Julho é de Jazz’24 — Dia 5: o poder manifesto de um trio

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Pode interpelar quem quiser se isto é jazz, perguntar se é mais rock ou até deixar no ar a irresolúvel definição dos termos. Estamos nos domínios da fruição do jazz-não-jazz, mas no campo da problemática que vem de longe. O que é afinal a música jazz? As bordaduras dos limites, os intervalos abertos — da matemática — são pontos de interesse acrescido, inclusivos e exclusivos, a fronteira onde se ouve de ambos os lados. E para Hedvig Mollestad em guitarra eléctrica, Ellen Brekken no contrabaixo e baixo eléctrico, e Ivar Loe Bjørnstad na bateria — abreviadamente designados por HM3 — é de música que se trata, ponto. Para que nem restem hesitações, abrem o concerto no pátio quebrado do gnration com uma toada carregada de pós-rock com “Four Candles”, tema final de Ding Dong. You’re Dead, mais recente álbum da banda de Oslo.

Hedvig Mollestad passou no ano passado pelo Jazz em Agosto, com a “enérgica e musculada apresentação do projecto Ekhidna comandado pela guitarrista norueguesa […] a percorrer, às vezes no espaço de um único solo, a considerável distância entre o rock e o jazz parece ter sido o conceito de base para [aquela] aventura”, nas palavras de Rui Miguel Abreu, tão a propósito. Fica evidente o campo fértil em que esta compositora faz sementeira. Mollestad está de volta ao seu poderoso trio HM3 —estabelecido em 2009, com o qual editou uns robustos sete registos discográficos, todos com o selo da norueguesa Rune Grammofon. Chegam ao palco do Julho é de Jazz com enorme satisfação e prontos a dar de volta — em descarga sónica — a energia dos repastos de bacalhau — “Estamos cheios de bacalhau”, refere Hedvig com satisfação ao segundo tema da noite. Afinal, de onde vem o bacalhau? Vem da Noruega. Da música que cultivam é dito que nela “há riffs sólidos e criativos suficientes aqui para satisfazer os mais metaleiros, bem como os ‘jazzheads'”.

Do alinhamento preparado à medida retomam paisagens livres — em campo aberto —, com o poder de voo à chegada de “Approaching” do álbum Black Stabat Mater,  e saturaram tudo em redor com continuadas revisitações de registos anteriores, cruzados com temas de Ding Dong. You’re Dead. Deste último disco — lembrando que mesmo na ida a estúdio este trio toca em prestação como ao vivo —, retiram para este concerto temas imprescindíveis, na intensidade e identidade, como o são “Gimball” ou “All Flights Cancelled”. “Arigato, Bitch” volta a situá-los nas memórias trazidas de uma ida ao Japão e dessas histórias vividas, corria o ano de 2014 e era tempo de Enfant Terrible. Houve momentos contemplativos e de retempero sonoro — entenda-se —, afinal o contexto era de festival de jazz com uma plateia acomodada em almofadas ou em modo espreguiçadeira, sentados, onde apenas na vontade imaginada seria possível crowd surfing ou outras actividades de danças desengonçadas. Um desses pontos, e foi de charneira, deu-se com o tema título “Ding Dong. You’re Dead.” e para o qual Bjørnstadt foi pedir emprestado o arco do contrabaixo de Ellen para expandir o timbre do metal dos seus címbalos. Dos quais e pelos sons conjugados com a guitarra de sonoridades languidas e um contrabaixo doce, fazem baralhar de novo o rótulo que se queira colar a este HM3. Brilham as lantejoulas das “miúdas” das cordas do trio a par das nuances cintilantes das micas do chão “granítico” do pátio do gnration. Vamos em frente, a noite está óptima para este festim sónico. “Estão 10ºC em Oslo e chove”, contrapõem para reforçar o prazer de ali estar Mollestadt. E prosseguem alinhamento adiante, na “riffologia megalítica” com “The Rex” e  “Sing, Goddess” trazidas de All Of Them Witches, um dos primeiros álbuns de HM3. Tudo é revisitado em palco, atestando consistência, perseverança e continuidade identitária a contar desde o inicio ao fim para este poderoso trio de… música, pois claro. Há tempo, quase no final, para voltar ao princípio, e retomar do seu mais recente e dinâmico registo discográfico “Leo Flash’ Return To The Underworld”. À conta disso mesmo, fazem um desempenho coreográfico que transpõe as instrumentistas de HM3 para planos fora do musical, num quase processo operático, onde músico e actor são o mesmo artista. 

Terminam com “Beastie, Beastie”, consumando um desempenho avassalador que preenche os recantos possíveis e imaginados das paredes do pátio, elevam o espirito e limpam a alma dos que se dispuseram, ali nesta noite, a dar os ouvidos a tal manifesto de poder em forma de trio.


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