Falta de escolha das grávidas no acesso ao SNS “é ilegal”

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06 ago, 2024 - 11:03 • João Carlos Malta

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto alerta para o aumento de induções e cesarianas que decorrem do fecho dos serviços públicos de obstetrícia. Advogada especialista diz que as mulheres têm alternativas legais para interpor processos judiciais, mas os casos na justiça são poucos devido a morosidade das sentenças. "Podem demorar 20 a 30 anos", diz.

A falta de acesso das grávidas a serviços de obstetrícia na área de residência “é ilegal”. Quem o diz é a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, numa altura que se repetem encerramentos de serviços públicos, que aponta as recomendações da OMS para o parto ser uma experiência positiva “são de aplicação obrigatória”.

“Isso não está a ser uma realidade em Portugal, apesar da nossa lei 110 de 2019”, assume a presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, Sara do Vale.

A repetição dos encerramentos dos serviços de obstetrícia durante todo o ano e que se agrava nos meses de Verão, mas também nas festividades, segundo Sara do Vale tem consequências profundas na mulher e em toda a família que vê alterada de forma profunda um momento irrepetível como o nascimento de uma criança.

“Cria níveis altos de ansiedade e a não realização do plano de parto, por exemplo, porque, como sabemos, as senhoras são seguidas num determinado hospital, algumas até com gravidez de alto risco. É uma roleta russa”, descreve a líder associativa.

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O diretor executivo do SNS, António Gandra de Almeida considerou esta semana à Renascença, que é necessário repensar a rede de urgências.

Sara do Vale sugere que estas situações somam risco a uma intervenção que por si já tem perigos.

“Pode haver situações em que o diagnóstico escapa à nova equipa, ou porque não houve tempo e a senhora esteve a percorrer 100 quilómetros para ir ter ao hospital, ou por não conhecerem tão bem o caso. São pequenos pormenores que podem parecer pouco importantes, mas que podem fazer toda a diferença”, sublinha.

Esta situação está a comprometer, defende, o primeiro direito que é o do “acesso atempado e de qualidade” aos cuidados de saúde.

“Ou seja, o direito a poder escolher parir em qualquer maternidade do país, pode ser na sua residência, mas pode ser outra. O acesso a poder escolher a equipa que quiser. Portanto, tudo o que seja escolha, autodeterminação, livre-arbítrio, à partida, estão a ser prejudicados, porque é um pouco o que calha. É o que se calhar”, avalia. “São direitos que estão a ser pouco respeitados, parir não é só ter uma cama”, sinaliza.

A questão da distância ameaça também a possibilidade de a gravidez ser um momento familiar, porque “estou a imaginar o marido que vai ter de decorrer 100 quilómetros para ir ver a mulher todos os dias na hora da visita e tem de levar o mano mais velho. Tudo isto é extremamente destabilizante para o início da vida”.

Em Matosinhos, advogada e especialista em questões relacionadas com a gravidez, Mia Negrão, considera que andar centenas de quilómetros pode “fazer a diferença entre a vida e a morte”. E chama a atenção que além dos serviços que fecham, os que estão abertos também não funcionam como deveria. Têm menos meios e menos profissionais de saúde.

Mia Negrão afirma que as mulheres podem edevem recorrer a Justiça em casos em que a gravidez tenha sido prejudicada pela inoperância do Estado e dos hospitais, mas lamenta que recorrentemente as vítimas fiquem anos e anos à espera de uma sentença e acabem por desistir.

A jurista diz que caso exista responsabilidade civil do Estado, que está regulada na lei 67 de 2007, é possível pedir uma indeminização ao Estado. “O problema disto é que é uma ação contra o hospital, neste caso contra o Estado e que demora muitos, muitos anos e, portanto, as pessoas também acabam por se demover de fazer justiça por perceberem que é incompatível com os tempos das pessoas”, lamenta.

Mia Negrão afirma que “estamos a falar muitas vezes de 20, 30 anos de litigância”. Por isso, “não há responsabilidade e não há responsabilização, porque mesmo em cumprindo aquilo que é a lei, acaba por não haver grandes consequências”.

A advogada diz que o contexto legal faz com que os casos judiciais, nestes casos, só avancem quando de facto o dano causado pelo erro é muito grave, e resulta em morte ou situações de deficiência da criança.

“Quando os danos são sobretudo psicológicos, as pessoas retraem-se muito, acabam por não fazer nada”, evidencia Negrão.

Cesarinas a violência obstétrica

Por outro lado, há uma consequência direta do encerramento dos serviços de obstetrícia e dos blocos de parto. Sara do Vale, presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, alerta para o aumento do número de cesarianas, que em Portugal já vale uma percentagem anormalmente alta do total de partos.

Segundo os dados mais recentes, a taxa de cesarianas em Portugal é a 7.ª mais elevada da União Europeia. Nos hospitais públicos é já superior a 30% e é de mais do dobro (66%) nos privados. Em alguns privados é taxa é de 100% porque nem sequer fazem partos vaginais.

“Temos vindo a assistir a um aumento consistente das taxas de indução devido às contingências. Os hospitais sabem que vão estar fechados das 20h00 às 8h00, e os serviços puxam pela indução muito mais cedo do que seria ideal e sem questões clínicas. As senhoras estão sujeitas a isso e se querem ter o filho naquele hospital, isto serve como um deadline. Se querem ter o bebé, aceitam indução e cesarianas”, afirma.

Isto é aceitável? “Não. Elas [induções e cesarianas] existem porque salvam vidas, mas o problema é quando pomos bebés saudáveis sujeitos a intervenções que trazem riscos”, sublinha.

Sara do Vale diz que ultimamente têm chegado à associação muitos relatos deste género. “Na passada sexta-feira, uma senhora queria ter o bebé, mas como o hospital ia entrar em contingência dia 1, ou aceitava ou não podia parir ali”, descreve.

A advogada Mia Negrão alerta para outra questão que decorre deste fenómeno, a violência obstétrica. “Também temos o problema dos maus-tratos, daquilo que nós chamamos a violência obstétrica, que também aumenta tendo em conta o cansaço dos profissionais de saúde e a falta de meios que têm para prestar bons cuidados”, sinaliza.

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“Os profissionais de saúde estão de tal forma cansadas que não conseguem chegar a todo o lado, ficam muito mais stressados, ficam menos responsivos quando há algum pedido ou alguma reclamação, porque de facto não conseguem acompanhar estas grávidas como gostariam e como deviam”, acrescenta.

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto considera que esta turbulência nos serviços de obstetrícia tem feito sobretudo com que muitos troquem os hospitais públicos pelas unidades privadas, uma vez que ali “sentem que existe mais previsibilidade”.

A mesma dirigente lembra ainda que esta situação não afeta apenas o parto em si, mas outros momentos da gravidez “como a ecografia do primeiro trimestre que não são feitas”.

Voltando a Mia Negrão, a advogada alerta que quando se prepara um plano de parto, em que se escolhe um hospital e uma equipa médica, e depois em minutos tudo é alterado, isso gera stress. “Faz com que seja prejudicial ao próprio desenvolvimento do trabalho de parto, aumentando potencialmente a necessidade de intervenções que não seriam necessárias”, analisa.

A especialista diz que aqui pode ser considerado o nexo de causalidade entre o ato e a consequência que fazem com que uma grávida possa e deva “fazer uma reclamação, nomeadamente à Entidade Reguladora da Saúde”, mas pode também “eventualmente fazer um pedido indeminização se houver danos”.

“Há muitas coisas que podem ser feitas até uma queixa-crime se desenvolver aqui, algum crime”, acrescenta.

E termina a afirma que “reclamar sim é imperativo”, mas que “estamos em tempo já de nos reunirmos enquanto sociedade e fazermos uma manifestação relativamente a isto”, porque “já são muitos anos seguidos em que acontece exatamente o mesmo”.

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