"Não sei se estarei viva amanhã". A enfermeira em fuga e os nove meses de "deslocações forçadas" em Gaza

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 Rodrigo Machado/RR, a partir de fotos de Malak Arab e Reuters. Fotomontagem: Rodrigo Machado/RR, a partir de fotos de Malak Arab e Reuters.

Há um paciente com o braço esticado, está alguém a analisá-lo e outra pessoa a segurar uma lanterna. Ao lado, um monitor parece exibir dados médicos. Tudo o resto está escuro, só há luz no átrio em frente. “Este é o hospital de Al-Aqsa. Esta é uma tenda nas traseiras do hospital, entre a entrada e a triagem”, descreve a enfermeira Malak Arab.

“A eletricidade foi cortada há três horas. Não vemos nada à nossa volta. Não conseguimos fazer o nosso trabalho”, conta, num vídeo enviado por Whatsapp à Renascença.

Malak tem 22 anos e está longe do hospital onde costumava trabalhar, no Norte da Faixa de Gaza. Desde que perdeu a casa de família num bombardeamento, tem passado os meses a fugir de “área segura” para “área segura”. A tenda onde vive agora com a família, na zona de Deir al-Balah, é já a terceira que improvisam desde que ficaram desalojados, em dezembro de 2023.

Depois de fazerem os 40 km entre a cidade natal de Beit Lahiya, no Norte, e a cidade fronteiriça de Rafah, no Sul, a família de Malak – a mãe, duas irmãs e três irmãos – viveu numa tenda durante cinco meses.

Estima-se que mais de um milhão de pessoas se abrigavam em Rafah quando o exército israelita iniciou uma operação na cidade, no início de maio. A família de Malak teve novamente de fugir.


“A 10 de maio estava em Rafah, quando a artilharia e o som de bombas e rockets começou a descer sobre as nossas cabeças. O exército disse que devíamos ir para Al-Mawasi, por isso fomos, a pé, apesar de a minha mãe estar doente”, recorda à Renascença.

Fizeram uma nova tenda no meio de muitas outras, a 9 km de Rafah. No final de maio, o acampamento – designado como seguro pelas forças israelitas – foi atingido, num ataque que fez cerca de 20 mortos. Malak e a família voltaram a ter de fugir.

"Fomos para centros de abrigo em Deir al-Balah [a meio do enclave], recomeçando as nossas vidas, que estão cada vez mais difíceis”, conta a enfermeira. "Não há comida saudável nem água limpa. Montamos uma tenda e continuamos a sofrer”.

Desde outubro de 2023, Malak Arab foi falando regularmente com a Renascença.

“Está tudo destruído, estamos deslocados e há bombardeamentos. Não sei se estarei viva amanhã ou não”, desabafava Malak num áudio enviado a 22 de abril.


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Ouça a reportagem com os relatos que Malak enviou à Renascença ao longo dos últimos nove meses

A 25 de outubro, Malak falava pela primeira vez com a Renascença, entre turnos consecutivos no hospital Kamal Adwan, no Norte, a 4,5 km da fronteira com Israel, debaixo do som de bombas. Já quase não ia a casa e passava os dias sem “medicamentos nem material para mudar as ligaduras”, sem eletricidade, a operar “com as lanternas dos telemóveis”, a ter de racionar comida. Não queria sequer pensar numa possível entrada do exército israelita em Gaza. “Sou enfermeira. Não penso nisso.... não penso nisso.”

O ataque do Hamas a Israel, a 7 de outubro, tinha acontecido há 18 dias e a incursão israelita no enclave palestiniano estava prestes a começar. O porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla inglesa), Daniel Hagari, reiterava o aviso “a todos os residentes de Gaza” para que se mudassem para o Sul, onde prometia "aumentar os esforços humanitários”. Mas os bombardeamentos não pararam, incluindo no Sul.

Desde então, as zonas consideradas seguras foram deixando de o ser, uma após outra, e a ajuda humanitária foi escasseando mais e mais.

Estima-se que, desde outubro, nove em cada dez habitantes de Gaza tenham sido desalojados pelo menos uma vez. Dos 2,1 milhões de palestinianos que habitavam o enclave, 1,9 milhões foram forçados a fazer várias movimentações no território, indica o gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).

Durante o mês de junho, foram efetuadas apenas 46% das 115 missões de assistência humanitária planeadas e coordenadas com as autoridades israelitas para a zona Norte. Mais de metade foram impedidas, negadas ou canceladas por razões logísticas. No Sul do território, o mesmo aconteceu a 28,8% das 299 ações planeadas. Os numeros são também da OCHA.


 Hassan Jedi / Anadolu via ReutersVista aérea do acampamento que acolhe milhares de deslocados forçados palestinianos na zona costeira de Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza. 16 de maio de 2024. Foto: Hassan Jedi / Anadolu via Reuters

Um “rebanho” numa “faixa minúscula a que chamam de zona humanitária”

Nove meses depois do primeiro contacto com a Renascença, Malak Arab está de novo a trabalhar à luz de lanternas, sem uma casa para onde regressar e agora com Hepatite A — cujo “principal modo de transmissão é por via fecal-oral (contacto de fezes com a boca), através da ingestão de alimentos ou água contaminados”, lê-se no site da DGS.

Casos como o de Malak passam pelas mãos dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) todos os dias. “As pessoas foram desalojadas três, quatro, cinco, seis, sete vezes, com todos os seus bens, e foram enviadas em rebanho para esta faixa minúscula a que chamam de zona humanitária”, sintetiza Javid Abdelmoneim, atual responsável por equipas da MSF em Gaza.

“Estão a viver numa faixa junto à praia”, sublinha, elencando perguntas sem resposta. “Como se constrói uma casa-de-banho numa praia? Onde tomam banho? Onde conseguem obter água potável?” Não há sequer “combustível suficiente para que as estações de dessalinização possam funcionar”, afirma, em entrevista à Renascença.


 Abed Rahim Khatib / Anadolu via ReutersCriança palestiniana procura comida no lixo no acampamento de Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza, onde escasseia a comida e água potável. 15 de julho de 2024. Foto: Abed Rahim Khatib / Anadolu via Reuters Majdi Fathi via Reuters ConnectCriança brinca junto a águas paradas no acampamento de refugiados de Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza. 28 de abril de 2024. Foto: Majdi Fathi via Reuters Connect

No hospital de Nasser, perto de Khan Younis, onde Javid Abdelmoneim trabalha há seis semanas, as consequências da falta de condições mínimas de salubridade são visíveis, com um avolumar de casos de “diarreia, infeções de pele, sarna, infeções oculares”.

Doenças que não seriam de particular gravidade, se pudessem ser tratadas. Mas até o stock de anti-inflamatórios entrou em rutura, garante o médico. "Estamos mesmo a ficar sem reservas”, afirma. “Não recebemos produtos médicos desde a invasão de Rafah. Portanto, a MSF está sem receber nenhum fornecimento desde o fim de abril”.

A escassez vai sendo gerida com a criatividade possível – transformando os tecidos que encontram em batas cirúrgicas – e com trocas entre organizações não governamentais (ONG).

“Tínhamos [reservas para] menos de uma semana de fentanil, que é uma substância fundamental para sedação e anestesia. Conseguimos trocar material de sutura com outra ONG e isso deu-nos fentanil para mais três semanas”, exemplifica o coordenador médico.

Desde que as tropas israelitas entraram em Rafah, no início de maio, a fronteira de Gaza com o Egito está fechada. Era por ali que passava a grande maioria dos veículos com mantimentos humanitários e comerciais. Na passada sexta-feira, cerca de 680 camiões carregados permaneciam estacionados do lado egípcio.

Era também por ali que se fazia o transporte de pessoas, incluindo doentes urgentes. Sem aquela ligação com o Egito, as únicas passagens possíveis são por território israelita – em Kerem Shalom, no Sul, e em Erez, no Norte, que reabriu no início de maio.


 Mohamed Arafat/EPACentenas de camiões com ajuda humanitária esperam para entrar em Gaza, há mais de dois meses, em Al-Arish, no Egito, desde que a fronteira de Rafah foi fechada. 9 de julho de 2024. Foto: Mohamed Arafat/EPA

Em abril, entrava uma média de 189 camiões por dia pelas duas passagens a sul, de acordo com a ONU. Já então era insuficiente – segundo as agências humanitárias, seriam precisos 600 camiões diários de mantimentos para suprir as necessidades da população atual de Gaza, quase inteiramente deslocada e desalojada.

“Agora não há qualquer forma de fugir de Gaza”

Javid Abdelmoneim tem pela frente mais duas semanas em Gaza, antes de terminar a sua missão. Entre março e maio esteve a dar apoio a partir da Jordânia e apercebeu-se de que existia “um verdadeiro mercado de pagamentos para sair” do enclave.

Foi assim que dois idosos palestinianos conseguiram reunir-se com o filho em Portugal, em março, depois de pagarem 5 mil euros na fronteira de Rafah. As instruções que a família Salem recebeu eram muito simples: “Tens no Egito uma coisa chamada 'coordenação', [que quer dizer] pagar dinheiro. É muito fácil. Pagas o dinheiro e ele sai”.

O filho, investigador na Universidade do Minho e detentor de passaporte português há dois anos, assim fez. Com apoio da embaixada portuguesa no Egito, os pais foram transferidos para o Cairo, receberam cuidados médicos e chegaram a Portugal.

Malak Arab está a tentar há meses fazer o mesmo com a mãe e os cinco irmãos. Em abril, abriu uma conta de angariação de fundos para tentar atingir a soma necessária para garantir a passagem para o Egito.


 Malak (22 anos), a mãe (45 anos), o pai (morreu antes de a guerra começar, aos 49 anos), um dos irmãos (24 anos) e a irmã do meio (19 anos). Ao centro, a mais nova (9 anos). Malak tem mais dois irmãos, rapazes. A Família Arab, quando vivia no norte de Gaza. Da esquerda para a direita: Malak (22 anos), a mãe (45 anos), o pai (morreu antes de a guerra começar, aos 49 anos), um dos irmãos (24 anos) e a irmã do meio (19 anos). Ao centro, a mais nova (9 anos). Malak tem mais dois irmãos, rapazes.

“Os serviços médicos estão parados e a minha mãe está muito doente. Preciso de sair de Gaza para a ajudar e poder tratá-la”, contava a enfermeira à Renascença a 21 de abril.

A família tem medo de ver repetir-se um episódio traumático. Um mês antes do início da guerra entre Israel e o Hamas, Malak perdeu o pai "por falta de tratamento médico". Tinha 49 anos e era farmacêutico em clínicas da agência da ONU para os refugiados palestinianos (UNRWA).

O patriarca da família Arab sofria de Esclerose Múltipla em estado avançado e precisava de tratamentos fora de Gaza, mas não conseguiu autorização em tempo útil para viajar – nem para Israel nem para o Egito.

Situações destas eram comuns antes da guerra, afirma Malak. Pacientes de Gaza viam as autorizações para viajar serem “rejeitadas várias vezes, sem nenhuma razão”, até que "depois eram aceites”.

Os problemas de saúde da mãe de Malak, que tem 45 anos, agravaram-se a partir daí. “Depois de perdermos o meu pai, ela ficou muito triste. O coração dela está cansado, a tensão arterial está muito alta e o nervo do cólon não está a funcionar. Em Gaza não temos medicação para resolver o problema nem forma de operar”, conta.

Pagar para sair era também a esperança de Randa Arab, de 36 anos, que também abriu uma angariação de fundos. Natural do Norte da Faixa de Gaza, vive com os quatro filhos menores e o marido numa tenda.


 Randa ArabDa esquerda para a direita: os filhos mais novos na tenda onde vivem atualmente; Randa em Khan Younis; o marido com dois filhos, antes da guerra, no norte de Gaza. Fotos: Randa Arab

Ahmad, o filho de três anos, sofre de Persistência do Canal Arterial (PCA), um problema na ligação da aorta descendente à artéria pulmonar, e precisa de ser submetido a uma cirurgia. O diagnóstico do Ministério da Saúde de Gaza foi feito no ano passado, mas os últimos meses foram de fuga permanente e não permitiram prosseguir o tratamento.

Randa estava grávida quando a guerra começou. Pouco tempo depois de nascer o filho mais novo, a sua casa foi bombardeada e a família fugiu para Rafah. Quando o exército israelita tomou conta da cidade, a família fugiu para Khan Younis.

“É uma cidade-fantasma, não conseguimos encontrar nenhum abrigo, por isso temos de viver numa tenda”, conta Randa à Renascença. “Viver em tendas com este tempo é como viver no inferno”, conta.

“Enfrentamos a morte muitas vezes nos últimos nove meses, mas escapar à morte não significa que estejamos a viver”, conclui Randa.

Malak e Randa continuam a ter esperança de que os donativos lhes permitam um dia sair de Gaza. O médico Javid Abdelmoneim está menos otimista. “Até isso acabou, desde a invasão de Rafah. O terminal foi destruído. É uma zona completamente insegura”, descreve. “Agora não há qualquer forma de fugir de Gaza”, lamenta.

Quando a MSF foi obrigada a abandonar o hospital Indonésio, em Rafah, não houve tempo de carregar o material médico que tinham em armazém. “Há provisões lá em baixo, mas não conseguimos ir lá” recuperá-las, sublinha o médico. Isto foi há três meses e continua a ser “simplesmente impossível” aproximarem-se da área que antes assegurava a ligação com o Egito, afirma.


 DRJavid Abdelmoneim diz que se foca "nas pequenas coisas", como uma rapariga a quem conseguiram salvar o braço, para poder continuar no meio de um cenário "catastrófico". Foto: DR Haitham Imad/EPAÉ para o hospital de Nasser que têm sido encaminhadas grande parte das vítimas dos mais recentes bombardeamentos à volta de Khan Younis, no sul de Gaza. Foto: Haitham Imad/EPA

A enfermeira Malak Arab está mais otimista. Acredita que conseguirá sair através da passagem de Kerem Shalom, por território israelita, e depois chegar ao Egito. "Espero reunir a quantia necessária e viajar para tratar a minha mãe”, assegura.

As "mortes silenciosas”

Desde outubro, mais de 38.700 palestinianos terão sido mortos em resultado da retaliação de Israel aos ataques de 7 de outubro, que fizeram 1200 mortos e mais de 250 reféns. Os primeiros números são das autoridades de saúde de Gaza, os segundos das israelitas.

Mas entre os números que chegam de Gaza não estarão as mortes indiretamente causadas pela situação atual. Javid Abdelmoneim, que já trabalhou em cenários como o Iraque, Haiti, Síria, Sudão ou Ucrânia ao serviço da MSF, diz que é o que sempre acontece nestes contextos. “Quando todo o sistema de saúde tem de gerir vítimas em massa, casos de trauma, feridos de guerra, todas as outras situações sofrem consequências.”

O médico questiona o que aconteceu aos casos de cancro, por exemplo – “e sabemos que pelo menos 350 mulheres teriam tido cancro da mama desde o início da guerra”, com base no que dizem as estatísticas. “Onde estão, como estão a ser tratadas?”, questiona.

O mesmo para os casos de diabetes, sem insulina a entrar no território. “Tem sido praticamente inexistente desde o início da invasão de Rafah”, assegura o médico. E para os pacientes que fazem diálise – “havia alguns no Hospital Europeu, agora não há”, recorda, porque o hospital fechou.

“Chamamos-lhes mortes silenciosas”, lamenta Javid.


 Haitham Imad/EPACriança palestiniana malnutrida recebe tratamento no chão de um corredor do hospital de Nasser, em Khan Younis, Sul de Gaza. 8 de julho de 2024. Foto: Haitham Imad/EPA

“Não é uma evacuação, é uma deslocação forçada”

Dos 36 hospitais que existiam no enclave, apenas 13 estão “parcialmente a funcionar”, afirmou a 9 de julho o porta-voz da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tarik Jašarević.

“Só nos últimos oito dias”, explica o médico da MSF Javid Abdelmoneim, “13 centros clínicos, quatro unidades de cuidados primários e três hospitais centrais da Faixa de Gaza tiveram de encerrar devido a ordens de evacuação forçada.”

Entre eles está o Hospital Europeu de Gaza, nos arredores de Khan Younis, que tinha capacidade para 650 camas e era, para o diretor-geral da OMS, uma das maiores instalações de saúde de referência do Sul do território. “Gaza não se pode dar ao luxo de perder mais hospitais”, afirmou Tedros Ghebreyesus, apelando à reativação daquela unidade.

Enquanto tal não acontece, todos os pacientes foram reencaminhados para o complexo hospitalar de Nasser, que tem capacidade para internar 350 pacientes.

É lá que o coordenador da MSF tem procurado desdobrar as horas de cada dia. Tem equipas nas alas de trauma, ortopedia e unidade de queimados. A constante falta de combustível faz com que nem sempre se consiga bombear água.

“No sábado estivemos até às 2h da manhã, quase todo o dia, totalmente sem água – nas salas de operações, nas áreas de pacientes, no internamento”, sublinha.

Isso significa que, durante todo o dia, não foi possível "lavar as mãos, lavar as superfícies, descarregar autoclismos, limpar as salas”, enumera o médico.

Há também cortes frequentes no ar condicionado. “Os cirurgiões transpiram para as zonas esterilizadas, portanto há um problema de controlo de infeções”, complementa Javid Abdelmoneim.


 Haitham Imad/EPAFeridos nos corredores do hospital de Nasser, depois de um ataque de Israel em Al-Mawasi, perto de Khan Younis, Sul de Gaza. 13 de julho de 2024. Foto: Haitham Imad/EPA

É para este cenário que têm sido encaminhadas grande parte das vítimas dos mais recentes bombardeamentos à volta de Khan Younis. Como o ataque que matou pelo menos 17 pessoas esta terça-feira e feriu outras 26 numa zona de tendas em Al-Mawasi, de acordo com as autoridades de Gaza. Ou o ataque do passado sábado, na mesma área, que matou mais de 90 pessoas, de acordo com a mesma fonte. Ou ainda o bombardeamento de dia 9 de julho a uma escola que servia de abrigo para deslocados e onde decorria um jogo de futebol, na cidade de Abasan, do qual resultaram pelo menos 29 mortos.

Javid conta que, neste ataque de dia 9, ouviu o estrondo dos mísseis no hospital de Nasser. “Um dos meus ortopedistas e duas enfermeiras supervisoras tiveram de ir dar apoio na Urgência”, conta. Nas “três a quatro horas seguintes”, deram entrada entre “50 e 70 feridos”. Foram levados de ambulância, em carros privados e mesmo de carroça.

Os últimos dias foram de “pressão num sistema que já está pressionado até ao limite”, desabafa o médico.

“Estamos a tentar acrescentar mais 18 camas, ocupando alas administrativas e pedindo às pessoas para vagarem as salas”, adianta Javid. “Estamos a usar camas e pessoal do Hospital Europeu".

Mas assim que a capacidade é aumentada, “é instantaneamente usada”. Os profissionais que ali trabalham “estão exaustos”, afirma o coordenador. E não só por causa do tipo de trabalho que fazem. “Desde que estou aqui, em cinco semanas, vi os meus colegas daqui de Khan Younis terem de mudar de casa três a quatro vezes, com sucessivas ondas de insegurança”.


 Mohammed Saber/EPACriança ferida à porta de uma escola da UNRWA, atingida por bombardeamentos das forças israelitas, no campo de refugiados de Al Nuseirat. Estima-se que 12 pessoas tenham morrido. 14 de julho de 2024. Foto: Mohammed Saber/EPA Haitham Imad/EPACrianças malnutridas recebem tratamentos nos corredores do Nasser Hospital, zona de Khan Younis, sul de Gaza. Foto: Haitham Imad/EPA

As equipas médicas locais são compostas também por residentes e sofrem as mesmas consequências que qualquer outro civil em Gaza. Javi Abdelmoneim testemunhou isso bem de perto por estes dias, quando estava na enfermaria.

“Ouvimos de repente um grito enorme. Ouvi um homem a chorar. Estiquei a cabeça e vi um colega nosso, enfermeiro, que tinha acabado de descobrir que o seu filho de seis anos foi morto num ataque aéreo. Era o bebé da família. Tem três irmãs mais velhas. E agora está morto. E nós temos de continuar, porque temos pacientes na enfermaria.”

“Apesar de vivermos na chamada ‘zona humanitária segura’, não é segura”, sublinha o coordenador da MSF. “Ordem de evacuação a 1 de julho, ordem de evacuação a 7 de julho, ordem de evacuação a 8 de julho... Não é uma evacuação, é uma deslocação forçada”, sustenta o médico, categorizando a situação atual como “catastrófica”.

O seu “staff”, diz, tem-lhe confessado estar “sem esperança”. “Têm vivido isto a vida toda e agora esta explosão de violência desde outubro. Está a tornar-se um desespero”, nota.

Focar “nas pequenas coisas”

Se não houver contratempos – que frequentemente acontecem desde que a passagem de Rafah foi inutilizada –, Javi Abdelmoneim sairá de Gaza dentro de duas semanas. Até lá, tem uma estratégia para conseguir continuar: “Foco-me nas pequenas coisas, nas coisas mesmo, mesmo pequenas.”

Como no caso da menina que entrou no hospital, vinda do ataque de dia 9 na escola, e que tinha o braço direito “horrivelmente ferido”. Os médicos da Urgência “estavam a planear amputar”, até que Gemma, um membro da equipa de Javid, disse: “Reparem, está ali um cirurgião vascular, está acolá um cirurgião de trauma. Podemos tentar salvar este braço.” E conseguiram. “De momento, ela ainda tem as mãos e os dedos, mas há muitos danos nos nervos”, conta o médico.


 Haitham Imad/EPALocal onde um bombardeamento israelita matou cerca de 90 pessoas, em Al-Mawasi, Khan Younis, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. 13 de julho de 2024. Foto: Haitham Imad/EPA Hatem Khaled/ReutersAcampamento improvisado em Khan Younis, cidade que está parcialmente destruída. 15 de julho de 2024. Foto: Hatem Khaled/Reuters

"Temos de nos focar em algo pequeno como isto e dizer ‘estamos a fazer o melhor que podemos, entre a enormidade do que está a acontecer aqui’, dos mais de 38 mil mortos, mais os que estão debaixo dos escombros, não contabilizados... Temos de continuar. Não há outra opção.”

“A ilusão da ajuda”

A 12 km dali, Malak Arab também voltou a passar parte do tempo entre pacientes. Desde que teve de se mudar para a zona de Deir al-Balah, a enfermeira tem feito voluntariado no Hospital Al-Aqsa, o mais próximo do campo de tendas onde habita. Faz turnos de 24 horas e depois descansa nas 48 horas seguintes.

Enquanto esteve em Rafah trabalhou no Hospital dos Emirados, que oferecia sobretudo serviços materno-infantis. Foi o último a fechar depois de começarem os bombardeamentos israelitas na zona.

Foi já no Hospital Al-Aqsa que Malak gravou o vídeo às escuras que descrevíamos no início. A voz, simultaneamente suave e tensa, é a mesma com que descrevia, em outubro, a falta de recursos no hospital do Norte de Gaza, nos dias iniciais da guerra.

De lá para cá, ao longo dos vários meses, a enfermeira foi dando mostras de variações frequentes no ânimo, nas várias conversas com a Renascença – entre a esperança, o desespero e a aceitação.


A enfermeira Malak Arab é agora voluntária no hospital Al-Aqsa, na zona de Deir al-Balah, no centro de Gaza, onde está refugiada com a família. Foto cedida pela própriaA enfermeira Malak Arab é agora voluntária no hospital Al-Aqsa, na zona de Deir al-Balah, no centro de Gaza, onde está refugiada com a família. Foto cedida pela própria

Uma instabilidade que Javid Abdelmoneim viu de perto noutros rostos, noutros cenários, muitas vezes. Mas há duas diferenças substanciais que o médico identifica em Gaza, em comparação com os outros palcos de conflito que conheceu.

Em primeiro lugar, a falta de alternativa. “Acho que o que é diferente aqui, em primeiro lugar, é que as pessoas não podem fugir. Não há nenhum lugar seguro”, diz.

“Na Ucrânia, havia um êxodo massivo de civis de este para oeste, que eu testemunhei.” Na Síria, “as pessoas estavam deslocadas internamente e podiam, pelo menos, mover-se para longe das cidades”, recorda, regressando aos tempos que passou em Raqqa e Homs. Viu o mesmo no Sudão, “um movimento massivo de pessoas para longe das frentes de batalha”.

“Não existe essa possibilidade aqui em Gaza. Essa é, para mim, uma grande diferença.”

Em segundo lugar, Javid refere “a propaganda, esta ilusão da ajuda, esta ilusão de que se permite a entrada de mantimentos, esta instrumentalização, a apropriação da linguagem da ajuda humanitária por Israel”.

E, a esse respeito, o coordenador da MSF é peremptório: “não temos as provisões necessárias para garantir a ajuda humanitária que é necessária aqui.”


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