"Já não tenho uma pátria". Desde 2022, um milhão de russos deixaram o país e não tencionam voltar

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Ivetta Sergeeva e Emil Kamalov são os principais autores russos da investigação realizada em várias fases - em março de 2022, setembro de 2022 e de maio a julho de 2023. Recolheram respostas de mais de dez mil russos em 100 países.

Na análise, descobriram que a maioria dos cidadãos saiu devido à oposição à guerra na Ucrânia. Os russos migrados discordavam também das narrativas de propaganda, sempre presentes na sociedade, que retratavam a Rússia como um país nobre em luta contra “fascistas” ucranianos. Esta franja da população temia iniciativas de mobilização do exército, mais repressões internas e uma potencial crise económica.

Com a guerra em território ucraniano, países como a Geórgia, a Arménia e o Cazaquistão sentiram, para além dos efeitos económicos como o aumento dos preços, a pressão demográfica do afluxo de russos. Para muitos habitantes locais, as memórias do passado colonial da Rússia vieram à tona.

"Já não tenho uma pátria”

O cidadão russo Evgeniy Kosgorov, de 38 anos, deixou para trás Krasnodar, cidade no oeste da Rússia, em junho de 2022 com a mulher e um filho de um mês nos braços.

Desde o início da invasão, Kosgorov olha para a terra-natal como um “Estado vilão” que segue o caminho da Alemanha nazi. Considera a Rússia “um país sem futuro” e com o qual não quer ter nada a ver.

Kosgorov preferiu abandonar o território russo do que enfrentar as decisões de Moscovo, mas o passaporte e língua identificam-no como cidadão de um Estado agressor.

“Compreendo perfeitamente o ódio geral pelos russos e por tudo que é russo. Aceito e compreendo porque o que a Rússia está a fazer é errado”, argumentou Kosgorov, citado na Al Jazeera. “Cada vez que quero dizer que é difícil para os russos que partiram, algo dentro de mim protesta, porque os ucranianos têm mais dificuldades do que nós”.

Foi adotado na Geórgia e vive atualmente em Tbilissi, mas revela que “a Rússia continuava a assombrá-lo”.

“Não tenho mais um país, já não tenho uma pátria”, afirma Kosgorov. “Isso é uma coisa trivial e simples. Mas o que eu quero é sentir o chão debaixo dos meus pés e compreender o que o amanhã trará”.

Abriu um negócio que inclui bar e um espaço de arte onde recebe exposições com temas anti-guerra. Proprietário da UGallery, entre outras atividades, Kosgorov organiza campanhas para angariação de fundos a favor da Ucrânia. Doa depois as receitas a várias organização não-governamentais que apoiam os refugiados ucranianos. 

Uma pintura do artista russo Alex Garikovich, residente na Geórgia, que foi exibida em uma exposição na UGallery de Evgeniy Kosgorov em outubro de 2023 | Evgeniy Kosgorov via X

Reuniu ainda uma grande comunidade de pessoas com ideias semelhantes, mas Kosgorov reconhece que nem toda a população da Geórgia acolhe com agrado a chegada dos russos. As mensagens anti-russas estão bem visíveis em muros na capital.

Regressar a casa e destronar Putin
De acordo com estimativas dos países que receberam a onda de russos, cerca de um milhão deixaram o país em 2022 e 2023. Não se verificava um êxodo semelhante desde o colapso da União Soviética.

Uma das muitas críticas que Kosgorov costuma ouvir é que “todos deveriam regressar a casa e destronar o presidente Vladimir Putin numa revolução em massa”.


Mensagem anti-Rússia numa rua de Tbilissi, Geórgia | Irakli Gedenidze - Reuters

Defende-se considerando que essas ideias dirigidas aos exilados russos são descabidas, rebatendo: “Se olharmos para a história, os protestos pacíficos raramente derrubaram as autocracias, ao contrário dos golpes militares. Putin não desaparecerá, mesmo que todos estes migrantes que partiram voltem à Rússia e protestem. A Rússia simplesmente acrescentaria mais presos políticos à lista”.
Culpa e vergonha

Um outro cidadão russo, de 40 anos, abandonou Moscovo em outubro de 2022 com a ajuda de amigos, que lhe emprestaram dinheiro para uma passagem de avião para Yerevan, capital da Arménia.

Sob anonimato, revelou que “se sente culpado e desesperado” perante a invasão levada a cabo pela Rússia.

“Certamente sinto responsabilidade pessoal pelo que está a acontecer. A Rússia transformou-se numa máquina de destruição da vida das pessoas. Tanto no exterior como dentro do país”, testemunhou. “E isso não aconteceu da noite para o dia, em 24 de fevereiro [2022]".

Este exilado conta que conseguiu manter o trabalho no modelo não presencial, a partir em Yerevan. Diz sentir que nada na sua vida está correto e, para contrariar o estado de tristeza, escreve cartas aos presos políticos russos que conheceu em Moscovo.

“Há pessoas que estão em pior situação do que eu, que foram presas injustamente com base em acusações forjadas”, explica. “O mundo está deprimido. Não sei quantos exilados russos tomam antidepressivos, mas eu estou. Há um entendimento de que não há perspetivas claras para nós e que devemos encarar cada dia como ele chega”, descreve este russo.

A cientista política russa Margarita Zavadskaya, da Universidade de Helsínquia, na Finlândia, também ligada à investigação de exilados políticos russos, observa que este estudo vai ao encontro do que tem afirmado: a última onda de migração da Rússia “difere dos casos anteriores, na medida em que é mais politizada”.

Afirma que as “pessoas confiam mais umas nas outras e formam comunidades mais fortes”, não têm medo de falar e envolvem-se em movimentos ativistas.

“Ajuda os cidadãos a recuperar a dignidade e o sentido de propósito” sublinha. “As pessoas sentem-se deprimidas. Sentem culpa, vergonha e às vezes raiva. Estão a tentar encontrar-se e a reinventar-se nas novas circunstâncias”, argumenta Zavadskaya

“A ironia da situação é que a culpa está a ser sentida por aqueles que estão contra o regime e compreendem a escala da tragédia”, acrescenta.
Improvável retorno
Dos cerca de 144 milhões que formam a população russa, a vaga migratória atual é privilegiada, tem recursos financeiros, conhecimento, educação e criatividade. E ao contrário das vagas migratórias anteriores os novos exilados são voluntários e podem sobreviver e prosperar fora da Rússia. Esta investigadora deixa claro é improvável que voltem para casa.

Evgeniy Kosgorov e o cidadão sob anonimato corroboram essa linha de pensamento e acrescentam que podem ponderar a possibilidade de regresso à Rússia “quando a guerra terminar, se e quando a Rússia pagar reparações à Ucrânia e quando a administração de Putin acabar”.

Estes cidadãos russos acreditam que estas questões não tenham respostas num futuro próximo.

O financiamento para os trabalhos preliminares deste estudo foi garantido pelo departamento de ciências políticas e sociais do Instituto Universitário Europeu de Florença.

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