FLIP celebra escritor que revelou alma `carioca` e defendeu pescadores portugueses no Brasil

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Nome conhecido da toponímia de Lisboa, com uma praça em seu nome entre a Alameda e o Areeiro, João do Rio ficou conhecido pelas crónicas que retrataram as belezas e as mazelas do Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o século XX, em textos que permanecem atuais.

O escritor registou as transformações que aconteceram na antiga capital brasileira com a chegada do automóvel, do telefone e de outras modernidades da `belle époque`, antes das duas guerras mundiais, e desvendou parte da alma e dos sonhos da sociedade `carioca` que ambicionava criar uma `Paris tropical` no Brasil de há um século. 

Nascido no Rio de Janeiro, em agosto de 1881, filho de um pai branco e de uma mãe mulata, Paulo Barreto (João do Rio) tornou-se jornalista aos 16 anos, profissão que exerceu toda a vida.

É conhecido como um dos primeiros jornalistas brasileiros a praticar géneros como a reportagem e a entrevista, dentro dos padrões contemporâneos, expandindo a expressão à literatura com a publicação de livros como "As religiões no Rio", `best-seller` de 1906, "A Alma Encantada das Encantada das Ruas" (1908) e "Cinematógrafo" (1908), reunindo crónicas que escreveu nos jornais `cariocas`.

No jornal A Pátria, que fundou em 1920, e numa conferência realizada em Lisboa na mesma época, João do Rio defendeu uma reaproximação cultural e económica do Brasil a Portugal, destoando da maioria dos seus contemporâneos que viam com desconfiança a permanência de uma certa influência portuguesa no país sul-americano.

"Nada me devem os portugueses por amar e defender portugueses, porque assim amo, venero e quero duas vezes a minha pátria", lê-se na praça de Lisboa com o nome do autor `carioca`, que fundou a revista luso-brasileira Atlântica, em 1915, com o escritor português João de Barros.

Conhecido por ter uma personalidade polémica e uma presença marcante, João do Rio usava roupas extravagantes e era reconhecido por todos quando circulava nas favelas e nas altas rodas da sociedade `carioca`. Foi o mais jovem membro eleito da Academia Brasileira de Letras, em 1910, quando completou 29 anos. João do Rio também foi membro da Academia de Ciências de Lisboa.

O autor não passou despercebido no momento da morte, aos 39 anos, em junho de 1921. Sofreu um ataque cardíaco dentro de um táxi quando foi alvo de uma campanha de difamação por defender pescadores portugueses da Póvoa de Varzim que viviam no Brasil. O seu funeral reuniu milhares de pessoas, segundo o seu biógrafo, João Carlos Rodrigues, autor de "João do Rio, uma biografia" (1996).

Em entrevista à Lusa, Rodrigues explicou que o fascínio de João do Rio por Portugal começou com a sua primeira viagem à Europa, em 1910.

"Desembarcou em Lisboa para ir para Paris e pretendia ficar só dois dias em Portugal, mas ficou duas semanas. Ele se apaixonou por Lisboa. Na segunda viagem, que acho que ocorreu em 1915, viu a chamada intentona [do Movimento das Espadas]. Então, ele que também ficaria em Portugal por poucos dias naquela viagem, acabou permanecendo mais tempo e cobrindo esse evento como jornalista", contou o biógrafo.

O especialista lembrou dois livros de João do Rio lançados em Portugal: a recolha de "Fados, Canções e Danças de Portugal" (1909), que inclui partituras, e "Portugal d`agora" (1911), sobre o país. 

"Ele realmente gostou muito de Portugal. Inclusive, no fim da vida, pretendia ser embaixador do Brasil em Portugal", afirmou o biógrafo, que também recordou antigas chancelas portuguesas que editaram João do Rio, como Aillaud-Bertrand, Chardron e Lello & Irmão, onde surgiram títulos como "Adiante!" (1919) e "Os Dias Passam" (1912).

Sobre os pescadores da Póvoa de Varzim que trabalhavam no litoral do Brasil, Rodrigues recordou como João do Rio os defendeu publicamente contra a Marinha que os obrigava a adotar a cidadania brasileira, imposição a que se opunham. João do Rio acabou por ser considerado um agente português, e chegou a ser agredido por oficiais da Marinha, no Largo da Carioca.

"Quase todos os pescadores que trabalhavam no Brasil eram portugueses, mas houve uma campanha da Marinha, em 1920, para naturalizar esses pescadores - não podiam ser estrangeiros. João do Rio os defendeu no jornal dele. Isso é o que causa, na verdade, a morte dele porque passou a ser perseguido e os portugueses reagiram a essa naturalização forçada. Quase todos os pescadores eram da Póvoa e eram chamados de poveiros."

A defesa dos pescadores rendeu a João do Rio várias homenagens em Portugal. Além da praça em Lisboa, também está presente na Praça dos Poveiros, no Porto. Na Póvoa de Varzim, na Avenida do Repatriamento dos Poveiros, a par da memória do escritor, é recordada a sua participação nesse episódio histórico de 1920-1921.

Após morte de João do Rio, a sua biblioteca particular foi doada ao Real Gabinete Português de Leitura, instituição cultural luso-brasileira sediada no Rio de Janeiro.

A importância de João do Rio para o jornalismo e a literatura é também sublinhada por João Rodrigues ao recordar o seu papel pioneiro, no começo do século passado, na modernização da imprensa no Brasil, principalmente inspirado nos jornais franceses.

"A reportagem, a entrevista, todas essas novidades foram introduzidas no Rio de Janeiro, no Jornal do Brasil e na Gazeta de Notícias, onde João do Rio trabalhou. Ele, desde muito jovem, fez reportagens que marcaram a época, porque entrevistou uma parte da população que ninguém levava em conta. Foi fazer reportagem sobre o Candomblé [religião brasileira de matriz africana], foi o primeiro repórter a subir a uma favela e foi às prisões entrevistar os presos", explicou o especialista.

"Como escritor, João do Rio fez uma fusão da reportagem com a literatura e transformou a crónica, que no Brasil era uma coisa muito literária, um género que tratava de temas etéreos, mas que por influência dele tratou também de assuntos populares e quotidianos sem perder o estilo literário", concluiu.

A Biblioteca Nacional de Portugal apresenta perto de dezena e meia de títulos do escritor publicados por editoras portuguesas, incluindo "Cinematógrafo", pela antiga Chardron (1908). De publicação recente contam-se "O Fado" (2013), pela Apenas Livros, e as reedições de "A Alma Encantadora das Ruas" (2018), da Glaciar, com a Academia Brasileira de Letras, e de "Portugal d`agora" (2020), pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa, com a Unesp - Universidade Estadual Paulista.

A FLIP, maior evento literário do Brasil, tem início hoje, em Paraty, e termina no domingo. Entre os escritores da programação principal está a portuguesa Ana Margarida de Carvalho, a autora premiada de "Que Importa a Fúria do Mar" e "Não Se Pode Morar nos Olhos de Um Gato".

Haverá também em Paraty uma série de encontros com o autor português José Luís Peixoto, homenageado no espaço Portugal: Livros e Sabores, onde acontecerão `bate-papos` literários e apresentações de menus inspirados em livros, por `chefs` portugueses e brasileiros.

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