Gonçalo Paciência: «Eu só queria jogar no FC Porto, em mais lado nenhum»

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Dias felizes na casa dos Paciência. O nascimento da primeira filha de Gonçalo deu mais um neto a Domingos e as férias vão ter um sabor diferente. Provavelmente com menos horas de sono. Perto da fazer 30 anos, o internacional português saboreia uma fase de «maturidade», ainda e sempre em busca de «golos e de minutos», as ferramentas básicas de um ponta-e-lança. 

Fechada mais uma época na Alemanha, agora com o Bochum e em jeito de final feliz e miraculoso, Gonçalo visita o zerozero para fazer o balanço e contas. Para onde corre a carreira do antigo avançado do FC Porto, ligado ao Calta de Vigo por mais uma época? 

As respostas evidenciam uma afinidade enorme com a Bundesliga e a Alemanha. Percebe-se que, no que depender dele, Gonçalo dará sempre prioridade a esse campeonato. Uma hora de conversa com um dos mais entusiasmantes comunicadores do futebol português. Esta é a PARTE II da conversa. 

PARTE I: «A minha vida tem sido uma constante de ups and downs»

zerozero - Faz 30 anos a 1 de agosto. Sente-se realizado com as conquistas enquanto futebolista? 

Gonçalo Paciência - Nestes 12 anos de carreira profissional tive vários sonhos. Um era jogar em grandes ligas, outro era ser internacional português, ganhar títulos internacionais e ganhar títulos com o clube do coração. Consegui cumprir todos, mesmo sem ser em números de abundância (risos). Posso orgulhar-me do que tenho feito. E depois há os títulos invisíveis. Jogar em estádios icónicos, fazer bons amigos. Quem olhava para a minha formação, talvez pensasse que eu podia ter feito mais. Mas esta é a minha história, com pequenas vitoriazinhas, a superar lesões complicadas e a voltar ao ativo. Se muitos tivessem vivido o que eu vivi, talvez não se tivessem conseguido manter ao nível que me tenho mantido. Tenho orgulho, sim. 

qO meu sonho sempre foi o FC Porto. Sou desta cidade, ali do centro, conheço a cidade de trás para a frente, não há nada melhor do que ser o menino da cidade, um rei na tua cidade. Eu queria isso

Gonçalo Paciência

zz - Estamos a gravar a entrevista no dia em que o FC Porto apresenta um novo treinador. Trabalhou meio ano com o Vítor Bruno, o que nos pode dizer sobre ele? 

GP - Quem trabalhou com o Sérgio Conceição, sabe que o Vítor sempre foi uma pessoa muito ativa nas ordens dadas à equipa. No próprio treino tinha uma mensagem bem clara, com personalidade e qualidade. O Sérgio chegou a elogiá-lo várias vezes. Conheço o Vítor desde pequeno, passava férias com ele no Algarve, porque o pai dele [Vítor Manuel] conhecia o meu [Domingos]. Não há melhor escola do que ter trabalhado com o Sérgio. 

zz - É um homem menos emocional do que o Sérgio Conceição?

GP - Acho que sim, mas o Vítor nunca foi o treinador principal. É um desafio para ele. Não é a mesma coisa. O Sérgio é que levava com as 'balas' e o Vítor passará a ter essa responsabilidade. O FC Porto estará bem entregue. É uma fase de mudança, uma fase complicada, até em termos financeiros não está famoso. Tudo tem os seus momentos. Espero que o Vítor leve o FC Porto aos tempos anteriores de glória. Refiro-me à glória europeia, porque em Portugal ganhará sempre um ou outro campeonato. 

«Vim ao Porto de propósito para votar nas eleições»

zz - Confirma que o André Villas-Boas é um dos responsáveis pelo Gonçalo ser ponta-de-lança? 

GP - Sim, confirmo. Eu cheguei à velha Constituição com sete anos e o André era o coordenador das equipas mais jovens. Nós passávamos por uma cabinezinha velha a caminho do campo e o André estava lá, a apontar os nomes. Na minha vez lembro-me dele ver quem eu era e dizer 'és ponta-de-lança, bora lá, como o teu pai'. Aliás, o André até conta que foi treinador por culpa do meu pai. Até festejou a vitória nas eleições com a camisola do meu pai. Eu nunca experimentei outra posição, sempre fui avançado. Às vezes tentava mudar, para ter mais bola, mas nunca me deixaram. 

zz - E em 2011, o André e o Domingos disputaram uma final europeia. 

GP - Foi o dia em que odiei o FC Porto, por ter ganhado ao meu pai. Quando o pai está num lado... as pessoas passavam por mim, diziam que eu estava contente porque qualquer resultado era bom, mas não foi assim. Para mim foi um dia triste. Nada apaga o trabalho que o meu pai fez no SC Braga. 

zz - Saiu em 2018 do FC Porto, após uma longa ligação. É um capítulo completamente encerrado ou às vezes ainda pensa nisso, em voltar? 

GP - Eu costumava dizer que só queria jogar no FC Porto, não queria jogar em mais lado nenhum. Aos 19 anos tive de sair para somar minutos, tive de fazer esse esforço, mas o meu sonho sempre foi o FC Porto. Sou desta cidade, ali do centro, conheço a cidade de trás para a frente, não há nada melhor do que ser o menino da cidade, um rei na tua cidade. Eu queria isso. As coisas não se deram assim. Ficou o adepto e essa ligação nunca se vai apagar. Quando passamos no clube vemos muita coisa. As coisas más. E por isso desligamo-nos um pouco e temos alguma mágoa.

Mas agora estou numa fase boa, gosto do FC Porto, quero o bem do FC Porto, sofro com os jogos. Prefiro assim. Estar deste lado como adepto e sócio com quase 30 anos. Não sei se vou voltar um dia. Se me ligarem, vou de costas para lá. Estou bem onde estou, a fazer o meu percurso. Sendo eu de cá, e projetando a minha vida para a cidade do Porto, gostaria de trabalhar no clube. Com os miúdos da formação ou outra coisa. Esse bichinho do FC Porto, por tudo na minha família, está vivo. Sempre foi tudo azul e branco, desde os dias nas Antas. 'Vamos treinar, vamos vestir à Porto', são muitas memórias e é impossível desligar-me. 

zz - Votou nas eleições de 27 de abril? 

GP - Vim votar de propósito, numa operação muito rápida. Vim e voltei no mesmo dia. O futebol é mesmo assim. Quando amas um clube, e passas lá demasiado tempo, às vezes surge alguma mágoa. Quem disser o contrário está a mentir. Esse bichinho já passou. O bichinho que me dizia 'porra, queria ter feito mais e não me deixaram'. 

zz - O Gonçalo fez até o mais difícil: saiu do FC Porto e voltou. A maioria não consegue.

GP - Eu já fui para Setúbal numa fase em que quase ninguém acreditava em mim. Houve muita gente a despachar-me e depois a dizer-me que eu voltei pela porta grande, com um olhar falso. Isso custa. Conheci muita gente ao longo da formação e isso foi-me tocando. Consegui voltar e ser campeão no meu clube, ainda que sem a preponderância que eu idealizei. Não tive o estatuto desejado, mas estive lá e coloquei o meu nome na história. Está um bocadinho de mim nesse título de 2018. Cada minuto que jogas por um clube é mais um pedaço de história. Joguei uns minutinhos [253 nesses meses], está bom (risos).

zz - Campeonato nacional pelo FC Porto vs Liga Europa pelo Eintracht. Qual escolhe? 

GP - Com o FC Porto é a ligação que se sabe, mas no Eintracht as pessoas adoravam-me. Por tudo o que eu dava à equipa. Fiz vários golos importantes lá, quase sempre no fim dos jogos. Eu ia aquecer e o estádio começava logo a levantar-se. O título no FC Porto foi muito especial pelo regresso e por festejar com esta gente toda com quem cresci.

Em Frankfurt não há Aliados (risos). Há uns carrinhos descapotáveis, cada um com quatro jogadores, e vamos assim até ao centro da cidade. Estava um dia meio tropical, com chuva e sol, foi um dia impressionante. O FC Porto ganha muitos títulos, esse foi mais um, mas o Eintracht não está habituado a isso. Tem uma dimensão grande, mas não luta para ser campeão, não é ganhador. Tem títulos de forma espaçada e por isso a intensidade com que se festejou essa Liga Europa foi bem maior. 

zz - Não faltou cerveja. 

GP - Não faltou. Começámos a festejar depois da vitória em Barcelona, nos quartos-de-final da Liga Europa, e foram quatro/cinco semanas em festa. Nós jogávamos à quinta-feira na LE, ganhávamos e íamos sair e festejar. E domingo tínhamos de jogar para a Bundesliga. Era quase o 'por favor, não me ponhas em campo' (risos). Na meia-final, contra o West Ham, houve uma invasão de campo e foi tudo sair. Jogadores, treinadores, os nossos pais, tudo. E no domingo jogávamos contra o Monchengladbach. 

zz - Quanto ficou esse jogo? 

GP - 1-1, por acaso. Golaço meu do meio da rua (risos). O treinador entrou e disse 'malta, temos de jogar'. 'Vão à sauna, à massagem, façam os vossos tratamentos, mas temos de entrar e jogar'. Mudou dois ou três jogadores só, mas no aquecimento estávamos de ressaca (risos). E a claque levantou uma tarja a dizer o seguinte: 'Hoje não importa, o que queremos é a final'. Ui, maravilha, hoje não nos vão cobrar. A primeira parte foi terrível, um calor horrível, não estávamos com a cabeça lá. Não consigo dizer qual o melhor, mas o de Frankfurt ainda está muito vivo. Fiz lá muitos amigos, falamos muitas vezes. 

zz - Percebe-se essa ligação forte a Frankfurt.

GP - O David Abraham e o Timmy Chandler ainda me visitam e eu visito-os também. Mesmo as pessoas do marketing, do staff, no instagram do Eintracht ainda colocam coisas minhas. Eu estava no Bochum e aparecia mais vezes na conta oficial do Eintracht (risos). Criei uma ligação especial ali. Quando há um título conquistado, o grupo recorda muito essa conquista em comum. No Eintracht foi assim, ainda agora o clube fez 125 anos e mandaram-me uma camisola. No FC Porto também havia essa ligação com a malta com quem me dava mais. 

zz - Há mais memória nos clubes alemães. 

GP - Homenageiam muito os antigos jogadores. Em Portugal esquecem-se um bocadinho. Lá há quase sempre alguma homenagem, jogo após jogo. É a tal mentalidade de que falávamos há pouco. 

zz - O seu pai falava sobre essa mentalidade vigente em Portugal, de grande rivalidade, mas depois acrescentava que passava férias com o Mozer e o Rui Águas no Algarve. 

GP - Em Portugal o adepto é muito do género 'vamos matá-los, tal e tal'. Eu apanhei o Rafa Benítez no Celta e ele dizia assim: 'Gente, ninguém mata ninguém, já viram alguém morto em campo? Esqueçam, são tangas'. Isso marcou-me. Na Alemanha joga-se um jogo de senhores e há cordialidade entre todos. Falo assim da Alemanha porque é o exemplo que melhor conheço.

Parece que tenho comissão do turismo alemão (risos). Lá é comum um pequeno convívio depois do jogo, beber uma cerveja no estádio. As pessoas sobem ao VIP, onde estão as famílias, e passam pelos adeptos de cerveja na mão. Ninguém te está a apontar nada. Tem esse lado bom da vida, desfrutar para além do futebol. 

Paciência nos estúdios do zerozero @Gonçalo Pinto

«Aproveitei mais a vida em Bochum do que em Vigo»

zz - Gostou de experimentar alguma tradição alemã? 

GP - Gostei muito do 'schnitzel'. É parecido com o nosso típico panado. Fazem muito bem isso. No inverno, gosto muito das esplanadas fechadas. Aproveitei muito mais a vida no exterior em Bochum do que em Vigo. Basta um raio de sol e lá vão eles para o rio, em piqueniques e a andar de bicicleta. Têm muito a obsessão pelo trabalho, sim, mas também a preocupação pela qualidade de vida. É um país que está mais à frente. Criei esse sentimento pela Alemanha. Mesmo sem praia lá (risos). 

zz - Faz ideia de quem é o treinador que mais vezes o colocou em campo no futebol sénior? 

GP - Adi Hütter .

zz - Certíssimo. A uma larga distância.

GP - Percebe muito de futebol (risos). Estive com ele quando cheguei em 2018. Tem uma personalidade forte, um bocadinho arrogante a gerir o grupo, mas até no bom sentido. Gosta de bom futebol, tive algumas situações de confronto com ele, mas faz parte. Foi um treinador que me marcou. Eu cheguei meio abalado do FC Porto e ele deu-me tempo. Sem falar muito com o jogador, sabe como moralizar. E tinha outra coisa que eu gostava. No primeiro treino depois dos jogos, dizia um a um o que tínhamos feito bem e mal. Com ele eu estava bem, era uma troca de elogios constante. Um treinador especial. 

zz - O segundo na lista é português.

GP - Não é o meu «pai» José Couceiro? Então é o Luís Castro. Foi diretor da formação do FC Porto, aparecia só de vez em quando, mas como treinador é muito bom. No treino e no jogo. E está a prová-lo agora. Sempre foi adepto deste futebol mais romântico, de toque, de ter mais bola. Na formação do FC Porto não tinha essa visão dele, mas depois confirmei isso no Rio Ave. E é uma boa pessoa. É um exemplo de persistência, merece estar a viver o que está a viver. 

zz - E o José Couceiro?

GP - Meteu-me muito à vontade, tinha um trato honesto, simples e humilde. Está numa posição boa na FPF, mas gostava de tê-lo nos bancos de suplentes a treinar. 

zz - O Oliver Glasner e o Filipe Gouveia fecham o top5.

GP - O ano na Académica foi complicado. Não queria ir para lá, era muito novo, estava ligado à realidade-Porto, fora de casa. Não era um jogador feito. Se fosse hoje, teria ficado no FC Porto. O meu pai tinha sido treinador do clube e isso também influenciou. 

zz - Só fez um «hat trick» no futebol sénior. Sabe quando foi? Seleção de sub19, nuns 7-0 à Roménia. 

GP - Incrível. Ainda agora falávamos do Adi Hutter e ele tinha razão. Eu dava-me bem com o Bas Dost e gostava de lhe oferecer golos. Ele fazia o mesmo comigo. E um dia o Adi vem ter comigo e disse assim: 'Marcaste dois golos ao Leverkusen, és um jogador elegante, mas tens de ir ao hat trick, não podes andar a oferecer golos a outro'. Esse foi um jogo em que realmente andei perto disso. Mas vou andar por cá mais uns aninhos, seis ou sete. Vou atrás disso. 

Em Gelsenkirchen tudo correu mal @Schalke 04

«O jato de água acertou em cheio no olho do treinador»

zz - Vamos às melhores histórias desta carreira bonita? 

GP - Vamos a isso. Posso começar pelo ano das festas em Frankfurt. A dada altura a celebração era constante. Em alguns treinos, o treinador olhava para nós e mandava-nos para dentro. 'Assim não vale a pena treinar'. E há uma história num Schalke-Dortmund. O dérbi. Estávamos mal, não ganhávamos a ninguém e o treinador Cristian Gross tentou fazer algo de diferente. Levou chocolates para o jogo. 

zz - Chocolates? 

GP - Ele é suíço, devia ter alguma ligação a uma fábrica (risos). Deixou-nos comer chocolates ao pequeno-almoço, para alegrar-nos, mas não correu bem. Ao intervalo já estávamos a perder 3-0. Haaland, Bellingham... os chocolates não caíram bem. Há outra no Schalke.

zz - Vamos ouvi-la. 

GP - Nessa época tinha o cabelo grande. Depois lesionei-me e vim fazer tratamento em Portugal. Quando voltei a Gelsenkirchen, já ia de cabelo rapado. Tudo a rir-se, cabelo novo e tal. Um dos fisioterapeutas levou-me ao gabinete desse treinador suíço e ele virou-me a cara. 'Porra, não me cumprimenta nem nada?'. O fisioterapeuta foi falar com ele e disse-lhe que era o Paciência. 'O Paciência, com esse cabelo? Ei, não o reconheci'. Foi uma situação meio constrangedora. 

zz - Na Alemanha não faltam histórias. 

GP - Muitas. Sempre que íamos a Leverkusen sabíamos que o jogo ia ter muitos golos. Era sempre aberto. Num dos jogos fomos lá jogar com um dos maiores autocarros da história. O Adi Hutter levou oito defesas (risos). Bem, aos dez minutos já tínhamos feito dois autogolos e ao intervalo já estávamos a ser goleados. E houve um ano em que fomos para lá de autocarro e ficámos presos num acidente. Chegámos atrasados, já íamos a temer outra goleada. Os jogadores a aquecer no autocarro, a alongar, a ver a coisa mal parada. Há muitas histórias boas de bastidores. 

zz - Vamos lá à última. 

GP - A época no Schalke 04 foi trágica. Tivemos cinco treinadores. O último foi um grego chamado Dimitrios Grammozis Íamos jogar a Bielefeld. Estávamos a ouvi-lo no relvado, enquanto ele dava a tática, nós todos sentados na relva. Ele era muito emotivo, explicava o treino cheio de emoção, e de repente... um jato de rega sai na direção dele e acerta-lhe em cheio no olho. Tudo nos acontecia. Nós todos a rirmo-nos e o homem teve de ficar uma semana hospitalizado. Foi grave mesmo. Tudo nos acontecia nessa temporada. E houve um dia em que os adeptos nos tentaram atacar e invadir o autocarro. Isso também foi muito feio. Agora dá para ir, mas foi uma situação complicada e o clube ainda não se reergueu. 

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