Na Alemanha mas com o coração em Kharkiv

3 meses atrás 56

«Palavras à Sorte» é a rubrica diária dos jornalistas do zerozero durante o Euro 2024. Todos os dias, na Alemanha ou na redação, escrevemos um apontamento pessoal sobre a competição e todas as sensações que ela nos suscita.

Diz-se que não há amor igual ao primeiro; arrebatador, juvenil e desenfreado. Uma afirmação tão movediça quanto as areias da própria vida, é certo, ajustando-se à história de cada individuo em importâncias distintas.  

No meu caso, amores houve, mais maduros e adultos, que provaram ser na exata medida da felicidade que procurava. Mas há um, guardado na memória há 12 anos, que permanece imutável na sua beleza juvenil, ainda que no presente venha carregado de dor e de raiva.

Falo do amor pelo primeiro Campeonato da Europa vivido no estádio.  

Nesta história em particular, o amor de um jogo só vivido na sua plenitude no dia 17 de junho de 2012, em Kharkiv, na UCRÂNIA - em maiúsculas, para sublinhar-lhe a independência. 

Tinha 25 anos e já contava no “currículo” nove grandes torneios de seleções, entre Mundiais e Campeonatos da Europa, sofridos estoicamente em frente da televisão. Era um profissional batido, portanto, nesta tarefa de viver a vida ao ritmo de memórias bienais. 

Mas quando a pergunta do meu grande amigo Carlos Matos Rodrigues chegou - «Vamos à Ucrânia ver a seleção?» -, tudo mudou. De repente, os sonhos que se faziam desde miúdo, ainda emigrante, através das transmissões mágicas da ZDF e da ARD, tinham asas.  

«Como assim?», perguntei.  

O Carlos tinha ganho um bilhete duplo para assistir a um jogo da fase de grupos do Euro 2012 e escolheu o último, frente aos Países Baixos. Em Kharkiv, na UCRÂNIA. E escolheu levar-me com ele – pela amizade e pelos remorsos de ter cancelado uma ida à Suíça, umas semanas antes, que já estava combinada. Ele não o admite, mas eu sei. 

Minudências à parte, no dia 17 de junho de 2012, ainda a madrugada em Portugal, estávamos dentro de um avião com destino ao mais belo dos lugares: um grande torneio de seleções.  

As lembranças desse dia desdobram-se doces como um Kutya. A chegada ao aeroporto, a viagem de autocarro até à fan zone, bem no centro de Kharkiv, a sempre lúdica convivência com os neerlandeses e a beleza de conhecer os locais, macarrónicos na arte de comunicar noutra língua mas felizes por nos terem no seu país. Entendemo-nos às mil maravilhas. 

Lá dentro, no Metalist Stadium, a difícil tarefa de lidar com as emoções. Estava lá, no palco onde os sonhos se fazem, de carne e osso, de cachecol aos ombros à espera da Portuguesa. Engolidos pela onda laranja, contamos, desde cedo, com o apoio dos ucranianos. Eram por nós, como agora nós somos por eles.  

O jogo foi mágico como o momento exigia. Golo de Rafael van der Vaart aos 11 minutos, porque não há felicidade sem fado. Depois, o génio de Cristiano Ronaldo. Aos 28’ e aos 74 minutos, virando do avesso o resultado e as nossas emoções. Portugal ganhou e passou aos quartos de final. A perfeição escrita por uma bola. 

Regressámos a Portugal ainda nessa noite, uma direta que a idade e a adrenalina fizeram por suportar.  

Regressámos felizes e com a certeza de memórias guardadas para a eternidade. Kharkiv, a UCRÂNIA, os ucranianos; tudo isto faz parte do meu sonho.  

Por isso, lembro-me desse dia com o amor arrebatador de uma primeira vez; lembro-me desse dia, hoje, de malas feitas para Dortmund, na, Alemanha e para o Euro 2024. 

E lembro-me desse dia com um aperto no coração. A guerra na Ucrânia, naquela Kharkiv de pessoas felizes, é uma mancha mais do que negra na memória presente. Mas esta é uma história sobre o amor e sobre a arte de sonhar, sobre transformar essas emoções belas em memórias reais. E é nisso que acredito. Numa UCRÂNIA independente e livre de quem mata o belo. SLAVA UKRAINI! 

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