Justiça: Aprender, aprender muito e não repetir sempre as mesmas desacreditadas ladainhas

1 hora atrás 26

Griffith não foi um comentador de sofá sobre assuntos da Justiça nem, muito menos, alguém que, por um ou outro motivo pessoal, não tolerava a relevância que na democracia atual tem o sistema de Justiça.

Quem tiver lido o já clássico «The Politics of the Judiciary» de John Aneurin Grey  Griffith não ficará espantado com as revelações sobre o funcionamento da Justiça inglesa que a série transmitida na semana anterior na RTP 2 – O Escândalo dos Correios – mostra ao grande público. 

Griffith ensinou no University College of Wales, na University of California, (Berkeley) e na York University (Toronto),  tendo sido ainda chanceler da University of Manchester  e membro eleito da British Academy.

As Universidades onde estudou e lecionou não nasceram ontem e não cumprem o papel de acolher e mimar políticos fracassados e responsáveis por reformas fatídicas nas áreas que foram da sua responsabilidade. 

Griffith não podia, pois, ter sido, como outros, um comentador de sofá sobre assuntos da Justiça nem, muito menos, alguém que, por um ou outro motivo pessoal, não tolerava a relevância que na democracia atual tem o sistema de Justiça.

Ao contrário de muitos outros, ele sabia do que falava.

As críticas que fez ao sistema de Justiça inglês eram sustentadas num conhecimento apurado das matérias que analisou.

A obra que referi teve várias edições e, ao longo dos tempos, foi sendo atualizada.

Eu adquiri, faz anos, a quarta edição, editada em Londres, por Fontana Press, em 1991.

Hoje, segundo creio, há já uma quinta edição, datada de 1997.

Depois de ler alguns textos mais recentes, publicados nos jornais pelos «comentadores» habituais destas matérias e por outros recém-chegados a este tema de interesse, lembrei-me dele.

Pena é, pensei, que muitos dos nossos «comentadores» – não lhe podemos chamar estudiosos, pois, na realidade não o são – não conheçam a obra deste autor e os pontos de onde ele parte para analisar e criticar a fundo o funcionamento da Justiça.

E, todavia, era bom que o lessem, antes de invocarem sempre a bondade do modelo anglo-saxónico de Justiça, em detrimento do sistema continental.

A verdadeira crítica – não quero dizer a única, pois seria redutor – que Griffith faz ao sistema de Justiça e ao modelo de recrutamento dos juízes ingleses, e em consequência aos valores sociais que as suas sentenças traduzem, relaciona-se com a sua homogénea origem profissional e de classe e, portanto, por tal razão, com os interesses que sempre acabam por valorar e eleger.

Expõe e questiona muito seriamente, assim, o modelo profissionalmente fechado, e só aparentemente apolítico, que determina a escolha dos juízes e das chefias do Crown Prosecutor Office (o Ministério Público inglês).

O livro aborda, todavia, uma gama muito alargada de outros problemas que vai, por exemplo, do papel das atividades extrajudiciais substitutivas da atuação dos tribunais, passando pelo jogo interessado da ocultação e divulgação de informação processual, a questão do acesso aos documentos, até ao mito da neutralidade dos juízes e a amplitude atual da sua criatividade jurídica.

Acresce que o autor procura ilustrar, sempre que pode, as suas afirmações com os exemplos de casos concretos.

No fundo, apercebe-se e faz-nos entender que, mesmo a factualidade apurada num processo, pode, à partida, estar condicionada pela mundividência do investigador e do julgador.

O sistema inglês sofreu, entretanto, alguma influência do sistema continental, mesmo que, depois da saída do Reino Unido da UE, este tenha regredido na assunção de algumas significativas e democráticas reformas do sistema de Justiça.

A leitura desta obra poderia, ao menos, permitir aos «comentadores» reequacionar algumas das suas «impressões», levando-os a substituí-las por «ideias» mais coerentes provindas de um estudo sério dos problemas que, sem dúvida, os sistemas judiciais evidenciam, mormente o nosso.

Entretanto e como referi, na passada semana, a RTP 2 transmitiu os quatro episódios da série «O Escândalo dos Correios», cuja estória é baseada em factos reais.

O seu visionamento permite, de algum modo, revelar, de uma maneira simples, à maioria dos cidadãos – e, por isso, também, aos «comentadores» – as disfuncionalidades profundas de um sistema judicial considerado por muitos como exemplar: sim, disfuncional, também, na duração do tempo dos processos e seus recursos.

Em tal série não se desvendam, no essencial, o bom ou o mau caráter e temperamento de certos juízes ingleses ou o dos responsáveis por um enorme escândalo financeiro envolvendo os correios desse país (privatizados em 2013), os seus administradores e os de uma empresa de tecnologia digital.

Os sentimentos pessoais dos juízes e dos responsáveis pela atuação vergonhosa dos gestores dos correios são – mesmo que considerados – preteridos, e bem, pela análise sistémica do funcionamento e do modelo de Justiça. 

O que tal série procura destapar são, preferencialmente, as condicionantes da objetividade que intervêm na leitura que os juízes britânicos fazem da realidade e as suas consequências na análise da criminalidade atual.

Esta não é mais e apenas a praticada por mineiros desencorajados pelo despedimento massivo provocados pela política da TINA (não há outra alternativa), ou por marinheiros e hooligans bêbados, mas resulta da atividade regular de alguns dos mais destacados elementos das elites sociais e económicas desse país.

O que nela se revela, com toda a clareza, são, assim, os preconceitos culturais e ideológicos dos que investigam, acusam e julgam os casos que lhes estão submetidos, o que os conduz, por vezes, a resultados factuais absurdos e a decisões absolutamente injustas.

Além disso – e de modo nada despiciendo – põe em evidência o facto de o custo da Justiça no Reino Unido constituir, à partida, um fator de desigualdade profunda e grave entre quem tem e quem não tem dinheiro no acesso aos tribunais.

O seu desmesurado custo adquire uma relevância fundamental na opção pelas partes mais débeis, pelos meios alternativos à Justiça dos tribunais.

 Por norma, tais meios conduzem, porém, também eles, a acordos que beneficiam sempre as partes mais poderosas e ricas.

A exceção verifica-se na justiça laboral, que os sindicatos britânicos, pelos motivos antes indicados, preferem, mesmo assim, subtrair à jurisdição dos tribunais, pois têm força e dinheiro suficiente para aguentarem o tempo necessário até obterem, nos meios alternativos aos tribunais, uma solução razoável para os seus associados.

Note-se, por fim, que a série televisiva fala de factos reais e foi produzida no próprio Reino Unido.

A Justiça portuguesa tem vindo a ser, com mais ou menos razão, alvo de críticas que partem, curiosamente, não tanto dos setores mais débeis da sociedade, mas, no essencial, de uma parte das elites económicas, sociais e políticas.

Estas, pela primeira vez na história do país, têm, para seu grande espanto, visto, com sucesso ou sem ele, escrutinados alguns dos seus mais polémicos procedimentos no governo dos dinheiros públicos e os da gestão dos fundos que pertenciam a clientes de algumas instituições privadas, preponderantes na vida económica e financeira do país.

Algumas de tais críticas são justas e visam, realmente, contribuir para uma maior eficácia do sistema, sem que isso signifique ter de varrer para debaixo do tapete as mais elementares garantias constitucionais.

Outras, mascaradas ou não de irritados arrepios democráticos, não passam de tentativas de ajustes de contas pessoais e sociais.

Porém, tal estratégia, assumidamente confrontacional, a todos deslegitima e degrada: degrada a Democracia e o Estado de Direito e, em geral, os que os servem e cumprem bem os seus deveres.

De certa forma é o que, precisamente, ela pretende: deslegitimar, cautelarmente, o sistema e com ele as suas decisões se ambos não se contiverem num quadro para o qual foram idealmente pensados.

Para que isso possa mudar, é, pois, indispensável que os media deixem de alimentar e amplificar a continuada maledicência sobre aspetos menores e verdadeiramente irrelevantes do comportamento e discurso dos responsáveis pela Justiça e o dos políticos sobre estes: tal maledicência de nada serve para melhorar o sistema.

Seria bem melhor que os «comentadores» de serviço procurassem estudar, compreender e explicar – fossem eles disso capazes – as razões objetivas das disfuncionalidades, aparentes e reais, do sistema político e da Justiça.

Talvez, assim, contribuíssem, a sério, para ajudar a ultrapassar os problemas que estes, insofismavelmente, demonstram ter.

Mas, todos sabemos, não é com raposas velhas e já batidas que se guardam galinheiros.        

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