Keir Starmer. ‘Control freak anti-carismático’ no n.º 10 de Downing Street

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O novo primeiro-ministro britânico acabou com a hegemonia de 14 anos dos conservadores num processo de reforma interna do partido trabalhista. Acredita no pragmatismo e no desenvolvimento de políticas através da resolução de problemas.

Rompeu com a liderança de Jeremy Corbyn, moderou o Labour com “pragmatismo”, venceu as eleições e é o novo primeiro-ministro britânico. Keir Starmer acabou com a hegemonia de 14 anos dos conservadores num processo de reforma interna do partido trabalhista que começou em  2020, com a demissão de Jeremy Corbyn. 

Afastou as posições polémicas do antecessor relacionadas com o antissetimismo e foi dirigindo o partido para o centro, olhando para o passado, em particular para os mandatos de Tony Blair, o ex-primeiro-ministro que venceu três vezes consecutivas (1997, 2001 e 2005) as eleições e que também aproximou o Labour do centro político. «O que quero fazer é seguir as pisadas do líder do nosso partido que nos tirou da oposição e colocou-nos no poder», disse o advogado, 61 anos, natural de Southwark, Londres.

Em vez de um programa ideológico, o atual líder dos trabalhistas «acredita» mais no poder do «pragmatismo» e prefere aplicar políticas «resolvendo problemas e não seguindo grandes teorias» e não negociando «com base em pressupostos ideológicos». 

Nascido em 1962 – entre quatro irmãos – cresceu Oxted, na fronteira entre Kent e Surrey, sudeste de Inglaterra. O pai era um fabricante de ferramentas e a mãe uma enfermeira, que sofria de doença de Still, uma doença debilitante de artrite, que a impedia frequentemente de caminhar e falar.

Cresceu numa família tipicamente de esquerda – o seu primeiro nome foi uma homenagem dos pais ao primeiro membro da Câmara dos Comuns trabalhista – Keir Hardie – e terão sido as dificuldades da infância e adolescência a fazer com que Keir Starmer passasse a refletir sobre a classe trabalhadora. Na década de 1970, época de elevada inflação no Reino Unido, a família tinha várias dívidas. «Se se é da classe trabalhadora, tem-se medo das dívidas. A minha mãe e o meu pai tinham medo das dívidas, por isso escolhiam a conta que não queriam pagar. A escolha era a conta do telefone», contou. 

Tendo em conta o contexto, desde cedo que a política faz parte da vida de Keir Starmer, um excelente aluno que também tocava vários instrumentos – desde violino a piano. O seu percurso escolar fez com que conseguisse frequentar uma escola de elite no ensino secundário e que tenha sido o primeiro da família a frequentar a faculdade. 

Aos 16 anos, juntou-se à Juventude Socialista de East Surrey. Dois anos mais tarde inscreveu-se na Universidade de Leeds para estudar Direito. Durante a sua experiência universitária foi um dos editores da revista Socialist Alternatives, de tendência trotskista.

Advocacia

Após sair da universidade, Keir Starmer começou a exercer advocacia, defendendo casos relacionados com direitos humanos. O novo primeiro-ministro do Reino Unido escolhia defender «inquilinos em vez de senhorios» e norteava os casos que aceitava defender pela justiça social. 

No início da carreira juntou-se à Doughty Street Chambers, firma conhecida por aceitar grandes e controversos casos de direito humanitário. Lutou contra a pena de morte nos países da Commonwealth e chegou a fazer parte de uma equipa jurídica que conseguiu que o Tribunal Constitucional do Uganda invalidasse as sentenças de todas as 417 pessoas no corredor da morte.

Também defendeu dois anarquistas veganos que distribuíram panfletos acusando a McDonald’s de baixos salários, crueldade para com os animais e apoio à desflorestação. A multinacional processou-os por difamação, e o caso e os seus muitos recursos duraram uma década, uma das mais longas lutas legais da história britânica. 

Aceitou depois um lugar enquanto conselheiro jurídico para a guarda fronteiriça da Irlanda do Norte e também para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em 2008 foi eleito procurador-geral para a Inglaterra e para o País de Gales, cargo em que ocupou durante seis anos. Keir Starmer supervisionou a primeira ação penal britânica contra terroristas da Al-Qaeda e apresentou acusações contra políticos conservadores e trabalhistas envolvidos num escândalo de despesas. Foi-lhe atribuído o título de cavaleiro em 2014, em reconhecimento do seu trabalho. 

Em 2015 inicia a sua atividade política, concorrendo à Câmara dos Comuns pelo Partido Trabalhista e sendo eleito para representar o distrito londrino de Holborn e St. Pancras. Devido à sua experiência profissional, desempenhou as funções de ministro sombra para as Migrações e foi-lhe atribuída a tarefa de negociar a posição, instável, do partido sobre o Brexit. 

Nos trabalhistas era visto como um «workaholic», «alguém que exige humildade à sua equipa e acredita nos serviços públicos». A sua personalidade é «reservada» – não gosta de falar sobre si – e é muitas vezes descrito como «aborrecido» e «sem carisma», um «control freak anti-carismático» que «não se revê na parte mais performativa da política», preferindo resolver problemas, encontrar consensos e explicá-los ao eleitorado.

É também «impiedoso», como se viu na «purga» à ala mais à esquerda dos trabalhistas. Keir Starmer, que sempre se assumiu como «competitivo», clarificou o tema: «Sou impiedoso para o bem do meu país. É a única maneira de trazer mudança a este país é sermos impiedosos e ganharmos as eleições gerais».Em entrevista, o líder dos trabalhistas descreveu-se como «um socialista, como um progressista». Depois, ressalvou que se vê como alguém que «coloca o país primeiro e o partido em segundo». Os apoiantes de Starmer acreditam que dará um primeiro-ministro «transformador».  

Depois de chegar ao poder trabalhista, tem vindo a recentrar o partido e abandonado políticas custosas para o erário público, como por exemplo a nacionalização das empresas de saneamento e energia. No entanto, mantém a promessa de colocar sob controlo público quase todas as companhias ferroviárias de transporte de passageiros.

Na educação abandonou o plano para acabar com as propinas, mas, ao mesmo tempo, afirma que irá taxar as propinas das escolas privadas. Promete investir 8 mil milhões de libras (quase 9,5 mil milhões de libras) em energia sustentável ao mesmo tempo que diz que irá remover, quase completamente, os combustíveis fósseis da matriz de produção de eletricidade na Grã-Bretanha até 2030. Muitos especialistas consideram que isso é uma impossibilidade. 

Após o ataque do Hamas a Israel em outubro de 2023, Starmer apoiou a operação militar israelita em Gaza e o direito de Israel se defender, o que originou uma rebelião no partido. Em 2019, defendeu um segundo referendo sobre a saída do Reino Unido da UE, mas agora considera o retrocesso impossível. 

‘Sr. Regras’

O novo primeiro-ministro britânico é muitas vezes descrito como uma pessoa sem graça, ao que responde dizendo que gosta de seguir as regras, tendo já sido alcunhado pelos colegas de «Sr. Regras». Num episódio em que não o fez, foi apanhado pela polícia a vender gelado sem autorização. Para além da apreensão do gelado, escapou a qualquer outra sanção. Starmer revela pouco da sua personalidade, mas diz ser muito competitivo. «Eu odeio perder. Alguns dizem que o que conta é participar. Eu não faço parte desse grupo». Gosta de jogar futebol com os amigos e é fã do Arsenal de Londres. Tem dos filhos com Victoria Alexander, com quem casou em 2007, que durante estes anos tem estado ao seu lado e sobre quem se sabe pouco para além da vida profissional, uma vez que nunca deu uma entrevista, nem tenciona dar. 

Victoria e Keir conheceram-se quando estavam os dois na advocacia no início dos anos 2000, da qual abdica para seguir a vocação política. Victoria Alexander Stramer é terapeuta ocupacional no serviço nacional de saúde britânico (NHS, na sigla original), lugar que pretende manter mesmo depois da eleição. 

«Não vou fingir que é fácil para ela, porque não é. Ela quer continuar com a sua vida, mas é uma intrusão enorme quando se tem os media à nossa porta. É inibidor para toda a família. Isso tem impacto sobre ela», disse Keir Starmer em entrevista. 

A comunicação social britânica tem descrito Victoria como «uma mulher moderna e profissionalmente bem-sucedida», tendo sido quando trabalhava enquanto advogada que conheceu Starmer, mas sem empatia imediata. «Estava a tratar de um caso em tribunal e tudo dependia da exatidão dos documentos. Perguntei aos meus colegas quem é que tinha redigido os documentos e eles disseram-me que era uma mulher chamada Victoria, por isso disse-lhe para lhe ligarem» contou o novo PM britânico, acrescentando ter ouvido um murmúrio do outro lado da linha: «Quem é que ele pensa que é?».

No discurso de vitória, com a mulher ao lado, Keir Starmer agradeceu-lhe o apoio incondicional. Depois de Carlos III o indigitar como primeiro-ministro, vai para o número 10 de Downing Street, Victoria regressará à rotina enquanto terapeuta no NHS. O que Keir diz ajuda à governação. «Tenho uma visão direta e diária dos desafios do NHS e da moral do pessoal. Ela quer continuar o trabalho, que adora», disse.

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