Geovany Quenda e o quarto que o colocou no rival: «O Benfica voltou com a palavra atrás»

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[artigo publicado originalmente a 16 de outubro de 2023]

«Ninguém para Geovany Quenda! O que vai fazer Geovany Quenda!», comentava, em êxtase, o relatador do canal 11, após a poesia em movimento protagonizada pelo jovem jogador.

Depois de uma simples intercetação a meio-campo, o avançado viu uma janela de oportunidade, onde ninguém contemplava sequer uma brecha: passou por um, dois, três, (...) por toda a defensiva marroquina (!) e assinou uma obra-prima com a camisola da Seleção das Quinas. Um autêntico tento Maradoniano.

O golo do atleta lusitano, pelos sub-17, deixou muita gente com o queixo caído, com muitos adeptos da modalidade a questionarem-se em uníssono: 'Quem é este rapaz?' O zerozero esteve à conversa com Basaúla Lemba, padrinho do jogador, para conhecer a história da joia leonina, bem como os motivos que o levaram a trocar o Benfica pelo o rival Sporting.

Basaúla foi, ele próprio, um craque dos relvados portugueses, figura maior dos excelentes Vitória SC, O Elvas e Estrela da Amadora nos anos 80 e 90. 

Capítulo 1: o menino «especial» e a insistência afetuosa

Corria o ano de 2016. Basaúla era Coordenador de Formação do Damaiense. O antigo médio tinha um vasto currículo no futebol português enquanto profissional, desde passagens no Vitória SC, no Belenenses, no Moreirense, entre outras formações dignas de registo.

Com tanta experiência, pouca coisa parecia impressionar o dirigente de 58 anos. Todavia, a primeira impressão do futebol de Geovany Quenda não o deixou indiferente: «No primeiro dia dele, eu vi que qualquer coisa não estava a bater certo [risos]. Fui falar imediatamente com o presidente e disse que tinha ali um atleta especial. Eu precisava dele no plantel.»

«A vinda do Geovany Quenda foi algo fora do normal. Um menino de oito anos, que nunca jogara futebol organizado, a fazer passes de pé esquerdo e direito, com extrema facilidade. Era ele que organizava as transições. Vi logo que este rapaz tinha um potencial extraordinário», acrescentou.

Basaúla tinha medo de perder o promissor atleta, portanto, teve de agir em conformidade: «Fui imediatamente a casa dele para falar com o tio. Amanhã ele poderia estar a fazer treinos noutro clube, até porque o sítio onde morava era mais perto do Estrela [da Amadora]. Acabei por entrar em contacto, via chamada telefónica, com o pai. Expliquei-lhe a situação e disse-lhe que não se tinha de preocupar com qualquer pagamento. Felizmente convenci-o.»

@FPF

Todavia, o processo para a inscrição do atleta era delicado. Quenda viera para Portugal proveniente da Guiné-Bissau, uma vez que o pai habitava em terras lusitanas e procurava agregar a família. Quando tudo parecia encaminhado, o azar bateu à porta. A empresa onde trabalhava o progenitor acabou por mudar para França. Com medo de não conseguir sustentar os filhos, o pai de Quenda foi obrigado a seguir para território gaulês.

Para o jovem conseguir disputar as respetivas competições nacionais era necessária uma procuração. O pai do jogador colocou o bem-estar da sua cria em primeiro lugar, apanhando, ainda na mesma semana, o voo para Lisboa. O acordo colocou o dirigente como tutor da criança, algo que fortaleceu a relação entre ambos.

«Eu era praticamente pai dele. Assumia as responsabilidades e tinha de acompanhá-lo no processo pessoal. O Geovany tornou-se meu filho: de manhã tinha de saber onde é que ele andava, controlar a situação na escola e averiguar se estava tudo a correr bem. Por exemplo, ele estava a estudar muito longe de casa e eu tive de arranjar maneira de ele ser transferido para mais perto. Ajustes que eram fundamentais na vida dele», referiu.

Capítulo 2: não tardou muito...

Acabou por não demorar muito até o menino chamar a atenção: «O escalão dele foi fazer um jogo particular antes de começar o campeonato. O Quenda rebentou com aquilo tudo [risos]. De repente, o presidente liga-me e diz: 'Basa, eu disse-te para não levares o miúdo. O Benfica e o Sporting já me ligaram'. A partir daí, as coisas fluíram. Como ele ainda estava numa fase de adaptação, não fazia sentido mudar de clube naquela altura. Então, combinamos um acordo com o Benfica, clube que mostrou mais interesse, e no final da temporada ele seguiu caminho.»

Na formação das águias, o jovem jogador não cedeu à pressão da nova realidade, sendo um dos atletas em destaque nos respetivos escalões que representou. Na época de estreia pelos encarnados, guiou o conjunto à vitória no Campeonato Distrital de Benjamins E2. Para além da visível qualidade, o avançado mostrava altos índices de humildade e maturidade.

Ao receber o prémio de Melhor Jogador da 12º edição do Torneio Internacional José Peseiro, Quenda aproveitou a oportunidade para valorizar o poderio da equipa adversária: «O Sporting tem jogadores melhores do que eu. Eles também poderiam ganhar este troféu.»

Capítulo 3: a exigência que mudou o destino

Tudo faria prever que o futuro do extremo passaria pelo Glorioso da Luz, mas uma discordância acabou por mudar o rumo do jogador, com apenas 13 anos: «Eu tinha a convicção que o Geovany tinha de se integrar na sociedade. Eu acreditava que a melhor solução seria ele ir viver para a Academia. Esta mudança foi combinada com o Benfica, mas quando terminou o campeonato, o clube voltou com a palavra atrás, dizendo que não tinham lugar para ele. Eu e o pai do Quenda tivemos uma conversa com o coordenador, mas as desculpas foram as mesmas.»

«No final da reunião, ligou-me um diretor do Sporting. Não sei como é que a informação passou, mas a verdade é que o clube contactou-me já com uma proposta para o jogador. Todos os detalhes iam de encontro com aquilo que eu queria. No entanto, o progenitor do Geovany era do Benfica e o miúdo já tinha grandes amigos na equipa. No final, acabei por convencê-los a abraçar o novo projeto», confessou.

Segundo Basaúla, após a ameaça de saída se converter numa iminente mudança de ares, a formação que atua na Catedral foi atrás do prejuízo. Porém, a decisão era irreversível: «Depois disso, o Benfica ligou para mim a oferecer tudo e mais alguma coisa: já podia ir para a Academia, já podia ganhar um salário mensal, já podia ir para um colégio aclamado, entre outras regalias. No entanto, eu já tinha dado a palavra ao Sporting e não ia voltar atrás.»

A situação acabou por ser pouco pacífica, escalando mesmo para a agressão verbal: «A pressão que recebi na altura foi mesmo muito grande. Depois de mandar uma carta à coordenação do Benfica a dizer para não contar mais com o Quenda, as pessoas insultaram-me. Chegaram a ligar para o pai do Quenda a dizer que eu ia estragar o filho dele. A sorte é que ele manteve a calma e continuou a confiar em mim.»

Capítulo 4: ordens para crescer... e convencer

Entre 2019/20 e 2020/21, o futebolista, tal como tantos outros, colocou a sua paixão em stand-by, fruto das restrições associadas à pandemia. Contudo, na temporada que se sucedeu, Quenda voltou a demonstrar vislumbres diferenciadores, apontando oito preponderantes golos para a conquista do Campeonato Nacional de Iniciados.

A trajetória no outro lado da Segunda Circular estava a ser satisfatória. No entanto, seria a época 2022/23, o período de completa afirmação. O jogador reservou para si os holofotes das camadas jovens, tendo feito o gosto ao pé em 20 ocasiões (!). Uma época memorável que valeu bilhete para a equipa sub-23, a mando de João Pereira. 

@Sporting CP

Surgiu, assim, a oportunidade na Seleção sub-17 e, por consequência, um golo que o tutor Basaúla nunca irá esquecer: «Foi verdadeiramente emocionante. Eu joguei à bola, eu sei o que é essa sensação. Meti-me no lugar dele. O Geovany é um simples miúdo que gosta de jogar futebol. Ele idealizou a jogada e fez aquela pintura. Eu não consegui acreditar. Mal acabou o jogo, liguei para ele bastante eufórico. Só está ao nível dos melhores

Por breves instantes, a comoção contagiou o segundo pai de Quenda. O internacional pelo Zaire imaginou os impactos que a sua arriscada decisão podia ter tido na vida do seu menino: «Se as coisas tivessem corrido mal, imagina o remorso que eu ia ter para o resto da minha vida

A verdade é que esta história encaminha-se para um final feliz. As quatro contribuições para golo, neste arranque da Liga Revelação, são bons indicadores para uma eventual estreia às ordens de Rúben Amorim. Basaúla mostrou-se cauteloso, mas acredita que o sonho do seu afilhado acabará por ser concretizado.

qEu sei que, mais tarde ou mais cedo, ele vai jogar na equipa A

Basaúla Lemba sobre Quenda

«O Geovany tem apenas 16 anos. Eu só quero que o processo decorra com a maior tranquilidade para o miúdo não perder equilíbrio. Mas eu sei que, mais cedo ou mais tarde, ele vai jogar na equipa A», rematou.

Recorde-se que Dário Essugo estreou-se na equipa principal da formação leonina, com a mesma idade de Quenda - 16 anos e seis dias -, tornando-se assim o jogador mais jovem a vestir a camisola dos leões. Já se viu que os anos no CC não são preocupação para o treinador de 38 anos, que aposta com frequência nas joias da coroa.

«Quenda, aquele golo já está no passado. Agora, é marcar mais»

Capacidade de aceleração, desequilíbrio, finalização e visão de jogo. Segundo Basaúla, estas são as principais qualidades no jogo da jovem promessa. O antigo futebolista garantiu que Quenda foi aprimorando as diferentes armas ao longo do seu desenvolvimento, mas deu ênfase a um atributo em particular.

@UEFA

«Uma característica que antes ele não tinha, mas que agora já aperfeiçoou, é defender. Antigamente, jogava só do meio-campo para a frente, mas atualmente já consegue aliar o ataque com o processo defensivo. Ele veio de um país africano, onde só valorizam a bola no pé, então teve que se habituar a um sistema um pouco diferente. Mais exigente», confessou.

Basaúla Lemba acredita que o afilhado tem todos os ingredientes para chegar longe. Porém, valorizou a importância do foco: «A única coisa que eu quero é que ele não se distraia. Ele tem que se focar a 100 por cento no futebol, porque muitas vezes os miúdos, quando chegam a patamares mais altos, começam a andar em bicos de pés. É a partir daí que as carreiras começam a estragar-se.»

O antigo atleta deixou ainda um último recado sobre a realidade do desporto-rei: «Eu continuo a insistir: 'Quenda, aquele golo já está no passado. Agora, é marcar mais'. A verdade é que, se na partida a seguir falhares uma oportunidade clara, já estás a ser assobiado. O futebol é mesmo assim.»

[Geovany Quenda fez a estreia oficial pelo Sporting na Supertaça Cândido de Oliveira e marcou um dos golos dos leões na derrota contra o FC Porto]

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