Giresse: «Mesmo que seja rente ao chão, quero um Bordeaux que não morra»

1 mes atrás 41

Bordéus. Região vinícola que preza de forma muito intensa o seu vasto património cultural, repleto de magnânimas obras arquitetónicas contemporâneas. Neste território no sudoeste de França nasceu um dos emblemas mais históricos do país: o mítico Bordeaux.

Desde 1881, ano da fundação do clube, os girondins foram preenchendo o seu palmarés com títulos bastante prestigiantes, que enchiam os bordaleses de um tremendo orgulho. No entanto, os adeptos apaixonados que em outros tempos tinham motivos para sorrir, agora contemplam de perto um enorme pesadelo, difícil de ser apagado. 

87 anos depois, a respetiva turma gaulesa já não integra o amplo núcleo de clubes profissionais, resultante do incumprimento do fair-play financeiro. A Federação Francesa de Futebol já anunciou a despromoção da histórica formação à quarta divisão

De forma a tentar compreender os motivos por detrás desta queda aparatosa, bem como poderão ser os moldes de reconstrução, o zerozero esteve à conversa com Alain Giresse e Bruno Basto, jogadores com um percurso vasto no clube. 

Respirar a essência para absorver títulos

662 jogos repartidos por umas expressivas 16 temporadas. 177 golos apontados na rica trajetória. Para Adrien Mathieu, adepto dos girondins, Giresse é mesmo uma instituição do clube, sendo «a lenda máxima aos olhos de todos em Bordéus». Não é do seu tempo, mas cresceu a ouvir histórias sobre um mago que encantava os relvados da nação, com uma sofisticação muito própria.

Giresse é o jogador com mais jogos na história do Bordeaux @Getty /

O antigo internacional pelos les bleus, questionado sobre os motivos que o levaram a permanecer tanto tempo na mesma paragem, enfatizou a mentalidade da respetiva sociedade desportiva: «Foi o clube onde eu comecei quando era criança. Gradualmente, começou a ter ambições maiores do que simplesmente a permanência. Passou a ter a perspetiva de se tornar um 'Grande' de França. Sempre me senti em casa, com o pensamento de alcançar títulos muito importantes.»

Foi mesmo na década de 1980 que a respetiva massa associativa começou a tirar os pés do chão. Segundo Mathieu, a máquina oleada por Aimé Jacquet, treinador que se consagrou campeão do mundo em 1998, era constituída por atletas que respiravam toda a essência do símbolo que levavam ao peito.

De Marius Trésor a Bernard Lacombe, passando por Patrick Battiston e Jean Tigana, o conjunto passou a acostumar-se ao sabor doce de levantar preciosas Taças. Três dos seis campeonatos afixados no museu remontam a este período nostálgico, bem como as duas Coupe de France e o Trophée des Champions. Contudo, as gerações que se sucederam também trouxeram momentos memoráveis, marcadas por talentos como Bixente Lizarazu, Yoann Gourcuff, Marouane Chamakh ou um tal de Zinédine Zidane.

«Tenho uma grande afeição pelo Fernando Chalana. A sua morte tocou-me muito»

Porém, houve um jogador em particular que introduziu a paixão do futebol a um jovem Mathieu. Em 2001, deslocou-se com o pai ao estádio pela primeira vez, no ainda Stade Chaban-Delmas, ficando encantado com um ponta de lança luso: Pedro Pauleta. Também Giresse rendeu-se ao feitiço português, tendo a oportunidade de partilhar palco com um mágico de bigode farfalhudo.

Chalana esteve três temporadas ao serviço dos girondins @Getty /

«Tenho uma grande afeição pelo Fernando Chalana. É um jogador que chegou depois do Euro 84, onde fez uma prova extraordinária. Para além das suas notórias qualidades como jogador, era um homem muito simpático e acessível, com quem tive o verdadeiro prazer de trabalhar. Infelizmente, lesionou-se e não pudemos explorar plenamente o seu talento. Partiu e a sua morte tocou-me muito. E acreditem que não era só eu que o apreciava», referiu ao zerozero.

No que diz respeito a futebolistas lusitanos, Bruno Basto foi o elemento com mais aparições, 144 para ser preciso. Proveniente do Benfica, o defesa assinou pelos marine et blanc em 2000, rubricando o seu nome na história da turma gaulesa em 2001/02: o respetivo profissional foi uma peça importante na conquista da Coupe de la Ligue.

«Ganhamos 0-3 ao Lorient, com o Stade de France cheio de adeptos nossos. A festa foi simplesmente magnífica. Quando chegámos a Bordéus, tínhamos uma imensidão de pessoas à nossa espera. Ainda fomos ao estádio para ser recebidos euforicamente por toda a gente. Foi uma sensação incrível», confessou, entusiasmado por reviver o momento.

Para Giresse, esta relação próxima com os adeptos permitia aos jogadores captarem o espírito do FCGB, algo que dava à entidade um registo peculiar: «Para além das grandes equipas formadas, havia um padrão específico de comportamento, seguindo o slogan 'L'espirit girondin'. O forte apoio a esta identidade sempre ficou bem patente. O clube sempre foi o orgulho da cidade e distinguia-se dos demais por toda a sua classe

Quando a gestão ruinosa assombra uma região

Todavia, o percurso do Bordeaux não foi um ambicionado conto de fadas, principalmente nesta era moderna. O emblema seguia a rota da normalidade, ficando com regularidade nos lugares cimeiros da tabela classificativa da Ligue 1, até que em 2018, um volte-face viria a mudar o rumo dos acontecimentos. Em 2018, o grupo audiovisual M6 decidiu vender o clube, pondo fim há longa ligação de 19 anos. Desta forma, a empresa americana King Street assumiu o posto deixado em branco, com o objetivo de dar continuidade ao aparente bom funcionamento do projeto.

Ben Harfa na temporada 2020/21 @Getty /

Porém, a falta de investimento foi evidente, criando uma grande revolta no seio dos adeptos. A pandemia acabou por deteriorar a situação, tanto em termos monetários como em termos desportivos, com o respetivo clube a lutar veemente contra a despromoção ao segundo escalão. A firma acabou por abandonar o emblema em 2021, levando a Christophe Dugarry, antiga lenda do clube, a pronunciar-se sobre a gestão danosa: «Estou enojado, triste e aliviado. É algo bom estes palhaços estarem a sair daqui.»

No entanto, este seria apenas o princípio do fim. No dia 22 de junho de 2021, Gérard López, dono da Genii Capital e acionista da SAD do Boavista, decidiu chegar-se à frente. Apesar de ter salvado a formação do Sul de França numa primeira instância, o resultado final acabaria por ser verdadeiramente catastrófico.

Na temporada 2021/22, os girondins terminaram o campeonato como lanterna vermelha, descendo, assim, para a segunda divisão, algo que não acontecia desde 1990/91. Esperava-se uma passagem fugaz na Ligue 2, mas a equipa não conseguiu retornar ao pedestal principal do futebol francês nas duas épocas que se sucederam.

Bordeaux falha a missão de subir à Ligue 1 em 2022/23 @Getty /

Os cofres estavam cheios de nada, levando o club au Scapulaire a afogar-se em dívidas. Era uma questão de tempo até surgirem as respetivas punições por incumprimento financeiro. Segundo a imprensa internacional, a turma de Bordéus ainda procurou um acordo com a empresa Fenway Sports Group (FSG), eventual entendimento que acabou por não se concretizar. Depois da luta burocrática, o clube levantou o pano branco. O organismo que rege a modalidade na nação arrancou ao Bordeaux o rótulo de emblema profissional e, consequentemente, empurrou o conjunto para a National 2 - quarto escalão.

Sob o olhar de quem ama: «Estou infinitamente triste»

Apesar de reconhecer que a culpa não circula, única e exclusivamente, à volta de um elemento, Mathieu não deixou de apontar o dedo a Gérard López, enaltecendo múltiplos episódios infelizes do seu currículo: «Todos conhecemos o seu historial. Desde os fracassos da Lótus, na Fórmula 1, e do RE Mouscron, da Bélgica, às dívidas colossais que deixou no Lille

«Quando chegou, nomeou Vladimir Petkovic, treinador suíço responsável pela eliminação da França no Euro 2021, para o comando técnico. O problema é que ele não treinava um clube há oito anos. Para além disso, depositou toda a sua confiança em Admar Lopes, diretor desportivo, que falhou em 80% das contratações. López também nunca quis nomear um diretor geral, apesar de estar sempre em Miami.»

Conferência de imprensa de Gérard López @Getty /

Já Basto destacou a perda gradual de identidade: «O Bordeaux era dirigido por pessoas da região, que transmitiam todos os deveres da instituição e a própria filosofia. Era uma autêntica família. A meu ver, o problema passou pela falta de conhecimento da cultura francesa por parte dos mais recentes proprietários. A construção de um novo estádio, um pouco para fora da cidade, também não ajudou. O distanciamento que foi criado com os adeptos não trouxe benefícios.»

A mágoa é gigantesca, que o diga Giresse: «Não estava à espera que isto chegasse a este ponto. É infinitamente triste. Estamos muito zangados pela forma como o clube foi maltratado pelos dirigentes. Será que o clube vai continuar? É esta a minha grande preocupação de momento. Vivemos uma autêntica catástrofe

Para intensificar este tormento, o clube já não dispõe de jogadores profissionais, nem de um centro de formação. Na visão de Mathieu, as dificuldades são muito acentuadas, bem como o número de interrogações: «Com que atletas vamos começar? Em que estádio vamos jogar? Estamos na penumbra. Precisamos de nos livrar do Gérard López e trazer uma equipa de gestão totalmente nova

Adeptos do Bordeaux apoiam freneticamente a sua equipa @Bordeaux

Segundo Adrien Mathieu, apesar de todas estas implicações, uma coisa é certa: os girondins nunca irão caminhar sozinhos: «O Bordeaux é o único clube que acompanho em França e na Europa há mais de vinte anos. Mesmo que tenhamos de desaparecer e recomeçar do zero, estaremos sempre presentes para acompanhar o clube no contexto amador. Iremos construir um projeto novo, mais saudável

Caro leitor, a conclusão de um jornalista nunca teria o impacto necessário para fazer jus a esta delicada história. Pedimos então a Giresse - quem melhor do que Giresse - uma mensagem apaixonada de quem viveu (e sentiu) o clube como nenhum outro. Segundo o próprio, a esperança é a última a morrer...

A carta aberta de Giresse aos girondins

«É claro que os adeptos estão de coração partido, todos nós estamos. Quando se ama este clube, como eu tanto o fiz durante estes largos anos, é algo difícil de esconder. No entanto, há uma coisa que ninguém nos pode tirar: somos girondins e iremos ser para sempre! Teremos de nos fazer ouvir neste momento mau, como sempre o fizemos. Teremos também de estar conscientes que o tempo para a desejada reconstrução vai ser muito prolongado, mas não podemos desistir. Houve muitas equipas que caíram e, fruto de muito esforço, conseguiram reerguer-se posteriormente. Não seremos os primeiros nem os últimos a enfrentar condições muito complicadas. Vamos ter de ser fortes, vamos ter de ser duros e vamos ter de estar bem dispostos. É uma situação triste e lamento muito ver isto a acontecer. Agora, só quero uma coisa: quero um Bordeaux que se mantenha de pé, mesmo que seja rente ao chão, mas que não morra.»

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