Assinei todos os documentos e pensei nos vários momentos que vivi com a camisola do Benfica. Sabia que o dia ia ter de chegar, apesar de uma decisão bastante ponderada. No entanto, tenho estado no Pavilhão Nº2 da Luz quase todos os dias. Faço a minha preparação física e o ginásio sempre tranquilo.

ZZ: O que é que está a custar mais em termos de despedidas?

PM: Não estar novamente com os meus colegas de equipas. Saber que já não os vou voltar a ver... Alguns deles são/foram bastante importantes para mim. Criei uma ligação forte. Esta equipa era especial, assim como todos os conjuntos onde estive inserido. Para além de ter o papel de jogador, fui o capitão durante todos estes anos. Em 2023/2024, o grupo era muito jovem, brincava muito comigo e chamavam-me 'cota' [risos]. Ter a noção de que não os poderei ajudar nas batalhas... O Benfica é a minha casa. Tenho 32 anos e passei 19 no clube. Não é fácil encontrar jogadores, seja no andebol ou em outras modalidades, que tenham vivenciado tantos capítulos numa equipa. A vida é assim, há que seguir em frente. Agora vou em direção a outro rumo. 

ZZ: Assim sendo, nunca tinha pensado sair do clube. Normalmente, quando os atletas estão numa fase inicial da carreira, podem aparecer propostas de campeonatos com outro tipo de poderio financeiro e acabam por abandonar à primeira oportunidade. 

PM: É verdade. Foram surgindo algumas oportunidades e ainda bem, não é? Sinal de reconhecimento pelo meu trabalho, porém, optei sempre por ficar. Não sei se foi o melhor, mas a vida é assim, feita de escolhas e decisões. Estamos constantemente a optar por um caminho. Se calhar fiz mal, se calhar fiz bem. Entretanto surgiram outros aspetos na minha vida: a minha filha nasceu, entrei para a faculdade, etc. Optei por ir para França antes que fique demasiado velho [risos].

ZZ: Falou dos estudos. Em que curso está inscrito?

Participou no Mundial 2023 @Getty /

PM: Ainda não acabei, infelizmente. Encontro-me em Educação Física na Universidade Lusófona de Lisboa e já fiz um ano e meio (de três). Comecei na altura da pandemia e, durante os primeiros tempos, foi bastante tranquilo. Não me tinha inscrito em tudo, mas estive presente em muitas cadeiras. O segundo ano já foi melhor e o terceiro igual. Existiu, porém, uma altura em que foi impossível alcançar algo mais devido à participação na EHF European League, em 2022. Tornou-se complicado conciliar os treinos, viagens e jogos juntamente com esta vertente. Quando for para o Chartes, terei de deixar para segundo plano outra vez, pois o curso é bastante específico e só tem horário diurno. Não tenho hipóteses de fazer durante o dia ou de forma digital. Não obstante, espero chegar até ao fim.

ZZ: Qual o objetivo quando finalizar o curso?

PM: O que eu gostava mesmo era de estar ligado ao mundo do desporto. Não como treinador, pois isso é bastante complicado [risos]. Estou a brincar. Não vou ser como toda a gente que diz que nunca na vida irá enveredar por essa área por causa dos egos no balneário e assim. Acima de tudo, gosto de conviver com miúdos. Trabalhar com a formação, por exemplo. O grande entrave é que não ganhas quase nada e perdes muito tempo sem a família. Ou seja, acho que o melhor seria um cargo de Diretor ou Team Manager, por exemplo. 

ZZ: Acha que esse bichinho de lidar com pessoas se deveu à braçadeira que envergou durante todos estes anos? Várias nacionalidades, vários grupos, várias pessoas diferentes.

PM: Sim, mas também pelo facto de me considerar um bom líder. Creio ter as ferramentas necessárias para desempenhar esse papel. Partilho a opinião de que, cada vez mais, existe um conjunto de caraterísticas, palavras ou adjetivos que caraterizam um bom líder. Lembro-me perfeitamente do que fui aprendendo quando era mais novo. Era/sou muito observador e gostava imenso de ver de que forma é que os outros capitães, inclusive de outras modalidades, se comportavam com os restantes companheiros. Um exemplo: sempre pertenci a esse lote, mesmo numa fase inicial da carreira. Nessa altura, o Benfica tinha uma super-equipa e eu era apenas como um número, não é? O Carlos Carneiro tinha o papel de capitão e, no ano seguinte, aquando da vinda do Mariano Ortega, passou o João Pais para esse lugar, seguido do Tiago Pereira e eu no terceiro posto. Quando o Tiago Pereira saiu, passei para o lugar de vice-capitão. Fui aprendendo com eles e permitiu-me adquirir outro tipo de estaleca. Claro que isto não é uma fórmula perfeita, mas temos que 'beber a água dos mais experientes'.

ZZ: ...

PM: Ao início, tinha dificuldades em falar com as pessoas, a exigir alguma coisa. Pensava assim: 'se lhes vou exigir um determinado aspeto, seja a gritar ou não, que moral é que vou ter quando falhar?'. Depois apercebi-me que não é assim tão linear, pois os papéis de capitão e jogador são bastante distintos. Têm que estar ligados, como é lógico, mas encontram-se em patamares diferentes. Fui, ao longo do tempo, aperfeiçoando algumas caraterísticas para criar o meu próprio perfil. Quero liderar pelo exemplo, dentro ou fora de campo. Quando estou com eles no jogo, no treino, no balneário ou num jantar de equipa, pretendo ser um exemplo e tento que me copiem. Para além disso, dou sempre o máximo para conseguir melhorar todos os dias.

ZZ: Quando subiu na hierarquia, sentia-se nervoso ou já era algo que estava destinado?

PM: Boa pergunta. Eu não acho que as pessoas tenham de ter todas as caraterísticas enumeradas previamente para serem um líder, mas existem muitos atletas que têm uma grande parte delas. Considero-me uma delas porque sou empenhado, gosto de manter o grupo coeso e penso muito no coletivo. Quando tinha 22/23 anos, não existia tanta responsabilidade e pressão sobre mim, pois estava no terceiro lugar do lote de capitães. Os mais velhos, sim, já lidavam com esses aspetos.

ZZ: ...

PM: Gosto de me dar ao respeito e no bairro onde cresci, na Amadora, sempre ouvi esse tipo de frases relativamente a pessoas com outro tipo de experiência, apesar de ser uma zona problemática de Lisboa. Hoje em dia sou bastante palhaço e gosto de brincar, no entanto, também existe uma grande quota de respeito. Consigo brincar e ser sério ao mesmo tempo. Um indíviduo pacato, acima de tudo. Carlos Carneiro, Álvaro Rodrigues, Inácio Carmo ou o Dário Andrade: todos eles - grandes nomes do nosso andebol - gostavam de mim devido à minha forma de estar.

ZZ: ...

PM: Claro que isso difere bastante. O Benfica tinha uma dinâmica em que juntava todos os capitães das várias modalidades. Uns não conseguiam falar tanto e deixavam esse aspeto para o sub-capitão. Outros gostavam de discursar e proferir frases de motivação. Ou seja, existem pessoas para todos os aspetos. Tentei, aos poucos, procurar as minhas melhores (e piores) caraterísticas para fazer um mix, digamos assim.

ZZ: Falou há pouco do bairro onde cresceu. Existindo algumas adversidades ligadas a quem vive nesse meio, como a criminalidade ou o consumo de drogas, que caraterísticas é que vai levar para a vida dessa altura?

PM: A persistência e o conseguir ultrapassar as dificuldades. Nós crescemos no bairro e sabemos que não é fácil. A realidade portuguesa não permite que toda a gente seja rica ou leve uma boa vida. Existe um grande desequilíbrio, apesar de não ser tão acentuado como em outros países. No bairro, assim sendo, é ainda pior. Zonas degradadas com criminalidade, violência, drogas e roubos. Estar junto desses cenários acaba por criar calo e ajuda a desenvolver maturidade. Tudo o que vives/observas permite que construas outra realidade relativamente ao que é a vida. Não estou a dizer que sou melhor ou pior do que os outros. Só não concordo, por exemplo, no sentido de dar tudo de mão beijada aos mais novos. Como agora sou pai, penso muito nisso. Acabas por seguir um caminho bastante fácil, algo simples. Se algum dia tiveres alguma adversidade, não vais possuir a capacidade para lidar com esses aspetos e encontrar alternativas para ultrapassar. 

ZZ: Ainda relacionado com a ideia do «ser capitão». O facto de ter ultrapassado tantos problemas numa fase precoce da vida, acha que o ajudou a assumir essa responsabilidade no andebol?

Cresceu na Luz @Federação de Andebol de Portugal/PhotoReport.In

PM: Sem dúvida, sem dúvida. A Amadora tem mesmo muito talento. Sempre teve e continua a ser um cenário verificado ao longo dos anos. Dão oportunidades a essas pessoas, mas elas não sabem aproveitar e acabam por perder-se. E eu, felizmente, tive o andebol na minha vida, apesar de ter surgido ao pontapé [risos]. Era uma modalidade que não conhecia, porém, fui ganhando paixão e consegui seguir este trajeto. Ou seja, nunca me vou esquecer do bairro porque foi onde defini a minha personalidade e caráter. Digo sempre isso. Os meus pais não me deixaram passar fome, nem a mim nem aos meus irmãos, apesar de ser uma zona, tal como já referi anteriormente, com poucas condições. Se eu voltasse a nascer, gostava que fosse tudo igual. A única diferença seria os meus pais terem um pouco mais de qualidade de vida. De resto, tudo na mesma. Fui feliz, apesar de todas as adversidadades. 'Nunca me esqueço onde quero chegar, mas também nunca me esqueço de onde venho'. É isso que me motiva para lutar dia após dia.

ZZ: A Amadora tem qualidade para que tipo de modalidades? Futebol, andebol ou basquetebol, por exemplo?

PM: Andebol não, infelizmente. É difícil ser jogado, por exemplo, nas escolas. Se calhar na zona norte do país é diferente, pois a modalidade acaba por estar mais evoluída. Espero que continuem a combater esse desequilíbrio para que este fenómeno continue a crescer. Por outro lado, o basquetebol tem muita sorte porque qualquer miúdo gosta da NBA, uma liga espetacular e com jogadores conhecidos em todo o mundo. Existem sempre tabelas em qualquer lado. O futebol também está bastante presente, pois temos vários atletas, assim como do futsal, que começaram a dar os primeiros passos lá. Outros acabaram por perder-se, apesar do grande talento. É fácil seguir por esse mau caminho.

ZZ: Se não fosse jogador de andebol, que desporto é que escolheria nas modalidades do pavilhão do clube?

Uma era de vermelho e branco @Benfica

PM: O futsal, fácil. Se fosse dedicado e trabalhador, acho que podia ser um atleta interessante [risos]. Desde sempre que me lembro de jogar futebol na rua, seja nos jardins, nos parques ou no bairro. Lembro-me que saltava os gradeamentos só para isso. Caraterizo-me por ser um box-to-box. Sou o Yaya Touré [risos]. Antes dizia que era o Renato Sanches [risos]. No Benfica tínhamos os jogos antes dos treinos e posso dizer que o Bélone Moreira era um 'mimo'. Um dos melhores há vários anos. O Nikola Zoric, por outro lado, era o pior. Lastimável. Depois evoluiu muito [risos]. Quando atravessamos a fase com várias lesões, tivemos os miúdos nos treinos. Só pensava para mim próprio: a próxima geração está perdida! Eles não sabem jogar à bola porque só só lhes interessa a tecnologia. Não sabem dominar, passar, nada. O meu caso é completamente diferente. Mal acabemos esta entrevista, vou jogar com o pessoal do Marketing do Benfica [risos].

ZZ: Voltando ao tema do andebol do Benfica. Gostava de propor um desafio: quem é que acha que tem o perfil indicado para assumir a braçadeira de capitão em 2024/2025?

PM: Toda a gente fala nisso. Acho que o Bélone Moreira está bem posicionado, pois já o era anteriormente juntamente comigo. Apesar de não gostarem dessa responsabilidade, também diria o Gustavo Capdeville ou o Alexis Borges. Por serem portugueses, conhecerem a realidade do clube e do Campeonato Placard Andebol 1. O primeiro nome está há vários anos no Benfica e, inclusive, já tinha jogado com ele quando criaram a equipa B. Vi-o a crescer em todas as etapas da carreira. Somos grandes amigos e temos uma excelente relação, um cenário verificado de igual modo com o Alexis. Caso eles não queiram ter esse papel, diria o Miguel Sánchez-Migallón ou o Ole Rahmel, dois estrangeiros.

ZZ: Desenvolveu grandes amizades ao longo dos anos. Referiu o nome do Gustavo Capdeville e do Alexis Borges. A sua saída já tinha sido tornada pública, no entanto, continua a receber carinho de várias pessoas relacionadas com o Benfica. 

PM: É muito gratificante. Alguns amigos dizem-me que eu sou o homem das histórias no Instagram [risos]. Eu, muitas vezes, não quero repostar as fotos que metem, mas é difícil não o fazer porque acho injusto. Se eu partilho de uma pessoa, vou querer partilhar de todas. Brincadeiras à parte, só tenho que agradecer o carinho que as pessoas tiveram por mim, sejam adeptos do Benfica, colegas ou jogadores de outras modalidades. Sinal de que consegui deixar uma marca positiva.

ZZ: Sei que é sempre uma pergunta ingrata, mas quem foram os companheiros de equipa com quem se deu melhor? 

2022 foi mágico para o Benfica @Uros Hocevar, Sasa Szabó/kolektiff

PM: Gostei muito de jogar com o Bélone Moreira porque tivemos e temos uma relação bastante especial. Também posso incluir neste lote o João Pais. Ajudou-me no papel de capitão, mesmo depois dos caminhos se separarem. Esteve sempre lá para mim. É injusto fazer escolhas porque passaram vários anos e convivi com várias pessoas. Como adversário, por outro lado, tinha um gosto especial defrontar o Pedro Seabra ou o Ricardo Pesqueira. Existiu sempre um respeito mútuo e foram um exemplo no que toca à postura (...) Pivôs? O 'pior' foi o José Paulo Silva [risos]. Acredito que seja bom rapaz, atenção, mas em termos de jogo... É um cenário engraçado, pois as picardias aconteceram em várias equipas que ele representou.

ZZ: Partilhou com o Bélone Moreira o melhor momento enquanto esteve no Benfica...

PM: Sim, sem dúvida. A conquista da EHF European League em 2022 foi uma altura bastante positiva. Trata-se de um troféu com bastante prestígio. Não só pelo facto de termos conseguido, mas também por ter sido uma equipa portuguesa. O mais importante, ainda assim, foi ter acontecido numa modalidade complicada. Disse isto várias vezes no Pavilhão Nº 2 da Luz. Não quero tirar mérito às conquistas do futsal ou do hóquei, por exemplo. Mas a verdade é que eles são uma potência nessa área e inserem-se nos melhores campeonatos do mundo. Nos outros desportos, é bastante habitual termos conjuntos portugueses na Final Four.

ZZ: ...

PM: Mais uma vez: eu respeito muito e acompanho vários desportos. No nosso caso, é mais complicado lutarmos olhos nos olhos com equipas alemãs, dinamarquesas ou francesas. Acho que foi a maior conquista portuguesa de sempre em termos de pavilhão. Sei que existem pessoas que não querem colocar as coisas nesse patamar, mas para mim é a maior conquista. O FC Porto já tinha chegado às fases mais adiantadas da prova, recorde-se, mas não conseguiram vencer. Foi difícil. Obviamente não foi apenas sorte, mas existiu, sim, um conjunto de vários fatores que permitiram esse desfecho.

Das primeiras homenagens ao guarda-redes @SL Benfica

ZZ: Ainda assim, sempre existiu uma boa relação com alguns companheiros de outras equipas. No caso do Alfredo Quintana, por exemplo, foi dos primeiros a prestar a devida homenagem.

PM: O desporto não se relaciona nada com a ligação que as pessoas têm. É inevitável não falar sobre aquele monstro. Nós tínhamos várias picardias devido à competitividade que implementávamos em cada duelo. Sou bastante competitivo e gosto mesmo de lutar. No entanto, não tenho problemas nenhuns ao afirmar que o Alfredo foi o guarda-redes que me causou pior eficácia de remate. Não me considero o melhor jogador do mundo, mas sei que tenho um bom rácio de remates/golos. Com ele... sempre horrível e isso dava-me mais raiva ainda. Perante este cenário, o que é que eu fazia? Colocava a bola ao pé da orelha, da cabeça e ele também ficava picado, cego e chateado. Lembro-me de um episódio no Dragão Arena, em que coloquei o remate junto à cabeça e bateu-lhe de raspão. Ele ficou furioso e correu atrás de mim até ao meio-campo. Nem deu tempo para pedir desculpa [risos].

ZZ: ...

PM: Outro exemplo: com o Alexis Borges, que esteve no FC Porto durante vários anos, fazíamos coisas que nem te vou contar [risos]. Hoje em dia temos uma grande relação, tal como já referi, mas antigamente... Ele beliscava-me, eu beliscava-o. Empurrões, tentativas de soco, esquece [risos]. Não tínhamos relação, porém, tudo mudou quando fomos companheiros de equipa. Claro que isto tem de ser saudável e não passar dos limites. Às vezes acontecem episódios um pouco duros, mas são exceções à regra. Cria-se uma picardia, no entanto, depois passa. O António Areia é outro dos exemplos. Muita gente criticou a sua saída para o FC Porto, mas continuei a dar-me bem com ele. São questões que apenas dizem respeito ao atleta, Benfica e FC Porto, os clubes envolvidos na transferência. 

ZZ: ...

PM: O Leandro Semedo também se enquadra nesta temática. Era muito competitivo e defendia bastante o FC Porto. Só comecei a falar com ele quando fomos à seleção de Cabo Verde. Porquê? Na defesa eu tinha alguns movimentos mais agressivos com jogadores do FC Porto e ele vinha logo defendê-los. O Edmilson Araújo era igual. Somos como irmãos, mas quando começa o jogo, só nos cumprimentamos e falamos apenas no final. É uma guerra que se prolonga durante 60 minutos (...) Todos os jogadores da seleção de Cabo Verde passaram por Portugal. Uns já deram o salto, outros foram para os outros campeonatos. Gostamos muito uns dos outros.

ZZ: Antes de passarmos para o capítulo relativo a França, gostaria apenas que comentasse a época encarnada 2023/2024. Bastante atípica com bastantes lesões e peripécias...

PM: Foi muito mau. Não gosto de rodeios. Uma temporada vergonhosa, tendo em conta a grandeza da instituição do Benfica. Tudo correu mal. Já tinha comentado isso em off com o Bélone Moreira. Disse-lhe: 'já tivemos anos maus, mas não tenho adjetivos para o que aconteceu agora. Na primeira ou segunda partida já não tínhamos team-manager devido ao processo 'Saco Azul', um cenário que se arrastou até janeiro. São o motor de uma equipa, seja em que modalidade. Não estou a tentar arranjar desculpas, é apenas a realidade. Quando alguns atletas estavam no EHF Euro 2024 (e eu no CAN 2024), soube que tivemos várias saídas, tais como o Mike Jensen (para o Veszprém), o Petar Djordjic (para o RK Vojvodina) ou o Yoav Lumbroso (para o ThSV Eisenach). Ficamos fragilizados porque acrescentavam qualidade. Numa fase posterior, em fevereiro, tudo melhorou, porém, apareceram 30 mil lesões.

ZZ: ...

PM: Por muito que lutes e queiras, é impossível. Fiquei muito orgulhoso da equipa, apesar de todas as adversidades. Independentemente do que acontecesse até ao último jogo, ficaria contente com o que eles demonstrassem. As pessoas também começaram a ficar sobrecarregadas com treinos todos os dias e sempre a mesma rotina. Foi miserável. Existiram aspetos ao redor, por muito que as pessoas tenham dito para ignorar e seguir em frente, que eram impossíveis de ultrapassar para estar concentrado. Ainda assim, é importante realçar que o Benfica tem jovens com muita qualidade. 

2023/2024 foi francamente complicado @João Paulo Trindade / SL Benfica

ZZ: Foi a mais temporada mais difícil da carreira?

PM: Sem dúvida. A pior de sempre. Foi bastante exigente para mim enquanto capitão. Eu sou duro e não gosto de vergar. Tento sempre mostrar às pessoas o lado positivo das coisas, no entanto, aconteceram situações complicadas. Todas as pessoas reconheceram isso, sejam adeptos, dirigentes ou jogadores. No outro dia estive a falar com o Gustavo Capdeville e ele disse para descansar bem porque foi uma altura desgastante. Acima de tudo, não podes apagar o passado. Independentemente se ganhas ou perdes, tens de andar para a frente. Isso vai permitir que consigas tirar ilações do que fizeste antes. A maior mágoa foi não ter conquistado nenhum título de campeão com esta camisola. Merecia por tudo o que trabalhei e dei ao clube. Fui sempre dedicado dentro e fora de campo. Não sou convencido nem nada do género, mas faltou isso. Apesar de tudo, estou extremamente orgulhoso do que desenhei. Saio de consciência tranquila e com sentimento de missão cumprida. O que fica, no final, são as amizades e as relações com as pessoas.

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