Lisboa fechou o centro ao Alojamento Local, mas deixou a porta aberta a 41 novos hotéis

2 meses atrás 206

×


 Salomé Esteves/RRIlustração: Salomé Esteves/RR

download audio

Ouça aqui a reportagem do jornalista João Carlos Malta

A crescente turistificação da cidade de Lisboa e a gentrificação do centro de Lisboa levou a autarquia a estabelecer constrangimentos rigorosos a novos alojamentos locais que se traduziram na criação de zonas de contenção absoluta e uma política de licenciamento quase zero. Mas ao mesmo tempo que se fechou esta porta, deixou-se outra aberta para a hotelaria.

Nos últimos quatro anos, entre 2020 e 2023 registaram-se e abriram 71 empreendimentos turísticos (52 hotéis, 16 apartamentos turísticos, dois empreendimentos de turismo de habitação e uma pousada) no município de Lisboa. Deste universo, dois terços, num total de 41, localizam-se dentro da zona de contenção absoluta de alojamento local (AL).

Estes empreendimentos turísticos no centro da cidade valem, no total, 1.979 quartos que chegam para alojar 3.248 turistas. Todos estes números foram extraídos da base de dados de registos do Turismo de Portugal.


Governo revoga arrendamento coercivo e contribuição do alojamento local

Os locais em que este fenómeno é mais visível são as freguesias de Santa Maria Maior e de Santo António, bem no coração de Lisboa, que viram nascer nos últimos quatro anos 21 hotéis e 11 hotéis, respetivamente.

Em sentido oposto, o efeito das restrições ao AL nesta zona teve consequências bem visíveis. No mesmo período, ou seja, nos últimos quatro anos, registaram-se 36 unidades de alojamento local na zona de contenção absoluta. No total, todos estes espaços têm capacidade para 315 pessoas.

"Impossível viver aqui"

Ou seja, desde 2019, as novas unidades de hotelaria valem 10 vezes mais do que os alojamentos locais em termos de capacidade nas zonas que se consideravam saturadas de turismo.


No baixa lisboeta, mais precisamente na rua da Madalena, está Clotilde Oliveira, de 65 anos. Mora naquela artéria desde 2007, ano em que trocou o Bairro Alto, já muito agitado pelo vaivém de turistas e “deixou de ter paz”, por aquela zona da cidade ainda protegida do turismo. Foi sol de pouca dura.

“De há seis anos para cá que é impossível viver aqui. O trânsito, os tuk-tuk, os turistas e os hotéis e alojamentos locais. É muito difícil viver na Baixa, neste momento”, reforça.

Enquanto fala, olha em frente, vê o Hotel Memória e dispara. “Isto eram prédios residenciais. Foram intervencionados”. Aponta para um outro edifício amarelo, mais abaixo, e solta: “Aquele é mesmo colado à minha casa, mais um que era um prédio residencial e passou a ser hotel. No espaço de meia dúzia de números tem logo outro [hotel]”.

“São todos recentes. Quando vim para aqui, não havia nem um”, recorda.


 Beatriz Pereira/RRFoto: Beatriz Pereira/RR

Clotilde já pensa em encontrar outra zona para viver. “Vai ser mais rápido do que pensava. Numa imobiliária aqui ao pé, disseram-me que em dois a três dias vendia a casa”, resume.

Contenção com exceção dos hotéis

Em novembro de 2019, a autarquia da capital justificou no regulamento municipal que iria enquadrar as novas regras de restrição ao alojamento local com a “crescente procura imobiliária [que] determinou uma subida acentuada das rendas e a precariedade do alojamento, tornando necessária a implementação de um conjunto de políticas públicas urbanísticas, com vista, nomeadamente, a defender o stock de habitação permanente, limitar a instalação de novos estabelecimentos turísticos nos bairros onde a sua presença já tem um peso excessivo em relação à residência total disponível, protegendo a identidade dos bairros da gentrificação e favorecendo o arrendamento acessível”.

Nessa altura, foram definidos dois tipos de áreas de restrição ao AL: as áreas de contenção absoluta que correspondem a zonas turísticas homogéneas, ou subdivisões, que apresentassem um rácio entre estabelecimentos de alojamento local e número de fogos de habitação igual ou superior a 20% e as áreas de contenção relativa que que apresentassem um rácio superior a 10% e inferior a 20%.


As zonas de contenção absoluta estabelecidas à época correspondem a quatro zonas turísticas homogéneas: a primeira apanha a Baixa, a Avenida da Liberdade e a Almirante Reis; uma segunda que vai do Bairro Alto à Madragoa, outra abrange o Castelo, Alfama e Mouraria e uma última que se estende pela Colina de Santana.

O presidente da Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP), Eduardo Miranda, diz que desde 2019, quando a discussão ganhou forma e o setor passou a enfrentar um novo regulamento que criou restrições à atividade, formou-se o sentimento da existência de “uma incoerência enorme” quando se comparavam com o setor hoteleiro.

Eduardo Miranda critica o anterior executivo da Câmara, liderado por Fernando Medina, porque além da proibição de novas licenças, argumenta, quase que blindou exceções que havia a esta nova regra.


 Beatriz Pereira/RRFoto: Beatriz Pereira/RR

Aprovar novos licenciamentos apenas seria possível se a totalidade de um edifício ou fração estivessem em ruínas ou declarado totalmente devoluto há mais de três anos ou quando fração autónoma ou parte de prédio urbano que, nos dois últimos anos, tenha mudado a respetiva utilização de logística, indústria ou serviços para habitação.

Uma "grande contradição"

O presidente da ALEP não tem dúvidas de que fechar a porta ao AL e deixá-la aberta para a hotelaria “é uma contradição, como é óbvio, grande, que só a Câmara [da altura] pode explicar”.

E explica detalhadamente o porquê. Muitos dos projetos que avançaram, posteriormente, foram “apartamentos turísticos” que no fundo são “um modelo em quantidade maior, mas similar ao que seria o alojamento local.”

“Portanto, houve coisas que realmente nunca fizeram sentido, porque era proibido ter uma ‘guest house’ com nove quartos, mas se fossem 10 quartos já poderiam fazer um hotel de uma estrela. E era proibido ter apartamentos, fossem quatro, cinco, seis, mesmo que [em prédios] devolutos”, critica.


OuvirPausaLamentamos mas o seu browser não suporta este elemento de audio.

Ouça aqui: "De há seis anos que é impossível viver aqui. O trânsito, os tuk-tuk, os turistas e os hotéis e alojamentos locais. É muito difícil viver na Baixa neste momento", Clotilde Oliveira, moradora

Miranda considera que "houve uma instrumentalização do alojamento local”, que foi usado “como bode expiatório para a questão da habitação”.

Quisemos obter uma reação da Associação de Hotelaria de Portugal, e do presidente Bernardo Trindade, mas depois de várias tentativas e encontros, a mesma foi negada.

Já o especialista e diretor do Confidencial Imobiliário, Ricardo Guimarães, afirma não entender a demonização do AL, que considera ter sido uma atividade fundamental para a recuperação de edifícios devolutos. Guimarães chama a atenção para o número de frações registados como alojamento local, mas que não estão no mercado. Por isso, considera que as medidas tomadas em 2019 foram demasiado drásticas.


Argumenta que, recentemente, 40% dos apartamentos licenciados como AL não deram prova de estar a funcionar. Mesmo fazendo esta ressalva, considera que, se foram criaram regras de contenção para o AL, não faz sentido que o mesmo não tenha acontecido para a hotelaria.

Ainda assim, encontra “razões históricas” para a diferenciação. “Houve uma leitura de que havia uma oferta de habitação turística que competia com a habitação tradicional, apesar de isso também poder ser apontado à hotelaria”. “Mas a hotelaria [em termos absolutos] ocupa menos edifícios”, resume.

Nas zonas de contenção de AL, no centro de Lisboa, o número de hotéis aumentou nos últimos quatro anos, se compararmos com os quatro anos anteriores, entre 2016 e 2019, em que foram inauguradas 32 unidades. Ou seja, um aumento de 28% entre os dois períodos.

AL e hotéis. Diferente ou igual?

Para perceber os contornos políticos e o contexto da discussão política desta matéria há cinco anos, tentámos contatar Fernando Medina e o vereador do Urbanismo, Ricardo Veludo, que em 2019 assinou o RMAL, mas nenhum quis prestar declarações gravadas.


OuvirPausaLamentamos mas o seu browser não suporta este elemento de audio.

Ouça aqui."Houve coisas que realmente nunca fizeram sentido, porque que era proibido ter uma ‘guest house’ com nove quartos, mas se fossem 10 quartos já poderiam fazer um hotel de uma estrela", Eduardo Miranda, presidente da Associação de Alojamento Local de Portugal.

Ainda assim, duas figuras importantes do executivo e conhecedoras diretas do processo conversaram com a Renascença. Uma delas enquadra que à época o alojamento local não era considerado para efeitos urbanísticos “como tendo uma utilização económica” e “podia ser feito livremente na base do simples registo de qualquer prédio de habitação”.

Isso levou, conta a mesma fonte, à explosão de forma muito súbita e muito rápida do alojamento local e que “entrou claramente em confronto com a função habitacional”.

Este socialista lembra ainda que “não podíamos fazer caducar licenças” porque estas “não eram temporárias”, “continuavam a ser a título definitivo” e, por isso, “a única coisa que os municípios podiam fazer ao abrigo da nova lei era precisamente delimitar áreas de restrição, isto é, limitar o crescimento”.


 Beatriz Pereira/RRFoto: Beatriz Pereira/RR

Na opinião deste membro do anterior executivo, a lei aprovada no Parlamento que regulava o AL era “incipiente porque criou uma situação bastante negativa e injusta”. “Criou um monopólio, um grupo perpétuo, de quem já tinha licenças de alojamento local dentro das áreas que foram definidas como de contenção”, sublinha.

Sobre o desequilíbrio regulamentar entre AL e hotéis, o mesmo argumenta que a questão da hoteleira só poderia ser resolvida com alterações ao PDM (Plano Diretor Municipal) e no Plano de Pormenor, porque são esses os dois instrumentos que regulam e determinam prédio a prédio qual a atividade ou finalidade de cada um dos edifícios da cidade pode vir a ter.

"A não ser por via do Plano de Pormenor, a Câmara não tinha poderes urbanísticos para delimitar que determinada zona não fosse um hotel”, esclarece.

E para mudar estes documentos estruturantes da organização urbanística da cidade, entre preparação, elaboração e aprovação “demoraria anos”.


Agências de viagens. “Tivemos o melhor ano de sempre com mais turistas e preço mais elevado”

A isto, segundo o mesmo socialista, soma-se que o problema do alojamento local não só era muito maior em escala do que o dos hotéis, como, no entendimento que faz, as consequências para a teia citadina eram muito mais nefastas. “Ocupar um prédio, às vezes inteiro, num hotel não era um problema. Muitas vezes, não era um problema que expulsasse pessoas, porque era feito a favor da reabilitação integral do edifício”, sublinha.

O que na ótica da mesma fonte contrapunha com o alojamento local que, pela maior agilidade, subtraia frações ao arrendamento comprometendo a função habitacional. E reforça ainda que, nestes locais, o entendimento foi o de que os hotéis não seriam um problema porque “preferem zonas onde tenham maior espaço para contruir para poderem ter maior rentabilidade”.

Já outra fonte do mesmo executivo socialista ouvida pela Renascença discorda. Entende ser claro e notório o desequilíbrio que foi criado entre as duas atividades e lembra que, na discussão que ocorreu há cinco anos, estava programada e pensada a execução de um estudo para avaliar a pressão da atividade hoteleira nas zonas centrais da cidade. Foram até discutidos os moldes, “mas acabou por não ir em frente”.


Entretanto, prossegue este socialista, começou a pandemia, os confinamentos, e o que era um problema deixou de ser. “Já não era uma prioridade política, o que se queria era que a atividade económica fosse retomada”, recorda.

A Renascença pediu também ao atual presidente da autarquia lisboeta, Carlos Moedas, e à vereadora do Urbanismo, Joana Almeida, entrevistas sobre este tema, mas as mesmas foram declinadas.

Rejeitados os pedidos de entrevista, a Renascença enviou por escrito as seguintes questões à Câmara de Lisboa:

“Faz sentido proibir alojamento local no centro de Lisboa, nas zonas de contenção, e ao mesmo tempo manter a possibilidade de licenciamento e abertura de hotéis e apartamentos turísticos? Não é uma situação de desequilíbrio entre duas atividades análogas?” “No Regulamento Municipal de Alojamento Local defende-se que a "subida acentuada das rendas e a precariedade do alojamento, tornando necessária a implementação de um conjunto de políticas públicas urbanísticas, com vista, nomeadamente, a defender o stock de habitação permanente, limitar a instalação de novos estabelecimentos turísticos nos bairros...". Como é que esta situação fica protegida se em quatro anos se abrem 41 hotéis que resultam em quase 2 mil novos quartos para turistas?” “A CML pensa criar alguma restrição ao licenciamento de hotéis e de apartamentos turísticos nas zonas de contenção absoluta?”

 Beatriz Pereira/RRFoto: Beatriz Pereira/RR

O Gabinete de Comunicação da CML enviou um texto corrido sem resposta direta a estas perguntas. A edilidade enquadra que “o crescimento do número de hotéis e de unidades de alojamento local em Lisboa, ainda que a ritmos diferentes, acompanhou o crescimento da procura turística na cidade”. E detalha que “o alojamento local, representa hoje cerca de 70% da capacidade total de alojamento turístico da cidade, enquanto a hotelaria representa cerca de 30%”.

Sem admitir a existência de um desequilíbrio e se o pretende minorar, escreve ainda que “o futuro Plano Diretor Municipal, cujas bases estratégicas estão já a ser desenvolvidas, procurará garantir um maior equilíbrio de usos na cidade e resolver desequilíbrios que, entretanto, passaram a existir nalgumas zonas da cidade entre oferta habitacional e oferta turística”.

E acrescenta ainda que a Câmara Municipal está também a desenvolver um “Estudo do Turismo em Lisboa”, com o objetivo de dotar a autarquia de elementos “de caraterização e de diagnóstico que permitam tomar uma decisão ponderada, equilibrada e duradora para a gestão e regulação da instalação de novas unidades ligadas à atividade turística”.

Uma distorção?

Um estudo com estas caraterísticas é há anos um “cavalo de batalha” do deputado municipal da CDU João Ferreira, que afirma à Renascença que sempre considerou fundamental definir qual a carga turística máxima para cada zona de Lisboa, um conceito que relaciona a qualidade de vida de quem vive em Lisboa e a qualidade da experiência do turista.


OuvirPausaLamentamos mas o seu browser não suporta este elemento de audio.

Ouça aqui, "Há um desequilíbrio, mas penso que há razões históricas para isso. Houve uma leitura de que havia uma oferta de habitação turística que competia com a habitação tradicional, apesar de isso também poder ser apontado à hotelaria", Ricardo Guimarães, diretor do Confidencial Imobiliário.

João Ferreira diz que os comunistas nunca defenderam uma “restrição de carácter geral” para o AL, “muito embora desde sempre tenhamos alertado para a necessidade de haver uma regulação, o que implica necessariamente restrições”.

Lembra que em 2019, quando a matéria foi discutida, defendeu que, mexer no alojamento local “e nada fazer em relação aos hotéis, podia ser uma medida “que ia deixar satisfeita a indústria hoteleira”, mas deixaria em aberto a possibilidade de problemas futuros.

Iam continuar a aparecer hotéis e isto pode significar uma nova distorção, um novo desequilíbrio na cidade, porque os fundamentos que reconhecemos para regular o alojamento local são exatamente os mesmos que deviam ser reconhecidos para intervir com algum tipo de regulação [nos hotéis]”, sublinha.


Câmara de Lisboa diz não ter capacidade para anular licenças de alojamento local

Ferreira olha para a hotelaria e para o alojamento local e diz jogarem ambos para o mesmo campeonato porque, explica, competem com a função habitacional. Mas há uma diferença, sublinha. “O alojamento local tem uma maior versatilidade e maior possibilidade de conversão, ou seja, é relativamente fácil converter uma casa de alojamento local para habitação e vice-versa".

Não é tão fácil um hotel voltar a ser habitação. Não quer dizer que não se faça, mas não é uma coisa que ocorra com a mesma facilidade”, sublinha.

Isso, argumenta o comunista, deveria levar a um maior cuidado dos poderes públicos na necessidade de regulação do licenciamento de hotéis nestas zonas.

Não avançar para uma mudança no PDM e no Plano de Pormenor, na ótica do deputado da CDU, foi um erro e não compra o argumento do anterior executivo de que demoraria muito tempo. Reconhece que desde a discussão até à aprovação destes documentos poderiam passar cinco anos, mas sinaliza: “Esta discussão vem desde 2018. Passaram seis anos e não se fez nada. O processo é moroso, mas pelo menos que se iniciasse logo que possível. Não se deu nenhum passo nesse sentido”.


OuvirPausaLamentamos mas o seu browser não suporta este elemento de audio.

"Vão continuar a aparecer hotéis, mas isto pode significar uma nova distorção, um novo desequilíbrio na cidade, porque os fundamentos que a gente reconhece para regular o alojamento local são exatamente os mesmos que deviam ser reconhecidos para intervir, mas também com algum tipo de regulação", João Ferreira, deputado municipal da CDU.

Isso não ter acontecido, afirma, “foi uma opção política do PS e da oposição de direita que nunca foi a favor da regulação”.

PSD não quis colocar nenhum entrave ao mercado

Na oposição de direita ao executivo de Medina estava a social-democrata Teresa Leal Coelho. A então deputada municipal salienta que o AL tem mais virtuosidades do que problemas, mas ainda assim entende que deve ter alguma regulação e, por isso, defenderam “zonas de contenção temporárias”.

Já em relação à hotelaria, Leal Coelho não concebe restrições uma vez que “a iniciativa económica não deve ser condicionada, nem a propriedade privada”. Questionada sobre se existe um desequilíbrio regulatório entre as duas atividades, considera que estas são diferentes pelo que a comparação não se coloca.

“Em 2019, não havia esta pressão em relação ao licenciamento de hotéis”, sublinha. E acrescenta que o PSD sempre foi defensor do AL e dos hotéis, a primeira por ajudar muitas famílias a dinamizar a economia e os segundos porque contribuem para a reabilitação das cidades.


 Tiago Petinga/LusaFoto: Tiago Petinga/Lusa

Voltando aos dados do Turismo de Portugal, ao olharmos para a cidade de Lisboa inteira, nos últimos quatro anos, abriram 71 hotéis e empreendimentos turísticos, que valem quase 4.500 quartos com capacidade para 7.285 pessoas.

Já o alojamento local teve uma grande quebra de licenciamentos desde 2019, ano em que foi publicado o RMAL. Em quatro anos, foram atribuídas 1.986 licenças, correspondentes a 4.652 quartos com capacidade para 12.180 visitantes.

Santa Maria Maior, a freguesia no olho do furacão

A freguesia que mais hotéis viu nascer nos últimos quatro anos é a de Santa Maria Maior, bem no coração da capital. Na sede da Junta encontramos o presidente Miguel Coelho. Confrontado com os 21 hotéis que ali foram licenciados, nos últimos quatro anos, o autarca diz que “não são [números] simpáticos, não auguram um bom futuro para a freguesia, na perspetiva da manutenção do número de residentes”.


OuvirPausaLamentamos mas o seu browser não suporta este elemento de audio.

Ouça aqui. "Não são números simpáticos, não auguram um bom futuro para a freguesia, na perspetiva da manutenção do número de residentes", Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior.

Miguel Coelho di-lo, esclarecendo de seguida que nada pode fazer para alterar a realidade uma vez que é a Câmara Municipal que tem os instrumentos para o fazer.

É preocupante no quadro de uma freguesia que já perdeu 30% da população desde 2013. E isso fica-se muito a dever a esta febre do investimento no turismo, sobretudo nas áreas do alojamento local e também no serviço da oferta turística que se cria”, censura. Ao mesmo tempo, não diaboliza esta atividade económica que considera importante para a cidade e para a freguesia.

Miguel Coelho diz que em Santa Maria Maior “há uma presença massiva de hotéis e de alojamento local”. No entanto, considera que um tem efeitos muito mais perniciosos do que o outro. Na ótica do presidente da Junta, para que se construa um hotel tem de haver um prédio devoluto ou todo vago e “isso do ponto de vista do efeito imediato não é tão preocupante como o alojamento local”.

O autarca dá o exemplo do Palácio da Rosa, na Mouraria, que está devoluto há 15 anos e que em breve se transformará num hotel e isso não obrigará a que ninguém deixe de morar naquele local.


Bairro Alto, Alfama e Av. da Liberdade. Três freguesias de Lisboa onde o m² custa mais de 3.500€

“Já o AL funciona como uma espécie cancerígena, entra num prédio, fixa-se ali, e depois quem investe nesta área não descansa enquanto quem lá vive não tenha de sair (...) Em regra, o proprietário vende o prédio a um fundo imobiliário que mesmo com inquilinos lá dentro tem, muitas vezes, um comportamento perfeitamente terrorista, tipificado já com bullying imobiliário para obrigar os inquilinos a irem embora”, explica.

Para reverter a perda de pessoas, Miguel Coelho diz já ter proposto a Medina e agora a Moedas um programa de regresso ao bairro. A ideia, concretiza, é pegar nas casas da autarquia que estão vazias naquele território e entregá-las à Junta para esta fazer pequenas reparações. Depois há que colocá-las em concurso de renda acessível para as pessoas que foram obrigadas a sair daquela zona nos últimos 15 anos. “São elas que dão coesão social ao território e identidade para termos um turismo sustentável e que se renove”.

Saindo da Junta e caminhando até umas ruas abaixo, entramos na Adega Popular 33 onde está Luciano Pires, que trabalha ali há mais de duas décadas. É um restaurante à moda antiga. Entra-se numa espécie de museu vivo de um Portugal não muito longínquo da década de 1980 e 1990.

Se lhe perguntamos se se nota uma diminuição da presença da AL, ele responde de pronto que não. “Continua, mas talvez noutros moldes”.


 Beatriz Pereira/RRFoto: Beatriz Pereira/RR

Luciano observa as ruas das imediações e vê a mutação em movimento. “Alguns edifícios foram recentemente transformados em hotéis”, conta. “Continuam a fazer compras de edifícios na totalidade para fazer hotéis”, acrescenta.

O resultado da turistificação em curso no negócio da Adega Popular 33 é a de que “os clientes habituais desapareceram”. "Passou a haver outro tipo de clientes. O que eu lamento é que as pessoas que cá viviam deixaram de viver, tiveram de ser afastados com ou sem indemnizações e com a cessação de contratos de arrendamento”.

Este profissional da restauração olha com preocupação para a monocultura económica da freguesia e pensa: “Se houver uma quebra de turismo, vai ser muito difícil estes alojamentos que estão preparados só para turistas voltarem ao arrendamento normal. O que é que irão fazer? Vão fazer novamente obras para transformar as habitações para o arrendamento habitual ou ficam sem negócio? As dúvidas são essas”, resume.

E depois há ainda a pressão para sair dali. Não consegue quantificar as múltiplas ofertas de compra do restaurante que vão recusando. “Tudo o que é tradicional está a desaparecer”, lamenta.


OuvirPausaLamentamos mas o seu browser não suporta este elemento de audio.

Ouça aqui. ""Os clientes habituais desapareceram. O que eu lamento é que realmente pessoas que cá viviam e que por estes motivos deixaram de viver cá, tiveram de ser afastados com ou sem indemnizações ou com a cessação de contratos de arrendamento", Luciano Pires, Adega Popular 33.

Luciano critica todo o movimento de criação de espaços de restauração e hoteleiros "pseudo-tradicionais”. Até há a manutenção dos azulejos antigos, das pedras, dos mármores, de algumas máquinas registadoras, máquinas de café antigas, mas tudo é decorativo. Nada é real. “É um embuste”, resume.

O mesmo Luciano afirma que a onda do turismo é tão grande que arrasta qualquer possibilidade de contrariar esta tendência. O mais grave, repete, são as pessoas que saem e já não voltam.

“Cada vez são menos os que vêm morar para cá. Existem medidas, mas não chegam para travar a turistificação”, remata.


Alojamento local. Falta de prova de atividade deve cancelar mais de oito mil registos em Lisboa
Ler artigo completo