FC Porto chegou ao feminino: «Se não queríamos ter esta pressão, não aceitávamos vir»

2 horas atrás 20

O FC Porto consumou, esta temporada, a tão ansiada entrada no futebol feminino. A equipa portista compete na III Divisão, com ambições de poder chegar de imediato ao segundo escalão do futebol nacional.

Na sequência de um ótimo arranque - três vitórias em três jogos oficiais - nas duas competições (Taça e campeonato) onde as azuis e brancas estão inseridas, o zerozero recebeu duas personalidades que vão ficar para sempre gravadas na história do clube como pioneiras na secção de futebol feminino: Daniel Chaves, o primeiro treinador do clube no futebol feminino, e a média Inês Valente, que integra o primeiro plantel.

Os dois estiveram no último episódio do Primeiro as Senhoras, o podcast do zerozero dedicado ao futebol feminino. Treinador e jogadora recordaram o momento em que foram convidados a integrar o clube, reviveram o dia em que foi batido o recorde nacional de assistência em pleno Estádio do Dragão e fizeram um balanço dos primeiros meses de dragão ao peito.

zerozero (ZZ): A primeira pergunta é a mais simples de todas: como é que tem sido este início de época?

Daniel Chaves (DC): Tem sido especial, penso. Para toda a gente. Entrar num clube como o FC Porto, no futebol feminino, é sempre especial para toda a gente. Ao mesmo tempo, [tem sido] também de adaptação, delas ao contexto FC Porto e do clube também ao contexto do futebol feminino. Tem sido, semana a semana, quase adaptativo. Nós a adaptarmo-nos ao clube e, no fundo, o clube a nós também. Tem sido, até agora, fantástico.

ZZ: Inês, do ponto de vista de uma jogadora, como é que tem vivido este novo ciclo?

Inês Valente (IV): Tem sido uma experiência diferente. Quem conhece o futebol feminino sabe que as condições que o FC Porto nos dá não são a regra. Nós só temos que retribuir o quanto nos dão, que é significativo.

ZZ: Há muito tempo que se pedia o FC Porto no futebol feminino e finalmente aconteceu. O facto de serem também o primeiro treinador e uma das primeiras jogadoras traz maior responsabilidade?

DC: É sempre especial, claro, e sendo portista, mais especial se torna. Ser o primeiro é motivo de orgulho, mas ao mesmo tempo mete essa responsabilidade acrescida face ao projeto e às ambições do clube no futebol feminino.

IV: Faço das palavras do mister as minhas. Sendo as primeiras, claro que é um orgulho, ainda para mais sendo portista, mas está acrescido a muita responsabilidade. Tudo o que vamos fazer vai ser história e há um olhar atento para todos nós. 

qLembro-me que, na altura, eu disse 3.500 [adeptos no Dragão] e não fui convincente, porque não sabíamos mesmo o que esperar

Inês Valente

ZZ: O FC Porto, logo no primeiro jogo em que abre o Dragão, bate o recorde nacional de assistência. Para a Inês, como jogadora, como é que foi pisar aquele palco e perceber toda a envolvência? Estava à espera?

IV: Nós falámos sobre qual seria a nossa expetativa sobre o número de adeptos. Lembro-me que, na altura, eu disse 3.500 e não fui convincente, porque não sabíamos mesmo o que esperar. A ficha não caiu logo, acho que também ainda não caiu, mas está mais próximo do que aquilo que realmente aconteceu. É estranho, porque estamos habituadas a ter na bancada os pais, os familiares, às vezes amigos, e passamos a olhar para o lado e estava um mar de gente que nem conhecíamos.

ZZ: Havia o plano de abrir só uma das bancadas e, de repente, o primeiro piso estava cheio. Como é que foi para o mister viver tudo isso?

DC: Acima de tudo foi um momento único. Acho que já todos estivemos sentados como adeptos naquela bancada, e como treinador, um dia a sonhar pisar aquele relvado como treinador principal. Um momento único para mim, para o clube e volto a repetir o que tenho dito: o mais especial é que não foi premeditado bater o recorde nacional de assistência. Nem sequer foi falado nisso. Lembro-me de olhar para o número, lembrava-me que o recorde estava em 20 e tal mil, e dirigi-me ao banco e disse 'acho que batemos o recorde nacional de assistência'. Foi muito importante para o clube entrar desta forma.

ZZ: Difícil fazer-se ouvir no meio de 30 mil pessoas?

DC: Muito, muito. Tentar comunicar para o outro lado do campo era impossível.

«Tinha uma viagem para Lisboa e cancelei imediatamente»

ZZ: Vamos puxar a fita. Quais são as primeiras reações quando o telefone toca com o convite do FC Porto?

DC: Quando tocou, vindo de quem vinha a chamada e saindo a notícia que saiu nos dias anteriores, eu imaginei logo para o que era. Foi um sentimento especial, ao mesmo tempo emotivo, e fui a correr para o Dragão reunir, também para perceber qual era a realidade. Vou até confessar que tinha uma viagem para Lisboa à hora que me falaram para ir reunir e cancelei imediatamente para ir ao Dragão. 

IV: Foi semelhante. Quando o FC Porto falou comigo, todas as outras portas se fecharam. Eu sabia que era o FC Porto que eu queria. Há sempre rumores sobre o que é que o FC Porto ia fazer com a primeira equipa e eu nunca pensei que fosse uma possibilidade. Falavam em estrangeiras, a época passada não foi a melhor e eu achava mesmo que não era uma hipótese real. Quando falaram comigo... Era aquilo que eu queria.

ZZ: Como é que está a ser lidar com todo o mediatismo?

DC: Não tem sido fácil. É a parte mais difícil de lidar, falando por mim, esta parte de entrevistas, televisão, tudo o que seja reportagens. Isto, de alguma forma, cria expetativa. O trabalho também tem sido colocar as coisas no patamar certo e trazer também o sentido à realidade de que isto não vai ser tudo como as pessoas veem do lado de fora e com a facilidade que pensam. Da minha parte, a gestão dessa expetativa no grupo tem sido o foco.

ZZ: Enquanto grupo, sentem este mediatismo acrescido e que têm que gerir essa expetativa?

IV: Sem dúvida. Dentro da equipa lidamos todas de maneiras muito diferentes. Eu tento manter-me um pouco afastada porque também não me sinto muito confortável com isso. Mas não vou mentir: claro que é bom sentir o apoio. Tento aproveitar, mas mantendo-me sempre a uma distância de segurança.

ZZ: Olhando ao contexto, estruturas e plantéis, o FC Porto acaba por ser, provavelmente, a equipa mais forte da III Divisão. Isto também cria expetativa acrescida?

DC: Para mim cria mais o sentido de responsabilidade. Acho que a expetativa está alta, mas as coisas também não são como toda a gente pensa que são. O FC Porto não entrou com um investimento absurdo para ganhar isto fácil e subir de divisão rapidamente. Sabemos o caminho que queremos fazer, sabemos a qualidade que temos dentro do plantel, mas também sabemos a qualidade que a competição tem e a disparidade entre equipas que também envolve. Há equipas que têm menos qualidade, a verdade é essa, mas felizmente que existem e há mais gente a competir. E há outras equipas que também têm ambições, querem subir. Temos o Leixões na nossa série, que nos últimos anos é candidato à subida. É ter os pés assentes na terra, saber o que caminho que temos que fazer e não perdermos o foco. 

qAcho que a expetativa está alta, mas as coisas também não são como toda a gente pensa que são

Daniel Chaves

ZZ: Nesse tal jogo no Dragão, estivemos na conferência de imprensa e perguntámos sobre as declarações do presidente, André Villas-Boas, sendo que o mister respondeu falando muito desse sentido de responsabilidade. Inês, como é que encaram também esta mensagem que o mister passa e estas coisas que se falam, de que o FC Porto é muito forte?

IV: Pessoalmente, eu tento-me afastar disso porque aumenta muito a pressão que sentimos sobre as coisas. Prefiro focar-me em cada treino e depois no jogo. Tento mesmo afastar-me da pressão que metem sobre nós. A verdade é que existe essa pressão e temos muita responsabilidade, por isso tento dosear para que não seja um exagero, mas tendo noção de que temos que mostrar que merecemos estar onde estamos e merecemos subir.

ZZ: Quais têm sido os maiores desafios desde que esta aventura começou?

DC: Do meu ponto de vista, é a gestão dessa expetativa que falávamos. Acho que vai ser a maior dificuldade que vamos ter, porque a expetativa está alta e os resultados que vamos tendo ajudam a que esteja assim. Sabemos que não vai ser assim o ano todo. A gestão disso vai ser, para mim, o desafio mais complicado que tenho perante elas e também perante as pessoas de fora, que não conhecem tão bem a realidade. Ainda no nosso último resultado [0-14 frente ao FC Parada] eu li comentários de que ia ser um passeio. Não, não vai ser um passeio. Aconteceu neste jogo, eventualmente face à pouca adversidade que tivemos do outro lado, mas noutros jogos não vai ser assim. Acho que vai ser esse o maior desafio.

@FC Porto

IV: Para além do que o mister disse, acho que para todas nós a realidade do FC Porto não é a regra no futebol feminino. Habituarmo-nos a um contexto onde temos todo o tipo de ajuda possível, todas as condições e apoio... Cresce em nós, inconscientemente, uma pressão extra. Lidar com isso, sobretudo no início, não foi fácil, mas com o tempo estamos todas a habituar-nos.

DC: E depois é um bocadinho o que a Inês fala. Imaginem jogadoras que estavam na III Divisão noutros contextos, na II Divisão em contextos mais adversos também, caírem numa realidade do FC Porto. A expetativa que recai sobre elas, sobre a própria equipa no contexto competitivo em que está. Não é fácil, mesmo para elas, de lidar com isso. Temos que compreender. É tudo novo.

«Se não queríamos ter esta pressão, não aceitávamos vir para o FC Porto»

ZZ: Uma massa adepta mais exigente, que cobra muito.

DC: Obviamente. A pressão é inerente ao clube onde estamos. Se não queríamos ter esta pressão, não aceitávamos vir para o FC Porto. Temos que saber lidar com isso, mas tendo em conta que é normal, da parte delas, isto ser tudo novidade.

ZZ: A Inês é estudante de Medicina. Como é que é conciliar as duas vidas?

IV: Não é fácil, mas também acho que não é tão difícil como se diz por aí que é conciliar a faculdade com o desporto. O segredo é disciplina, mais do que ser inteligente ou estudar muito. Não é preciso faltar a treinos ou a aulas. Havendo um possível ajuste de ambas as instituições, acho que é possível. O desporto é importante. Vê-se muitas pessoas a deixar o desporto quando entram na faculdade. Para mim funciona mesmo bem eu ter aquele momento em que não penso em nada. Jogar futebol é o único momento em que consigo abstrair-me de tudo. Com disciplina, acho que é perfeitamente possível.

ZZ: Presumimos que num plantel tão jovem hajam mais estudantes ainda. A Inês falava em haver um ajuste de ambos os lados. O facto de ter muitas jogadoras dedicadas aos estudos, cria algum constrangimento no planeamento?

DC: Tem que existir, acima de tudo, compreensão. Está tudo articulado. Dou um exemplo: temos uma jogadora que tem aulas até mais tarde num dos dias da semana. O que é que se arranjou para ela não faltar à aula e continuar a treinar? Vai ao escalão abaixo. Tem idade para ir ao escalão abaixo e treina com elas nesse dia. Não perde a aula, que neste momento tem que ser o foco dela, e ao mesmo tempo treina. Não falha dos dois lados, há um ajuste de ambas as partes e compreensão acima de tudo.

ZZ: Vocês treinam de manhã?

DC: Não. Treinamos de tarde.

ZZ: Acaba aqui por apanhar um pouco essa questão das aulas.

DC: Sim, apanha as aulas da tarde. Há um ajuste delas em termos de horários também, algumas conseguiram ajustar. Outras não tanto, mas nós articulamos tudo.

ZZ: Isto leva para outra questão: o plantel é muito jovem. Olhamos para a jogadora mais velha e dizer velha é um exagero, porque é a Cláudia Lima e tem 28 anos. O mister já tinha experiência no futebol feminino, mas vem de um contexto diferente. A última experiência que teve foi na Indonésia, em futebol masculino e com jogadores experientes. Mudar o chip novamente para o futebol feminino e com um plantel tão jovem tem sido fácil?

DC: Acabou por ser fácil face a todo o mundo novo que elas têm no FC Porto e à capacidade que tiveram de absorver as coisas no início. O foco estava muito alto. Elas próprias têm as suas ambições, querem mostrar-se e foi fácil, em termos de treino, elas estarem predispostas a absorver o que íamos falando e o que queríamos em termos de ideia de jogo, dos exercícios de treino. Para já não há nada a apontar.

@FC Porto

ZZ: O mister é muito duro, Inês? (risos)

DC: Não, eu acho que no futebol feminino é difícil termos um treinador que nos saiba dizer as coisas da maneira certa. Acho que as mulheres, nesse aspeto, são mais complicadas. O mister já tinha estado no futebol feminino, tem uma bagagem e sabe o que nos dizer, quando dizer e como dizer. Parecendo que não, a nossa recetividade aumenta muito quando é dito da maneira certa e os resultados são mais imediatos.

ZZ: Entrando aqui um pouco na construção do plantel: há jogadoras mais experientes e mais jovens, com experiência de I Liga também. O objetivo era sempre ter esta mescla?

DC: Sim, o objetivo era termos um plantel competitivo para a divisão onde estamos, sabendo das condicionantes que o FC Porto tem e a forma como estamos a entrar no projeto. Trazer, acima de tudo, a juventude direcionada para o projeto que é. Se queremos um projeto a longo prazo, para mim faz sentido que o plantel fosse jovem e pensássemos a longo prazo também. Ou seja, que nos dessem garantias atuais, e penso que todas as jogadoras que temos, apesar da idade, têm muita qualidade. Ao mesmo tempo, as mais velhas, e falamos de jogadoras de 22, 23, 24 anos, nos acrescentassem algo que permitisse as outras crescer. Depois, que em termos de valores se identificassem com o que FC Porto quer e com o que eu quero numa equipa feminina. Pelas experiências que tive, sabia o que não queria dentro do plantel e o que queria em termos de perfil e personalidade da jogadora. Foi muito direcionado nisso, num projeto a longo prazo e na construção de um grupo saudável e forte para este ano.

ZZ: O FC Porto entra com ambição, o plantel é construído para ser competitivo, mas com ambição, até porque o próprio presidente já o reconheceu. O projeto está desenhado já para quanto tempo? Os objetivos estão traçados a que prazo?

DC: Sendo o mais honesto possível, para esta época. Penso que tem que ser assim face à realidade. Para o ano, o contexto competitivo da II Divisão vai mudar outra vez. Penso que tem que ser um passo dado a cada ano e neste momento o projeto tem que ser assim pensado. Caso contrário, vamos estar a dar um passo maior do que a perna e o FC Porto vai estar a entrar de uma forma que não quer. O projeto está pensado para este ano. Chegámos ao final da época, revemos tudo consoante o que se passar e pensámos no próximo ano.

ZZ: Inês, presumimos que a III Divisão seja para vencer e subir, mas há aqui outra competição: a Taça de Portugal. Como é que olham para essa prova? Há expetativa em chegar às derradeiras rondas? Dependendo do sorteio, pode surgir também algum desafio mais exigente para vos colocar à prova.

IV: Neste momento, o foco é o campeonato e isso está bem claro. Na Taça... Estando no FC Porto, temos de chegar o mais longe possível em todas as competições. Vamos lutar para isso.

ZZ: A questão da gestão de expetativas parece ser o principal foco nesta altura. Passar essa mensagem às jogadoras é assim tão simples quanto parece?

DC: Eu abordo tudo com elas e não é por ser feminino. Já fazia isto no masculino. Sendo honestos em tudo o que falamos com o grupo, é mais fácil também para elas se conectarem connosco. Temos abordado muito essa questão. Temos que pensar que se não tivermos o foco muito alto nos jogos que vamos fazendo, quando tivermos um desafio mais complicado não vamos estar preparadas em nenhum momento, porque não nos preparámos nos outros jogos para chegarmos àquele momento e estarmos concentradas e dedicadas. Mesmo falando da Taça e da gestão de expetativas, para quem conhece a realidade, sabemos que é muito difícil.

ZZ: Ninguém está à espera que o FC Porto ganhe a Taça no primeiro ano.

DC: É isso. Para quem conhece a realidade do feminino, é extremamente difícil. É mais um contexto competitivo para nós em termos de crescimento. Vai criar-nos desafios que, mais à frente, vão ser importantes para o crescimento da equipa.

ZZ: Os primeiros jogos foram convincentes e elucidativos da qualidade que o plantel já tem. Como é que se mantém os estímulos competitivos para que não haja relaxamento ou excesso de confiança quando os resultados estão a ser estes?

IV: Nos treinos não há espaço para esse facilitismo. O jogo é uma coisa e os treinos são outra. Todas queremos jogar, por isso o nível competitivo é alto. Não há facilitismo.

ZZ: É assim, mister?

DC: Tem sido. Nós próprios criámos competição interna, também para que haja aqui uma maior competitividade entre elas. Para cada posição temos mais que uma jogadora com qualidade para jogar. Se uma deslizar um bocadinho, sabe que está outra pronta para entrar. Em questão de jogo, é focarmo-nos em nós. O crescimento é para nós e temos de saber que precisamos de todos os jogos para ir crescendo individualmente e coletivamente.

Ler artigo completo