General D: “Quis desenvolver um hip hop ligado a África porque estava à procura de mim”

2 meses atrás 117

Foi há 30 anos que, pela primeira vez, um rapper lançou um single em Portugal. O seu nome era General D e ficou conhecido por muitos como um dos pais do hip hop nacional, tendo sido o primeiro MC a assinar um contrato com uma editora e a lançar um disco em nome próprio.

“Portukkkal é um Erro” foi o tal single provocatório, repleto de intervenção política e social, nada comum para um país conservador, apenas 20 anos após a revolução do 25 de Abril, que não estava habituado a que um jovem negro, de uma segunda geração de imigrantes, tivesse uma voz tão reinvindicativa e assertiva, abalando o status quo e fazendo frente a inúmeros preceitos.

No mesmo ano em que se assinalam três décadas desde esse momento, no âmbito da colecção Sempre, a FNAC reeditou pela primeira vez em vinil o disco de estreia de General D, editado logo no ano seguinte, em 1995, Pé na Tchôn, Karapinha na Céu, produzido com a banda que acompanhava o rapper, os Karapinhas. 

Formados pelo baixista Tozé, o baterista NDO, o guitarrista D’Jon Santos, o teclista João Gomes e o percussionista Galiano, aliavam uma roupagem acústica e africana a uma produção hip hop, criando um híbrido muito próprio que assentava que nem uma luva com as letras pan-africanistas e revolucionárias de um rapper em busca de se reconciliar com as suas raízes e de expor a opressão que sentia na sociedade portuguesa.

Foi com base nestes dois marcos que o Rimas e Batidas marcou uma entrevista em Cacilhas com General D, aproveitando uma visita do retirado (e veterano) rapper a Portugal ele que está radicado em Londres há muitos anos.



Estamos em Cacilhas, mas nasceste em Moçambique. Resume-nos o teu contexto geográfico só para nos situarmos.

Nasci em Moçambique, passámos por Angola, onde estivemos dois anos e onde a minha irmã nasceu… Depois viemos para Portugal com os meus pais. Chegando cá, vivemos na Baixa da Banheira, onde passei a minha infância. De lá vim para o Miratejo, e depois vivi em Almada. Essa foi a minha adolescência. Mais tarde, em adulto, fui morar para Lisboa.

Em que escolas andaste aqui?

Estive na Escola Secundária Anselmo de Andrade, fiz a primária no Miratejo. Estive também numa escola na Cova da Piedade. Naquela altura, eu e as pessoas que começaram ao mesmo tempo do que eu, como aqueles que se tornariam os Líderes da Nova Mensagem, não andávamos na mesma escola. Mas o que nos aproximou foram as rimas… Este era um movimento que ainda estava a surgir. Ainda era uma coisa muito estranha para grande parte das pessoas. Havia grupos. Infelizmente, existiam os skinheads. Mas também os rockabillys, os zulus, os pescadores… A coisa estava mais ou menos estratificada. Mais do que a música, era o tipo de linguagem e as coisas com que as pessoas se identificavam. E nós identificávamo-nos com uma determinada aparência, um determinado estilo de vida, de roupa e de estar, os penteados… Isso aproximou-nos. Encontrámos ali um denominador comum e começámos a interagir. O local de interacção era muito o Miratejo. Era onde nos juntávamos, fazíamos rimas, combates… Na altura, uma pessoa que foi muito influente e que, infelizmente, o seu nome perdeu-se na história, foi o Nelson. Era um mano que vivia entre França e Portugal, e quando vinha trazia cassetes. Nós seguíamo-lo muito porque ele já tinha o look e a informação desta coisa nova que estava a surgir. Depois, cada um acabou por seguir o seu caminho. E acabámos por nos dividir realmente em grupos. Havia os One Equal, eu criei os Black Company… Nem eram só um grupo de música; aliás, a principal função era defendermo-nos dos skinheads. Na altura, eles estavam muito presentes e nós criámos uma força para nos defendermos. Depois, começámos a fazer rimas, era um grupo alargado e foi-se tornando cada vez mais pequeno.

Até ficar aquela formação que ficou conhecida.

Exactamente. Até eu sair e seguir o meu caminho. 

E esse colectivo alargado de que falas, que antecede os One Equal, que depois seriam os Líderes da Nova Mensagem; e os Black Company; e outros grupos; eram os B-Boys Boxers. 

Éramos todos B-Boys Boxers. Writers, b-boys, rappers… Também havia uma identificação através da roupa, a maneira como nos vestíamos. Na adolescência, a forma como te vestes determina com que grupo te identificas. O pessoal usava os símbolos da Volkswagen ao peito, o Cristiano [Jaws-T] fazia à mão o símbolo da Zulu Nation. Com o tempo, os B-Boys Boxers desdobraram-se nos One Equal, em Black Company, em grupos mais pequenos, e cada um seguiu a sua carreira, da forma como se queriam expressar. Em primeiro lugar, todos eram hip hop. Mas depois havia especificidades. 

Quão difícil era, na altura, arranjar roupas para vocês se identificarem com a cultura hip hop?

Era super difícil. Eu nunca fui muito de ter assim roupas… Lembro-me de que havia uma altura em que estavam na moda uns ténis Adidas, eu não tinha nada disso. Nem tinha aquele cabelo assim [emula com as mãos um corte fade]. Às vezes até era um bocado gozado por não ter esse tipo de estilo. E eu fazia tudo para me integrar. Mas muito rapidamente apercebi-me de que não queria fazer esse esforço, que queria lutar por aquilo que sou e seguir o meu próprio caminho. E fui para o lado mais africano.

O que também deve ter sido estranho para as pessoas do movimento, quando começaste a usar trajes tradicionais africanos.

Para eles era super estranho. Era o homie deles, o camarada… Como é? Mas se formos mesmo às raízes do rap, foi algo que começou com os griots, da África ocidental. Até mesmo no sul. É ali que começa o que chamam hoje rap. As guerras de palavras, contar histórias e tradições, deixar nomes… Na altura, os griots eram pagos por pessoas com mais dinheiro para contarem as suas histórias e imortalizarem-nos através de rimas. E a kora, no início, é o que é hoje a mesa de mistura ou o sampler. Dali os escravos levaram essa tradição para a Jamaica. Lá misturou-se.

Com a cultura do soundsystem.

Exactamente, e os griots estavam lá só para contar algumas histórias, para fazer a transição entre um disco e outro, faziam pequenas rimas. E as festas foram acontecendo assim, até que os griots se foram tornando mais importantes do que as próprias misturas. Daí a tradição ter ido para os EUA e, lá, foi a vez do Afrika Bambaataa e por aí em diante. Esse é o caminho. Portanto, eu estava no caminho. Não só de África, mas da origem do rap.

Lembras-te do primeiro contacto que tiveste com rap? Foi através do Nelson?

Sim, lembro-me. Eu estava na Anselmo de Andrade e geria a componente de vídeo. Já havia pessoas a fazer graffiti, eu olhava para o que estava a acontecer e identificava-me bastante com aquilo. E achava que era uma coisa que deveria ser puxada para cima. Então, propus fazermos um vídeo através dos meios que a escola oferecia. E na altura nem tinha muito a ambição de ser MC. Queria ser útil para o movimento. Fizemos esse vídeo entre nós…

O objectivo era dar uma imagem àquilo que já estava a acontecer?

Era tornar real, tornar a coisa mais concreta. O que nós queríamos era expor aquilo que tínhamos para dizer. A nossa arte, as rimas, aquilo que sentíamos. Todos nós sonhávamos em ter um palco, em fazer vídeos, porque era isso que víamos na televisão. Era isso que os nossos artistas favoritos na altura faziam, então era isso que queríamos fazer também. Ainda que, para o resto do mundo, fosse uma coisa de loucos. Chamavam-nos loucos. Mas era aquilo que queríamos fazer. Nunca sabendo ou nunca sequer imaginando que a coisa iria chegar até aqui, que estávamos a desenhar uma história. Só queríamos estar presentes naquele momento. Fizemos essas pequenas coisas e, musicalmente, cada um foi-se identificando mais com o caminho que queria seguir. Na altura, apercebi-me de que queria estar muito ligado a uma linha africana. Queria desenvolver um hip hop que fosse ligado a África, aos ritmos africanos, porque era isso de que estava à procura. Estava à procura de mim. E procurar-me passava por descobrir e identificar-me e estar perto das minhas raízes. O que para mim foi ainda mais difícil… O rap na altura já era uma revolução. E eu trouxe ainda mais uma revolução para dentro da revolução.

Aquilo que te conquistou logo ao início, quando começaste a fazer parte deste movimento ou a descobrires o rap, foi a intervenção social e política? Muitas vezes apontas os Public Enemy como a tua principal referência.

Os Public Enemy, o KRS-One, The Last Poets… Eu via muita coisa a acontecer. E ainda por cima cresci num lugar… Por exemplo, na escola onde andava, a determinada altura eu e a minha irmã éramos os únicos negros. E naquelas idades, em que estamos à procura de identificação, à procura de nós próprios, estávamos expostos a uma cultura com que nem sempre nos identificávamos. E a conversa sobre o racismo, sobre os negros, sobre a nossa presença aqui… Era uma conversa que ainda estava muito verde. Então, ao encontrar o rap, identifiquei-me com essa conversa. Porque nós tínhamos a mesma conversa que acontecia em Londres ou nos Estados Unidos, só que lá estava numa fase muito mais avançada e com um discurso muito mais maduro. Como aqui não havia referências, procurei nesse diálogo uma referência para mim próprio. Então decidi que era mesmo isto que queria fazer, que me ajudava e se calhar outras pessoas também se poderiam identificar e assim criar um discurso. Esse foi o objectivo principal de entrar no hip hop.

Foi essa necessidade que sentiste que te fez passar da pessoa que queria contribuir para o movimento com os vídeos para de repente estares à frente do microfone?

Exactamente. 

Houve alguma coisa específica que começaste por fazer nesse sentido? Suponho que tenham sido rimas de rua.

Sim, e acho que um dos meus atributos ou características é que gosto de ir para a frente e começar a fazer coisas. Então comecei a fazer o vídeo, depois fiz um primeiro concerto de hip hop… O primeiro foi num clube que havia em Cacilhas, onde eu fazia atletismo, e fizemos uma coisa pequena. Fui eu que organizei, mas aquilo deu em porrada. Estava lá o MC Nilton… Havia manos que vieram de Lisboa para dançar breakdance. Houve pessoal que veio do Algarve. Tenho na memória o Nilton, com o cabelo grande, a separar a porrada.

Como é que na altura tinhas contacto com pessoas que viviam em sítios distantes?

Desses detalhes já não me lembro com exactidão… Mas as pessoas acabavam por comunicar, porque era um grupo restrito. Não éramos muitos. E nós queríamos saber uns dos outros. Porque cada um de nós era a razão para que o outro não estivesse louco. Mesmo que tivéssemos atritos, no fundo tínhamos sempre de estar juntos. Eles eram o motivo de eu estar são, a minha prova de sanidade, porque eu não era o único. Então acabávamos por saber o que estava a acontecer, mesmo que fosse uma fase super verde. E também existiam as discotecas. Na Costa da Caparica havia o Visage. E a comunicação era muito feita através das discotecas. 

Tu frequentavas as festas que já começavam a passar algum rap?

Eu não era muito de discotecas, mas a palavra passava e os outros manos iam e falavam sobre o que estava a acontecer. E isso acabou por se saber e o pessoal apareceu aqui.

Nesse evento em Cacilhas também actuaste?

Não cheguei a actuar, por causa da porrada [risos].

Mas já tinhas tocado antes, noutras ocasiões?

Tinha tido umas experiências. Já tínhamos feito umas coisinhas em cima das mesas de uma escola, estávamos no início. Depois, tivemos este evento em Cacilhas. E depois houve o festival da Incrível Almadense.

Esse foi mais a sério.

Foi. E antes já tinha feito alguns vídeos, foi quando comecei a procurar pessoas externas ao movimento, pessoas da comunicação, e descobri uma companhia que na altura fazia muita coisa na área da música de intervenção e do rock. Faziam o Pop-Off.



O programa que gravou convosco uma sessão de improvisos no Miratejo.

Exactamente, o Pop-Off foi muito importante. A minha missão era tentar explicar aos manos todos que aquilo que estávamos a fazer poderia atingir um nível nacional. Eu dizia que era possível. E as pessoas que faziam esses programas também estavam curiosas, porque começavam a ouvir falar. “Será que em Portugal isto também existe? Quem é que está a fazer?” O Público e a Blitz também manifestaram interesse. Foram os meios de comunicação que fizeram com que deixasse de ser uma coisa só de rua e passasse a ter uma maior divulgação. Isso deu-nos um ímpeto. Começámos a pensar: “Ok, se calhar isto é possível, tem pernas para andar.” Na Incrível Almadense já apareceram bandas semi-profissionais, com os Black Company, Family, Líderes da Nova Mensagem… Vieram também os African Power, da Amadora. E o mano do Algarve, o Johnny Def, que depois entrou no meu primeiro álbum. Vieram dançarinos também. Aí correu tudo bem.

E essa fase é muito interessante porque, como dizias, tinhas uma identidade muito ligada às raízes africanas, mas não eras o único. Lá está, African Power… Não quer dizer que fossem todos, mas existia essa lógica pan-africanista, de recuperar essas raízes, de usar esses elementos de forma identitária. 

Sem dúvida. 

Isso até é algo que depois desapareceu em grande parte do rap em Portugal. Era essa afirmação de “nós existimos, temos as nossas raízes, é isto que nos diferencia e que não nos torna réplicas daquilo que se faz na América”?

Havia grupos que sentiam mais essa necessidade do que outros. Eu claramente sentia, African Power também, mas a maior parte dos grupos queriam representar-se através de um estilo mais urbano, que se identificasse mais com o que estava a acontecer nos EUA. Daí também a minha separação em relação ao que estava a acontecer em geral. De repente senti que o meu caminho era um pouco diferente, mesmo que estivesse dentro do movimento. Queria ter uma banda, que mais tarde chamámos de Karapinhas mas essa banda já existia, já tocavam juntos, e propus que começássemos a ensaiar coisas. E depois ficou General D e os Karapinhas. Eles deram-me aquela afro-musicalidade que eu procurava. Hoje é mais ou menos os afrobeats, mas nós já o fazíamos há 30 anos. E não era só eu, havia outros grupos internacionalmente que o faziam. Era onde eu me sentia mais confortável. Identificava-me com o hip hop e o rap, com a música urbana, mas para fazer sentia-me mais confortável em estar com uma banda em palco, com congas, baixo, com tudo. Era o caminho que queria seguir e acabei por encontrar as pessoas que me ajudaram a produzir essa música.

Recuando um bocadinho, para abordar outro ponto muito interessante em que tocaste, da questão da presença skinhead aqui na Margem Sul, da necessidade de união entre os jovens afrodescendentes e das comunidades imigrantes, quase como movimento de resistência… Como era essa realidade na altura para jovens negros que viviam aqui e que não tinham essas referências? Numa sociedade que estava muito longe de ter um diálogo aberto sobre racismo, opressão, o pós-colonialismo. 

Muita gente vivia na opressão sem saber. E esse é o grande triunfo do opressor: que o oprimido não saiba que está a ser oprimido. Só consegues perceber que realmente estás numa situação de opressão quando começas a ouvir informação de outros lados. E nem toda a gente tem essa informação, nem essa capacidade de desistir de uma certa zona de conforto e ir para um lugar escuro, de desconhecimento. Esse é o caminho da liberdade. Por isso é que é tão difícil seguir o caminho da liberdade. Tu não sabes, é uma incógnita. Na opressão tu já sabes o que é. Até é difícil conversares e perceberes que queres sair dali. Nem toda a gente estava preparada para isso. Então, grande parte das pessoas vivia na submissão, sem reclamar porque não havia argumentação, não havia diálogo nesse sentido. As pessoas achavam: “Se é assim, é assim, não há nada a fazer.” E o que também é muito importante e dá essa mentalidade é que, quando os nossos pais vieram, ainda havia aquela falsa sensação de que estávamos aqui por favor. E que nos tínhamos de submeter e de esquecer as nossas línguas. Daí nunca ter sido muito encorajado a falar a minha língua, de Moçambique. Os cabo-verdianos têm outra realidade, falam muito mais crioulo. Mas no nosso caso nem tanto, tal como no caso dos angolanos. Tudo isso é um processo. Porque havia a sensação de que era um favor que a sociedade portuguesa nos estava a fazer. Portanto, havia essa mentalidade de que era bom estar quietinho. E quantas vezes eu não ouvia: “Não fales de política, não fales de nada disso.”

Havia uma lógica de não se ser incómodo.

Não ser incómodo, viver sem causar grandes ondas. Daí a conversa ainda estar super verde. Mas claro que há sempre um ou dois ou dez que são os inconformados. E acho que eu era um deles, até hoje.

E quando falamos disto podemos referir-nos a um sistema generalizado de opressão, de uma sociedade que é estruturalmente racista, mas quando falamos de skinheads criminosos que estão a agredir pessoas nas ruas, essa violência ainda é mais visível. É o expoente máximo desse radicalismo. E aí, qualquer pessoa que passasse por isso sentia, literalmente, na pele, essa opressão.

Exactamente. Os skinheads, na altura, eram a expressão máxima do que poderia acontecer. Mas não sei o que é pior. Não sei se é pior ser perseguido por skinheads ou não conseguires ter um emprego porque és preto. Ou não conseguires ter uma casa. Ou não teres acesso às coisas básicas da vida, à educação e à saúde. Até hoje, as pessoas de Cascais vivem mais tempo do que as pessoas da Buraca. Não há nada mais criminoso do que isso. Claro que há negros em Cascais e brancos na Buraca, é evidente. Mas a maioria… 

Sim, e isso é algo muito mais silencioso.

E para mim o grande problema é o silêncio. Mas claro que tenho muitas histórias. Lembro-me de que uma vez queríamos ir para o Bairro Alto, apareceram os skinheads e uns manos foram atirados ao rio. Estávamos todos em pânico, a gritar. No Bairro Alto, quantas vezes não fomos perseguidos pelos skinheads? Ou no barco, onde nos identificavam, e sofríamos ameaças. Uma vez o pessoal do hip hop juntou-se com o pessoal da CDU e fizemos aí umas rondas em Almada. Aqui estava muito presente. Na escola, na zona onde vivia, havia alguns que eram. No Bairro Alto também, e muitos iam daqui para lá. Era algo que estava muito presente.

Ao mesmo tempo, aqui também se provou que era terreno fértil para o hip hop se instalar e disseminar. Muitas pessoas imigrantes que se identificavam com o discurso e a estética de grupos como os Public Enemy, muitas pessoas portuguesas brancas mas pobres que tinham vindo do meio rural para trabalhar na indústria e que se identificavam com um discurso de esquerda. Olhando agora para trás, sentes que havia aqui um melting pot com as condições para o hip hop se instalar e depois se espalhar pelo país?

Sem dúvida. Há um motivo pelo qual foi aqui e essas são as razões, esse melting pot de pessoas que, no fundo, estavam numa situação de desvantagem e encontravam neste discurso uma forma de tentar mostrar outras formas de estar. Era mais ou menos o que acontecia no Bronx, onde estavam os latinos, os negros, os africanos que iam para os EUA… Também houve uma razão para a coisa ter tido mais força no Bronx. 

E o Miratejo, especificamente, tornou-se muito um símbolo desse início. E tu também viveste lá e, mesmo quando não moravas, frequentavas o bairro nos tais convívios de rua. O que é que achas que o Miratejo tinha ou tem para se ter tornado nesse ponto tão fulcral desta história?

Talvez porque o Miratejo, naquela altura, era um bairro novo. Era um bairro que esses imigrantes escolheram para viver. Eram umas torres novas que estavam a aparecer e acabaram por albergar esses diferentes tipos de gente pobre e inconformada. Acho que é por aí.



Este ano assinala-se o 30.º aniversário do teu primeiro single, “Portukkkal é um Erro”. Na altura, de certeza que provocou muitas ondas de choque, tendo em conta o quão o país não estava habituado ao teu tipo de discurso. Como foi para ti esse momento?

Foi super difícil e complicado. Eu não estava habituado ao ódio, dessa forma. Nem estava à espera dele. 

Porque tiveste muita exposição pública nesse momento.

Exactamente, e não estava à espera do ódio. Porque eu estava a querer fazer o bem. Mas achava que as coisas tinham que ser ditas. E o que eu queria era deitar as coisas cá para fora e explicar. Não tinha muito a intenção de mostrar soluções, mas sim mostrar exactamente o que estava a acontecer. E entendi que isso tinha de ser feito de forma crua, dura e objectiva. Já tínhamos muitos cantores a fazer coisas com uma linguagem mais soft e romântica, mas eu achava que não era tempo para isso. 

Porque nem esse passo estava feito, ninguém tinha levantado a voz para dizer:”Isto acontece aqui.”

Exactamente, esse single é muito isso. Mas a reacção foi… Lembro-me de o meu agente uma vez me dizer: “Mais de metade da indústria portuguesa não gosta de ti.” Os meus colegas! Nunca mais me esqueci disso. Eu era muito novo para poder absorver esse tipo de informação e de ódio. Porque o que eu queria era falar sobre aquilo que eu achava que era de direito. Não estava preparado para que isso se voltasse contra mim. Até vindo de pessoas do meu lado. 

Como é que sentias isso? Obviamente, hoje um músico recebe essas reacções através das redes sociais. É muito directo e instantâneo. Na altura era através de conversas à tua volta?

Sim, conversas, algumas coisas que lia… Era por aí. Claro que a informação não passava tão rapidamente. Nessa altura, acho que as pessoas da esquerda se identificavam e mostraram interesse em dar-me plataforma. Eu instalei-me nessa plataforma e houve essa possibilidade de me associar a um partido, o Movimento Política XXI. Mas também durou pouco, porque achei que não era por aí que eu queria seguir. Porque isso cria muitas dependências. O caminho da luta africana é outro.

E nessa altura já preparavas o álbum com os Karapinhas?

Depois do single, juntei-me com os Karapinhas e começámos a trabalhar no álbum. Eu já estava a trabalhar no disco e ainda estávamos a promover o single. Mas o álbum já tinha uma sonoridade diferente, aí já me tinha encontrado com a banda. Eles eram instrumentistas de um músico africano, eu lembro-me de ir ver um concerto deles, eram uma banda muito pequena. Eram o Tozé, o NDO, o D’Jon… Esses eram os principais, o núcleo. O João Gomes e o Galiano entraram depois, durante o processo do álbum. Mostrei-lhes o que fazia e perguntei-lhes se poderíamos dar uma roupagem mais acústica e afro. Aceitaram a proposta e a partir daí começámos a desenvolver toda uma linguagem musical à volta daquilo que já tinha. 

E já tinhas letras que depois encaixaste nos instrumentais que nasceram em jams? Ou foste escrevendo à medida que os instrumentais foram aparecendo?

Foi as duas coisas. Eu já tinha algumas letras, outras foram aparecendo. Por exemplo, acho que ainda não tinha escrito a “Black Magik Woman”. E outra coisa, que acho que acontece muito no hip hop ou pelo menos acontecia comigo… É que por vezes temos palavras ou uma frase ou um conceito. E como estávamos habituados a fazer batalhas, aí tens uma ideia e vais desenvolvendo a frase à medida que vai acontecendo. E eu tinha muitas frases na cabeça. Muitas ideias, muitos conceitos. Não tinha letras completas. E acho que isso até se nota no primeiro single, no “Portukkkal é um Erro”… Olhando agora, consigo perceber que são várias ideias dentro de um som.

Obviamente estavas a ser pioneiro. Foste o primeiro rapper em Portugal a lançar um disco em nome próprio, a gravar vídeos, a assinar um contrato com uma editora. Apesar de, por um lado, estares integrado no movimento; por outro também estavas a seguir um caminho muito próprio ligado a África e a uma musicalidade que acabou por não se reflectir na maior parte do panorama. Sentias que estavas na linha da frente, a desbravar terreno para todos?

É engraçado porque, na altura, não sentia isso. Estava a divertir-me, a sentir-me bem, queria fazer o que queria fazer. Lembro-me, por exemplo, de antes do primeiro single, quando estava a fazer o “Norte Sul” com o Tiago Lopes, passar um dia e uma noite inteira ali dentro no estúdio… E tinha os meus pais a ligar para o Tiago, a fazerem um monte de confusão à volta daquilo, a dizerem que eu estava perdido… Passei a noite toda a gravar e estava ali sem saber o que estava a acontecer. E estava a ir contra os meus pais. Eu só queria era fazer aquilo. Eu dizia à minha mãe: “Estou a fazer isto, quero fazer isto”. E ela dizia: “Vai mas é despejar o lixo”. Eu só estava a fazer porque gostava de fazer. Não tinha qualquer intenção. E porque me estava a ajudar a descobrir-me. Eu vivia um período super conflituoso comigo próprio, sem saber que tipo de cultura seguir. Não deixei que ninguém interferisse com o meu desenvolvimento. Era algo que já tinha acontecido no passado e daquela vez disse: “Ninguém vai interferir, nem o meu pai, nem tios, nem avós, ninguém. Vou fazer aquilo que acho que está certo.” Essa era a minha posição na música e foi assim que desenvolvi uma carreira. Era usar a minha voz através da música e juntar pessoas à minha volta para me ajudarem nesse processo. Eventualmente, outras pessoas acabaram por se identificar com aquilo.

Mas é interessante porque, como dizias, musicalmente o rap era um género muito estranho para a grande maioria das pessoas na altura. Então, desbravar terreno também passou por aí, mostrar que aquilo existia, que podia ir para os palcos, para os prémios de música… Nesse sentido também foi importante, mostrar que este género também fazia sentido cá neste contexto. Suponho que a altura em que mais tocaste foi depois do álbum.

Sem dúvida, a “Black Magik Woman” deu-me uma notoriedade maior e tive oportunidade de tocar bastante. Não só em Portugal, mas também fora, nomeadamente em França e Espanha. O disco foi mesmo editado em França também, e a EMI francesa estava bastante envolvida na altura.

Num circuito mais hip hop ou de músicas do mundo?

Era um circuito mais urbano mas acho que a razão pela qual me chamavam, e se interessaram pelo meu trabalho, é que eu trazia esta novidade. Porque a parte mais urbana, mais Public Enemy, eles já tinham muito disso. Mas o facto de eu aparecer com algo mais orgânico, fresh e diferente daquilo que eles estavam habituados a ouvir… Isso talvez lhes tenha chamado mais a atenção. E acho que foi por isso que comecei a dar passos lá fora e a ter muitos concertos. Durante muito tempo, até tinha mais concertos lá fora do que aqui. 

E essa é uma realidade muito diferente da maior parte das pessoas, da tua geração ou não, que fizeram ou fazem rap em Portugal. O ano do “Portukkkal é um Erro” é o mesmo da Rapública. Tu não entras na compilação porque, lá está, já estavas no teu próprio caminho?

Exactamente, mas também porque já estava ligado a uma editora, a EMI, e o Rapública foi lançado pela Sony… Portanto, já havia terceiros a entrar e a ter uma participação mais activa no que estava a acontecer. A partir daí, deixou de ser uma coisa de rua, nossa, e começou a ser negócio. Não tenho nada contra isso, é o que é, mas começaram a aparecer agentes, a ter uma influência e a dar uma direcção aos artistas, que podia ser boa ou má, dizer com quem se deviam juntar ou não, o que deviam ou não fazer… E tenho de dizer: muita gente pode não gostar de ouvir, mas isso coincidiu com o facto de determinadas bandas decidirem ir para um lugar musical mais festivo e deixar a parte de rua e da reivindicação, de falar da nossa realidade. Isso começou a ser tabu, porque pensavam eles que isso era incómodo e que não iria gerar vendas, concertos nem sucesso. Nessa altura, algumas bandas tiveram de tomar decisões sobre o lugar do panorama musical em que se iriam estabelecer. E aí é que as coisas se começaram realmente a diferenciar. 

E nessa altura, obviamente, precisavam de ter um contrato com uma editora para conseguirem lançar música, porque não havia outra maneira, só algum tempo depois é que as edições independentes no hip hop se tornaram possíveis. Mas, para ti, que tinhas esse lado político e social tão presente, como era essa relação? Porque havia uma certa dependência em relação ao mercado capitalista.

Havia e isso culminou com eu me afastar deles também. Chegou a uma altura em que percebi que o sistema que eu estava a criticar era o mesmo que me estava a apoiar. E isso dava-me telhados de vidro. Mais uma vez, achei que não era por aí. Mesmo que me tenham dado uma certa liberdade… Lá está, tu não podes ter uma certa liberdade. Isso não existe. Ou tens liberdade ou não tens. E há pessoas que se contentam em ter uma certa liberdade. A grande maioria das pessoas, mesmo as que vemos nas manifestações, não querem liberdade. Elas lutam por melhores condições na cadeia. Há uma grande diferença entre lutares pela liberdade e lutares por melhores condições na cadeia. E cheguei a uma altura em que não queria melhores condições, queria mesmo a liberdade…


Ler artigo completo