Glasgow, uma cidade dividida pelo futebol, política e religião

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O local que hoje conhecemos como Glasgow foi colonizado desde os tempos pré-históricos, mas só mais tarde, com a chegada e retirada do Império Romano no século I, uma tribo gaélica da Irlanda chamada «Scoti» começou a colonizar a Escócia Ocidental e o País de Gales, criando as primeiras bases destes dois países que hoje bem conhecemos.

Quanto a Glasgow - cidade que esta quinta-feira se pinta de vermelho para receber o jogo decisivo do Benfica na Liga Europa -, cedo, desde a criação do Reino da Escócia no Século IX, se mostrou de extrema importância, em parte pela sua localização geográfica - a jusante do rio Clyde, que passa pela cidade - e pelas bases comerciais ali criadas precisamente pelo Império Romano.

Hoje, pensar em Glasgow é pensar, essencialmente, e em especial se for adepto de futebol, nos seus dois principais clubes, os históricos Rangers (adversário do Benfica) e Celtic, afamados pelas suas conquistas e por serem personagens principais de um dos mais conhecidos dérbis de todo o mundo, o mítico Old Firm - conheça a sua história -, que ajuda (o verbo ajudar é, sem dúvida, o mais correto) a dividir uma cidade habituada a ter dois polos distintos.

A origem religiosa da divisão

A importância do Império Romano e a sua disseminação de valores e cultura a nível europeu é bem conhecida no continente europeu e a Escócia não foi exceção. A partir do século V, a Escócia foi considerada um território católico romano e assim viveu durante largos séculos, em conformidade com boa parte da Europa e do Reino Unido.

Contudo, após as reformas protestantes levadas a cabo no seio do Cristianismo Ocidental na Europa do século XXI - que teve como principal figura no Reino Unido o rei Henrique VIII, conhecido por criar uma nova religião, o protestantismo, pela recusa da Igreja Católica na anulação do seu casamento com Catarina de Aragão - e à qual a Escócia aderiu, rompendo com o Papado e desenvolvendo uma Igreja calvinista e fortemente presbiteriana, passando esta a ser a religião oficial.

Ora, três séculos mais tarde, no século XIX, especialmente na altura da Grande Fome da Batata na Irlanda, muitos emigrantes irlandeses católicos estabeleceram residência na Escócia, com ênfase no extremo leste de Glasgow, criando uma dicotomia na cidade e uma maior competição por emprego e habituação, além do «confronto» e discriminação religiosa generalizada. A tensão entre católicos e protestantes passou a ser palpável.

A política...e o futebol

Foi aqui que entrou em ação o futebol. Ambos nascidos no final do século XIX, Celtic, historicamente ligado ao lado católico e irlandês da cidade, e o Rangers, historicamente ligado ao lado protestante apoiante do Reino Unido, tiveram um papel predominante no aguçar desta rivalidade, que faz de Glasgow uma cidade pintada de rivalidade religiosa e ideológica e onde muitas vezes nos esquecemos que estamos na Escócia.

De resto, por volta da década de 1920, o Rangers teve mesmo uma política, não oficial, diga-se, de não contratar jogadores católicos ou empregar católicos em outras funções, algo que apenas mudou na década de 1970, quando o clube, embora negando a existência da mesma, sofreu pressão social e dos media, para abandonar essa postura.

Dalglish foi lenda em Glasgow e Liverpool @Getty /

O Celtic, por sua vez, apesar de fundado por um Padre, de estar ligado aos católicos e irlandeses, de assumir com orgulho essa herança, nunca segregou adeptos ou atletas de outras religiões e o maior exemplo disso mesmo foi a lenda Kenny Dalglish, protestante, e adepto do Rangers desde pequeno, um dos craques que brilhou de verde-e-branco e com um trevo ao peito, por insistência do técnico Jock Stein, que fazia questão de contratar jogadores protestantes e de outras religiões, pois sabia que o Rangers nunca iria buscar um craque católico.

Entre mortes e agressões em episódios de eventos desportivos entre os dois clubes foi-se misturando a política. Os adeptos do Celtic, na sua maioria, descendentes de emigrantes irlandeses, são republicanos e apoiantes da causa nacionalista irlandesa, enquanto do outro lado, os protestantes «orangistas» do Rangers apoiam incondicionalmente a coroa britânica. O rancor está omnipresente no dérbi escocês e quando os adeptos do Rangers cantam para os adversários «até aos joelhos em sangue feniano - termo empregue desde o século XIX para referir um apoiante do nacionalismo irlandês -, rendam-se ou morrem!*», cantam-no com a raiva e um orgulho sectário indisfarçável. 

A rivalidade doentia de Glasgow está ilustrada no número de assaltos, confrontos, desacatos e mortes provocadas nas horas que se seguem a cada «Old Firm». No fim da década de 90, os números apontavam para um aumento de nove vezes no número de doentes que davam entrada nos hospitais da cidade, nas 24 horas depois do dérbi. Política, religião, violência... mas onde entra o futebol em tudo isto?

O mítico Old Firm

A história do nome «Old Firm» remonta a 1909, quando um enorme motim em Hampden Park, entre jogadores e mais de 60 mil adeptos das duas equipas, interrompeu a realização da final da Taça da Escócia.

Old Firm tem longa história @Stu Forster/Getty Images

Tudo começou, quando se espalharam os rumores que as duas equipas tinham combinado um empate para lucrarem financeiramente. A «negociata» ficou colada ao dérbi, que assim ganhou o nome, devido ao facto dos dois clubes lucrarem com a antipatia mútua. Nascia a «Velha Firma.»

Por estes dias, a cidade, aqui e ali, já se vai pintando com o vermelho e branco do Benfica, acompanhado por algumas boas centenas de adeptos, mas essa rivalidade é bem evidente e são quase mais as bandeiras do Rangers e do Reino Unido e do Celtic e da Irlanda que se veem pelas ruas do que propriamente da Escócia.

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