Faltam políticas de igualdade e inclusão no setor da cultura defende Mónica de Miranda

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Mónica de Miranda é uma das três artistas e curadoras - com Sónia Vaz Borges e Vânia Gala - que criaram o projeto "Greenhouse", escolhido para representar Portugal na 60.ª Bienal de Arte de Veneza, a decorrer até 24 de novembro, sob o tema "Estrangeiros em toda a parte".

"Nos últimos anos, o Ministério da Cultura tem implementado concursos que são sensíveis à promoção da igualdade, e tem estabelecido grupos de consultoria para estabelecer as melhores práticas de inclusão, reunindo associações de artistas negros a trabalhar em Portugal", disse a criadora, em entrevista por escrito à agência Lusa.

Porém, na opinião da artista, cofundadora do Hangar - Centro de Investigação Artística, em Lisboa, "tudo isto é apenas um começo que flutua conforme posições políticas, e ainda não há uma lei que estabeleça uma verdadeira política de igualdade nestes concursos."

"É importante também haver mais incentivos e planos de educação em bairros onde o acesso à cultura é limitado", propõe, apontando o exemplo do Reino Unido - país onde viveu durante 15 anos -, porque ali têm sido desenvolvidos projetos para incentivar as práticas multiculturais, "a partir não apenas do sistema de ensino, mas também dos programas públicos feitos nas instituições culturais, tal como a Tate [museu nacional de arte moderna do Reino Unido, que reúne quatro galerias], e que têm como objetivo a inclusão de comunidades marginalizadas."

Para a artista, os museus não devem estar apenas "virados para uma comunidade elitista, mas abrir-se à comunidade em geral e, nesse sentido, seria necessário haver incentivos para uma verdadeira inclusão que não instrumentalizasse a representatividade negra, e lhe desse uma mera inclusão simbólica."

"É necessário ter consciência de que isso representa uma mudança fundamental na estrutura cultural, buscando uma inclusão genuína e não apenas superficial", defendeu.

Nascida no Porto, em 1976, a artista portuguesa de origem angolana vive e trabalha atualmente entre Lisboa e Luanda, e tem vindo a desenvolver criações e investigação nas áreas da arqueologia urbana, política, identidade de género, memória e geografias pessoais.

Questionada sobre o papel que podem ter os próprios artistas no processo de descolonização da cultura, em Portugal, Mónica de Miranda disse ser "fundamental" que atuem sempre "como ativadores e agentes de transformação, lidem com questões delicadas politicamente" e que exponham "desafios contemporâneos."

"A arte, enquanto expressão social, gera mudanças políticas e promove o diálogo, mobiliza comunidades, ilumina complexidades sociais e amplifica vozes marginalizadas e diversidades de pensamento", sustentou a criadora nomeada para o Prémio EDP Novos Artistas em 2019 e, em 2016, para o Prémio Novo Banco de Fotografia.

No contexto da descolonização, "os artistas podem contribuir no processo, em várias áreas, criando consciência sobre questões de representação, resgatando histórias apagadas e transformando os sistemas sociais".

A artista é uma das fundadoras, em 2014, do Hangar -- Centro de Investigação Artística, criado como um "lugar de resistência", de representação e de pertença para as diásporas africanas, na capital.

Deu como exemplo, o trabalho que desenvolveu durante dez anos sobre a "Estrada Militar" (2009), obra composta por um mapa e um vídeo, que "traz à luz as histórias apagadas das comunidades migrantes" que ali viviam -- entre Caxias e Sacavém -, e que continuam a fazer parte "de certa forma, de uma fortaleza que separa a cidade entre o centro, em contínua expansão, e a margem, sujeita a demolições e deslocamentos por causa da especulação imobiliária e racismo estrutural."

Neste trabalho, em que cruza a arte e a investigação, e que chegou a ser apresentado e incluído na coleção do Arquivo Municipal de Lisboa com a obra "Contos de Lisboa" (2020), considera que conseguiu integrar essas histórias apagadas na história da cidade de forma mais formal.

"Os artistas desempenham um papel essencial como agentes de mudança. Eles trazem novas perspetivas para o mundo e novas formas de representá-lo. Falam sobre a realidade a partir do próprio espaço pessoal, das suas biografias, e o caráter político vem desse lugar, da experiência pessoal, que está contada no contexto da realidade em que vivemos", vincou.

Nessa linha, defende que "devem ser valorizados os pontos de vista pessoais das pessoas racializadas e marginalizadas pela cultura hegemónica."

O facto de existirem muitas pessoas nascidas em Portugal, mas que não são portuguesas porque os pais são estrangeiros, "por si só elimina em muitos um sentimento de pertença."

"Há uma lei que perpetua a desconexão nacional. Temos uma questão complicada de nascer num lugar e não ser desse lugar, e uma lei que retira o direito de pertença, criando pessoas que são eternamente estrangeiras dentro do país onde nasceram, mas que por vezes não conhecem outro país que não seja Portugal", apontou, referindo-se à legislação que não garante o reconhecimento automático da nacionalidade portuguesa a quem nasça em território português.

Embora a Lei da Nacionalidade, a partir das mais recentes revisões (2006, 2018, 2020 e 2024), tenha aumentado as possibilidades de os nascidos em território português, filhos de pais estrangeiros, adquirirem a nacionalidade à nascença, ainda persistem lacunas, muitas resultantes da malha regulamentar, e sobretudo em termos retroativos.

Mónica de Miranda está representada em coleções públicas e privadas como o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, o Arquivo Municipal de Lisboa, o Museu Nacional de Arte Contemporânea e a Fundação Calouste Gulbenkian, e participou, entre outras, na Bienal de Dacar, no Senegal, em 2016, e nos Encontros Fotográficos de Bamako, no Mali, em 2015.

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