Imigração no centro das eleições do Reino Unido. “Há crianças detidas como se fossem adultas”

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04 jul, 2024 - 06:20 • António Fernandes, correspondente no Reino Unido

Cerca de 40% do eleitorado que vota esta quinta-feira diz-se preocupado com a imigração. ONG denuncia maus tratos e processos sem fim à vista. Trabalhistas, Conservadores e o radical Reform defendem medidas para controlar entradas, mas os métodos diferem bastante.

Imigração no centro das eleições do Reino Unido
Imigração no centro das eleições do Reino Unido. Ouça a reportagem do jornalista António Fernandes. Foto: Reuters

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A imigração foi a grande bandeira da campanha para a saída da União Europeia e, passados oito anos desde o referendo, ainda é uma discussão central no Reino Unido. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (ONS, na sigla inglesa), é o terceiro assunto mais importante para os eleitores, a seguir à economia e à saúde. É motivo de preocupação para 40% do eleitorado. Perante uma anunciada queda nas intenções de voto, o Governo conservador procurou capitalizar esse filão — ainda que isso não tenha jogado a seu favor e tenha dividido os votos à direita, com muitos a pensar votar no Reform UK, o partido anti-imigração por excelência.

Da direita à esquerda, os partidos reforçaram a ideia de que a imigração é demasiado elevada neste momento. Há hoje praticamente o dobro dos imigrantes a chegar ao Reino Unido, em comparação com os dados de 2016, ano do referendo à saída da União Europeia. Eram cerca de 622 mil em 2016, hoje são 1.2 milhões os imigrantes que chegam. Um terço destes procuram o Reino Unido para prosseguir formação académica — segundo o Governo, foram concedidos 457 mil vistos a estudantes.

Também o saldo migratório (diferença entre o número de emigrantes e de imigrantes) é muito mais alto do que antes da pandemia, quando andava entre as 200 e 300 mil pessoas. No final de 2023 foi de 685 mil pessoas. Ainda assim, isso representa uma queda de quase 10% em relação ao ano anterior (722mil) e este ano a queda acentua-se estando nos 20% até ao momento.

Ainda assim, todos os partidos defendem que é preciso fazer mais. O Partido Trabalhista tem um plano a longo prazo, propondo formação em sectores como saúde ou a construção para reduzir a imigração; o Reform quer congelar completamente a imigração, excepto para trabalhadores especializados na área da saúde, e o Partido Conservador — que definiu ainda em 2016 uma meta de 100 mil novas entradas — quer dificultar os vistos, aumentando o salário mínimo requerido para obtenção de vistos para 38.700 libras por ano, e limitando o número de vistos dados a migrantes.

Perante este cenário, a Confederação Britânica das Indústrias (CBI) deixa o alerta: as tentativas de reduzir a imigração reduzem o leque de trabalhadores disponíveis e vão por isso atrasar a recuperação económica do Reino Unido.

Há diferenças também no tipo de imigração: são cada vez menos os que chegam da União Europeia, com o saldo migratório dos europeus a ser mesmo negativo. Sobram por isso os não europeus, os migrantes, os refugiados. Entra em cena o Plano Ruanda.

O polémico Plano Ruanda

Como na Grécia e em Itália, também no Reino Unido se somam histórias, algumas delas trágicas, de milhares de pessoas que fazem a perigosa travessia do Canal da Mancha em pequenas embarcações, deixando França e a União Europeia para trás. A estratégia do ainda primeiro-ministro Rishi Sunak foi estabelecer um protocolo com o Ruanda para deportar para esse país os migrantes que chegam de forma ilegal ao Reino Unido. Os seus pedidos de asilo seriam processados aí, e não no Reino Unido. Só que o plano, muito criticado devido às sérias dúvidas de respeito pelos direitos humanos no Ruanda, nunca deixou de ser isso: um plano.

Os tribunais bloquearam várias vezes a medida, depois de aprovada no parlamento britânico, e nenhum avião partiu com direcção ao Ruanda. Para já, os custos previstos são de 240 milhões, mas, se alguma vez avançar, o plano pode custar um máximo de 1.8 milhões de libras (cerca de 2 milhões de euros) por cada um dos primeiros 300 refugiados deportados. Anunciado com o lema “Stop the boats”, o objectivo é travar o modelo de negócio do tráfico de pessoas e enviar uma mensagem aos migrantes de que a viagem não vale a pena, porque não ficariam no Reino Unido.

Em entrevista à Renascença, Hayden Banks, assessor de política na ONG Refugee Council, diz que remover o direito ao asilo não é compatível com os direitos humanos. Além disso, defende que este “não é um bom plano e não funciona, porque as pessoas vão sempre tentar outros caminhos ainda mais perigosos para atravessar o canal”. Os números indicam que o fantasma da deportação não está a afastar os migrantes. As travessias aumentaram 16% em relação ao mesmo período em 2023. Foram mais de 12.500 travessias. Maioritariamente são do Afeganistão, Irão, Albânia, Iraque e Síria.

Com mudança de Governo à vista, o plano Ruanda pode nunca levantar voo: Keir Starmer, o líder do Partido Trabalhista, já anunciou que o vai reverter. O primeiro-ministro respondeu com um vídeo que ataca essa intenção, onde se vê uma passadeira vermelha estendida numa praia, como aquelas onde chegam os barcos, e uma só palavra escrita na areia: “Bem-vindos”. Os migrantes estão à espera dos Trabalhistas, diz Sunak.

Neste ponto, a saída da União Europeia prejudicou o Reino Unido, que antes, ao abrigo do Acordo de Dublin, podia devolver os migrantes aos países da UE de onde tinham chegado. Agora tem de manter os migrantes em hotéis, muitas vezes durante anos, enquanto os pedidos de asilo não são processados.

Eternos ilegais

Depois de entrarem no Reino Unido, aguarda-os uma espera que pode durar três anos, quando não mais, para poderem integrar a sociedade. Sem capacidade para os alojar, o governo recorre a hotéis. Hayden Banks diz que o sistema de asilo está a “implodir, porque desde julho do ano passado mais de 100 mil pessoas entraram no sistema mas os seus pedidos de asilo não foram processados.

"Estas pessoas vivem num limbo, quando o que querem é ter o seu processo aprovado, sair do hotel e reconstruir as suas vidas, porque muitas vezes procuram segurança depois da guerra.”

As condições estão longe ser boas e Banks defende que “é importante afastarmos a ideia de que as pessoas devem ficar hospedadas em hotéis ou centros de detenção”. Transformados, na prática, em alojamento permanente, os sonhos das férias desaparecem da memória das paredes dos hotéis, onde vivem crianças “cuja idade é posta em causa e são considerados adultos, passam a dividir quartos e instalações com adultos e descrevem as suas condições como viver numa prisão, sob restrições apertadas e com grande impacto na sua saúde mental”, alerta o assessor de política na ONG Refugee Council. As crianças acabam por não ter acesso a educação, por exemplo, e “os seus direitos dentro da lei britânica não estão a ser protegidos”, considera o responsável.

São gastos 8 milhões por dia só em hotéis para quem procura asilo. Com os hotéis a quererem voltar a ser o que eram, as comunidades a quererem recuperar os espaços e com o custo extraordinário que o alojamento em hotéis representa, uma nova solução foi apresentada: o Bibby Stockholm, efectivamente uma prisão flutuante ancorada ao largo do porto de Portland, em Dorset, com capacidade para 500 pessoas, que esperariam aí pelo desfecho dos seus processos.

Mas pouco depois de os primeiros residentes terem entrado a bordo foi descoberta legionella na água das instalações, que tiveram de ser evacuadas. Houve também um incidente de um suicídio a bordo e duas ex-trabalhadoras do Bibby Stockholm, em entrevista ao jornal The Guardian, descreveram um cenário desumano. Levana Corker e Bella Basstone dizem que os residentes eram tratados “como gado”, reportam camas com percevejos e inundações. Ambas contam como ouviram um funcionário gracejar com o suicídio ocorrido, dizendo que era “menos uma boca muçulmana para alimentar”.


“Não havia compaixão para com os migrantes”, concluem as ex-funcionárias. O Ministério da Administração Interna negou as alegações. Neste momento não se sabe quantos requerentes de asilo permanecem a bordo.

Se em relação ao Plano Ruanda os Trabalhistas são claros, quanto aos centros de detenção não se comprometem. No programa eleitoral prometem uma nova unidade, com mil pessoas, que vão rever os casos para deportar aqueles cujos processos foram recusados mas ainda estão a viver em hotéis — um processo que pode exigir mais centros de detenção.

Que governo para os refugiados?

Tendo em conta a situação actual, a Renascença perguntou a Hayden Banks o que o Refugee Council gostava de ver implementado por um próximo governo. “A primeira coisa é reconhecer o direito de asilo", afirma o assessor. "Temos de deixar que as pessoas venham ilegalmente para permitir que façam os seus pedidos e que sejam ouvidos de forma justa. Temos de respeitar a Convenção dos refugiados [Convenção de Genebra de 1951]".

Para aliviar o sistema de asilo, sustenta que é preciso estabelecer vias seguras. Por isso, a ONG propôs "um visto de refugiado, para que o Governo possa identificar refugiados em certos países que precisam mais e deixá-los viajar para o Reino Unido legalmente”. Segue-se a importância de reunir famílias, porque no Reino Unido “uma criança não pode trazer os familiares para se juntarem a ela, ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus”. Banks sublinha ainda que o período para que um refugiado possa sair de um centro de detenção “tem de ser reduzido a uma janela curta, máximo 28 dias para que possa procurar trabalho e casa, mas sabemos que não tem uma rede de apoio, por isso o Governo tem de melhorar essa estrutura”. A última sugestão é “abandonar o Plano Ruanda, claro”.

A perspectiva de uma vida no Reino Unido vai continuar a chamar pessoas de todo o mundo — desde os que procuram melhores condições de trabalho, uma experiência nova, ou segurança para dormirem descansados sem uma guerra que atravesse o telhado. Os dados mostram que os barcos não vão parar de chegar. Será uma questão quente nas mãos do Governo que sair das eleições desta quinta-feira.

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