Fusões, guerras napoleónicas e o Benfica de 66: «A Red Bull só não compra corações»

3 meses atrás 83

A árvore genealógica do futebol em Leipzig tem a complexidade de uma linhagem da Guerra dos Tronos. E não faltam traições para lhe intrincar o argumento.  

O zerozero está na cidade fundadora do futebol alemão, a acompanhar a estreia de Portugal no Euro24, e o convite para visitar o Bruno Plache Stadion é irrecusável. Berço da DFB, a federação alemã, logo em 1900, Leipzig tem também o primeiro clube campeão nacional. 

O VFB Leipzig ostenta essa honra no palmarés, mas a penúria do pós-guerra atirou-o para uma confusão de designações e redesignações, com quatro alterações na identidade até se estabilizar no emblema atual: FC Lokomotiv Leipzig, o Loko, proprietário do estádio visitado.

É uma viagem a um futebol popular, de marcas bem cravadas na pele. Rodeado por bosques verdejantes, a casa do Loko é um verdadeiro museu ao ar livre. Um jornalista português por estas bandas, tem a conotação de uma evento extraterrestre. Um happening à X-Files. 

Da Augustplatz entramos no tram número 15, o trajeto dura 20 minutos. À saída, olhamos em volta e o ar é o mesmo do filme Adeus, Lenine. Outras vidas.

O CEO Toni Wachsmuth e os diretores Christian Meiner e Alexander Voigt fazem as honras da casa. Uma velha locomotiva, atrás das bilheteiras típicas dos anos 80, oferece um ar encantatório às redondezas. 

«Está a ver a bancada central? Tem 103 anos e ainda se aguenta», dizem os nossos anfitriões, evidentemente orgulhosos. 

Em frente ergue-se a entrada para o estádio principal, uma vereda ampla, dominada pelo azul e o amarelo. Por coincidência, este é o 'dia um' da época 24/25 de Loko.   

 A refundação obrigou a equipa a iniciar o percurso no 11º escalão, mas a progressão tem sido notória e em 23/24 competiram na Regionalliga Nordost, a 4ª divisão germânica. Acabaram a época no décimo lugar e com uma média de espetadores de cinco mil pessoas/jogo. 

«Aqui temos o futebol puro, a salvo do capitalismo e das injeções de capital contaminado», referem-nos, naturalmente em indireta referência aos vizinhos famosos do lado norte da cidade, o Red Bull Leipzig. 

Além do Loko, este quarto escalão tem ainda o Chemie Leipzig em competição.

«Há uma rivalidade forte com eles, mas também respeito. Os da Red Bull? Pagaram para comprar pequeno clube [SSV Markranstädt] e permitem à cidade ter jogos da Liga dos Campeões. Mas o verdadeiro dérbi ainda é o Loko-Chemie. Eles só não conseguem comprar o coração das pessoas.» 

O portão principal do Bruno Plache Stadion @zerozero - Pedro Cunha

«O Benfica do Eusébio lembra-se bem de nós»

O Lokomotiv está em plena celebração dos 125 anos. É uma vida atribulada para este descendente do VFB Leipzig, de avanços e recuos, de problemas sociais também. O Loko é historicamente ligado à burguesia e à direita política, enquanto o Chemie perfila o espetro oposto, de esquerda. 

Por demasiados anos, os clubes permitiram a infiltração de forças extremistas, hooligans, cabeças rapadas, neonazis e radicais antifas. Não deu bom resultado. A situação sossegou recentemente, também por intervenção estatal. Já se respira melhor no Bruno Plache.  

E fala-se de futebol, do bom futebol. 

A pequena locomotiva-símbolo @zerozero - Pedro Cunha

«Eliminámos o Benfica do grande Eusébio em 66/67, sabia? O jogo foi no Zentralstadion [3-1 para os alemães], onde está agora a Red Bull Arena. Eles ainda se devem lembrar bem de nós», continuam os representantes do Lokomotive, um tesouro escondido na zona sul de Leipzig. 

«Respira-se um ar diferente, é verdade. Poucos sabem, mas o grande Lothar Matthaus vestiu a nossa camisola num jogo da taça, já no final da carreira dele. E está a ver aquela torre? É um monumento que assinala a vitória das nossas tropas sobre as forças do Napoleão Bonaparte.»

O retrato do Loko é o espelho da sociedade germânica. Até à reunificação das Alemanhas [RFA e RDA], o nível do futebol no lado oriental do Muro tem muito para contar. A seleção de futebol participa no Mundial de 1974 e coleciona medalhas olímpicas: ouro em 1976, prata em 1980, bronze em 1964 e 1972. 

Mesmo a nível de clubes, o Loko chega à final da Taça das Taças em 1987 - 1-0 para o Ajax, golo de Marco van Basten

A queda do Muro, símbolo do fim da repressão no lado oriental, tem efeitos perversos nesse futebol. A Bundesliga absorve apenas o Dynamo Dresden e o Hansa Rostock num primeiro momento. A crise dura até à mediática ascensão do Red Bull Leipzig, representante do capitalismo global. 

A equipa finalista da Taça das Taças de 1987 @zerozero - Pedro Cunha

Um casino, um mini-estádio coberto e outros tesourinhos

No final da visita, a delegação do Lokomotive leva-nos pelo túnel de acesso ao relvado. Um futebolista de 1,90 metros não cabe ali de pé. São 50 metros asfixiantes, escuros e, paradoxalmente, maravilhosos. 

É o resumo, essencialmente, desta dicotomia em Leipzig. O modernismo da Red Bull e o marxismo teimoso dos pequenos emblemas.  

«É a era deles, desse futebol endinheirado», aceitam os representantes do Loko.

As paredes do Loko são obras de arte @zerozero - Pedro Cunha

«Mas, se andar um pouco pela cidade, percebe que não há representações de amor por esse clube. Há mais pinturas e símbolos do Loko e do Chemie», advertem. 

Antes do adeus, o zerozero espreita o pequeno casino do Loko, na parte escondida da principal bancada, e ainda os escritórios, a zona de convívio para os adeptos e o mini-estádio coberto, «usado no inverno por vários clubes e por escolas». 

Entre um abraço e um sentido agradecimento pela visita, a certeza de que este Lokomotive quer voltar ao futebol nacional. O povo não o larga e o povo tem muita força. 

«Por eles, sim, acreditamos na subida de divisão. E pode ser que na Taça da Alemanha joguemos contra os riquinhos da Red Bull.»

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