Funchal Jazz’24 — Dia 3: um saxofonista, um pianista, um contrabaixista e um baterista entram num bar…

3 meses atrás 116

Três da manhã, mais coisa menos coisa, e no minúsculo palco do Qasbah juntaram-se quatro gigantes: Ricardo Toscano foi o primeiro a chegar e logo tratou de arregimentar para o seu lado os três músicos que umas horas antes secundaram no palco do Parque de Santa Catarina o saxofonista Miguel ZenonLuis Perdomo, pianista, Hans Glawishnig, contrabaixista, e Henry Cole, baterista. Pelo palco circulava também o guitarrista Nuno Ferreira, um dos motores das jam sessions que desde quinta-feira têm acontecido naquele conhecido espaço noturno da capital madeirense, espécie de suplemento vitamínico para quem possa querer um pouco mais após os concertos do programa oficial do Funchal Jazz. E pronto, as leis da física impuseram-se e a explosão foi inevitável, como sempre acontece quando se cruzam componentes deste calibre. 

Perdomo é uma fera autêntica, dono de uma mão direita inventiva e ultra-funky, sempre pronta a disparar certeiros ganchos melódicos na direcção dos companheiros. E, claro, a secção rítmica Glawishnig/Cole é uma unidade coesa, telepaticamente comunicante e preparada para todo-o-terreno graças à sua tracção integral, swingante até mais não. À sua frente, Toscano não facilitou e puxou do seu bem conhecido A-game e avançou a direito por uns quantos standards como se não fizesse mais nada na vida. Ferreira, de olhos revirados, completamente imerso na música, também se juntou à festa e o público, irremediavelmente hipnotizado pelas chispas que se soltavam do palco, fez o que lhe competia: aplaudiu cada um dos solos com aquele tipo de entusiasmo que energiza os artistas. Os sorrisos no final da noite, quando o relógio já há muito tinha deixado as quatro da madrugada para trás, eram bem indicativos do que ali tinha acontecido — uma sessão de jazz à séria e sem m*rdas.

À hora a que chegámos ao Qasbah ainda deu para ver uma amostra de futuro quando o jovem pianista Hugo Lobo se sentou atrás do Nordlead e, com João Ribeiro (bateria), Francisco Gomes (bateria), Emanuel Inácio (contrabaixo) e Nuno Ferreira (guitarra), outros músicos da mesma criação, demonstrou que há por aqui muita matéria digna da máxima atenção — ocasiões como esta são uma espécie de vislumbres do que está para vir e certamente que daqui a alguns anos muitas pessoas dirão sobre alguns destes músicos “bem me lembro de o ter ouvido no Qasbah”. Vale uma aposta?

A noite começou, no entanto, de forma bem diferente quando os “manos da casa”, os guitarristas André e Bruno Santos, pegaram, em primeiro lugar, em cordofones típicos da Madeira, a braguinha e o rajão (a viola de arame também foi usada mais adiante), e, com a Orquestra de Jazz do Funchal dirigida pelo maestro Pedro Moreira começaram por evocar a particular alma local, incluindo logo no início da sua prestação até uma versão do “hino” “Noites da Madeira”, transportando-nos para outro tempo, quase fazendo-nos acreditar que em vez do relvado do parque cheio de cadeiras tinham pela frente um salão de baile e muitos casais em vestes de gala.

A orquestra fez-se então de quatro trompetes — Alexandre Andrade, Pedro Ferreira, Sérgio Couto e Inês Gouveia —, outros tantos trombones — Francisco Pestana, Ricardo Sousa, Maikol Rodrigues e Pedro Pinto —, cinco saxofones — Francisco Andrade, Tomás Noronha, Vitor Fernandes, Francisco Aguilar e Miguel Dantas — e ainda Emanuel Inácio no contrabaixo e Francisco Coelho na bateria. Com a condução segura, elegante e fluída de Pedro Moreira, aquela frente unida de sopros executou sem mácula arranjos com diferentes assinaturas, incluindo alguns dos próprios manos Santos, swingando, bailando e até rockando quando a música pediu. Foi-se da Madeira a Nova Orleães num instantinho, de “Stardust” a “Rosa” ou “Flor do Amor” (peças que se encontram no Vol. 3 da discografia do duo) e daí ao belíssimo “Nem Tudo é o que Parece” (do Vol. 2) com voz gravada do enorme José Tolentino de Mendonça a dizer um poema escrito para Lourdes Castro. Um momento emocional e tocante de um concerto que também foi capaz de ser arrebatador, como quando a propulsão da jovem secção rítmica de Emanuel Inácio e Francisco Coelho ajudou André e Bruno Santos, com as semi-acústicas bem oleadas, a rockarem como se este fosse um outro tipo de festival. De uma elegância assinalável, com pleno bom gosto, o encontro da fraternal dupla guitarrística com a Orquestra de Jazz do Funchal foi — admita-se deste lado — uma bela surpresa e não deveria ter apenas esta apresentação. Merece bem circular e ir a outros palcos deste país.



Depois, a fechar a noite no Parque de Santa Catarina, Miguel Zenon, com os já mencionados Luis Perdomo, Hans Glawishnig e Henry Cole, voltou a demostrar porque é que é um dos altoistas de elite no vasto universo do jazz. Capaz de equilibrar com total pertinência as suas raízes porto-riquenhas, por um lado, a sua mais ampla latinidade, por outro, e, pois claro, os seus fundos recursos jazzísticos, Zenon é permanente fonte de maravilhamento na forma como estrutura o seu discurso, pleno de elegância melódica e de um lirismo imenso e até comovente. O que não significa que não haja igualmente músculo e força telúrica no seu saxofonismo, com um sentido harmónico de incrível precisão, sempre em busca da surpresa que nos faz dizer para dentro “ele fez mesmo isto?”. As peças que o quarteto executa são o resultado de uma vasta rodagem e percebe-se bem que a música é gizada ao pormenor ainda que possa soar solta e dinâmica. Claro que os quatro músicos são improvisadores natos, sabedores da arte da surpresa, mestres absolutos das suas respectivas ferramentas: Cole é um polirritmista consumado, estudante das claves que mais swingam, Glawishnig parece discreto, mas as suas linhas são o fio invisível que liga tudo e quando Perdomo sola, Zenon afasta-se porque entende que a imensidão da sua arte merece foco total das atenções do público. Mas Miguel Zenon comanda mesmo e o trio atrás de si sabe muito bem que está ali para o empurrar até às estrelas. Com peças que puxam pelos salseros que se calhar nenhuma das pessoas presentes sabia ter dentro de si, como “Bendicion” ou “En La Soledad”, um êxito na voz de Tito Rodrigues, como Zenon faz questão de lembrar, o concerto do quarteto de Miguel Zenon confirma o que, um par de dias antes, durante um almoço, dizia Bill Charlap: “O jazz pode ter nascido na América, mas é do mundo”. Verdade.

Uma vez mais, elogio firme para o som de luxo e para a realização dos conteúdos vídeo projectados nos ecrãs gigantes que de facto enaltecem o que os músicos fazem em palco: os planos aproximados dos rostos dos músicos permitem entender o lado emocional da performance e os zooms nas mãos e pés mostram os detalhes tecnicistas de cada um deles, o que é detalhe precioso e merecedor de aplauso.

O Funchal Jazz chega hoje ao final com apresentação pelas 21h30 do grupo de Joshua Redman com a cantora Gabrielle Cavassa — chave de ouro, certamente, para fechar uma edição memorável deste Funchal Jazz (amanhã o ReB dará conta desse concerto). Para o ano, todos esperamos, haverá mais.


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